13 de jan. de 2010

Fernando Pessoa : SOMOS IBÉRICOS



Somos os precursores de uma tragédia divina, gritada ao Atlântico e ao Mediterrâneo...

O espírito ibérico é uma fusão do espírito mediterrâneo com o espírito atlântico, por isso as suas duas colunas são a Catalunha e o estado natural Galaico-Português. Castela (representando por este nome os estados intermédios, que Castela imperatriz de facto conseguiu harmonizar no seu espírito) é apenas a região de troca e portanto de estabilização dessas duas influências limites. Não deve ter outro papel que o de uma espécie de fiel na balança das duas inclinações marítimas. Por isso, a ter papel preponderante (como o que já teve na história) esse papel é tudo quanto há de menos ibérico...

Na península hispânica, de um lado ao outro, nós não somos latinos, somos ibéricos. É preciso assentar nisto, antes de mais nada. Nada temos, psicologicamente, de comum com os dois países herdeiros da civilização latina propriamente dita - a Itália e a França . Nós não somos latinos, somos ibéricos. Temos – espanhóis e portugueses – uma mentalidade à parte do resto da Europa. Por mais diferenças que nos separem (e elas deveras existem) estamos mais próximos psiquicamente uns dos outros, do que qualquer de nós de outro qualquer povo extra-ibérico...
(colagem de textos para o filme "Mensagem")

Separados, teremos, cada um de nós (Portugal e Espanha), um sentido nacional; não temos sentido civilizacional. Podemos existir mais ou menos digna e decentemente, (...), mas isso não é existência digna de que a ela se aspire. Valemos mais do que isso; temos direito a fazer mais do que a existir.
("Sentido nacional e sentido civilizacional: a Civilização Ibérica")

De há tempos para cá se vem fazendo, por um processo de combinação espontânea que vale muito mais, e significa muito mais, que qualquer táctica de política amistosa, uma aproximação mental entre Portugal e Espanha. Dir-se-ia que os dois países repararam por fim no facto aparentemente evidente que uma fronteira, se separa, também une; e que, se duas nações vizinhas são duas por serem duas, podem moralmente ser quase uma por serem vizinhas. Esta aproximação mental não implica, de parte a parte, a abdicação de cousa alguma em que consista essencialmente a independência ou a personalidade de cada uma das nações: duas criaturas podem ser amigos sem ser sócios. Implica tão somente um estabelecimento de entendimento e de amizade, natural no caso de Portugal e de Espanha, que nenhum conflito de ambições hoje separa, que uma civilização tradicional comum aproxima, e que se encontram mais que nunca ante o problema, comum também, de defender, naquela larga extensão da América, que por ambos foi civilizada e aberta à continuidade do progresso, a tradição civilizacional ibérica contra a incursão disruptiva de conceitos civilizacionais estranhos.
("Aproximação mental entre Portugal e Espanha")

O que supremamente convém é criar, desde já, a ibericidade. Fazer tender todas as energias das nossas almas para um fim, por detrás de todos os fins imediatos que tenham. Esse fim é a Ibéria.
("O Problema Ibérico")

Portugal não quer ser espanhol, nem de uma forma nem de outra. Dos ódios que a história semeia, o ódio do português ao espanhol imperialista é o único que ficou, porque o contra os franceses que nos invadiram sob Napoleão, e o contra os ingleses que nos lançaram o Ultimatum célebre, já passaram ambos e se desradicaram de nós.
Ora esta existência de divergências muito grandes, longe de ser uma cousa que prejudique a ideia implícita (para o estadista) na íntima unidade civilizacional ibérica, antes a reforça e a torna mais aceitável. Porque todo o organismo é superior na proporção em que a sua unidade essencial é interpretada e realizada por funções diferenciadas. Quanto mais elevado é um organismo na escala dos seres vivos, mais diferenciados são os órgãos que o compõem, e maior a interdependência das suas funções. Por isso, dada a unidade fundamental que a natureza (pelo território e pela história) deu à Ibéria, e dada a paralela diferença entre povo e povo que a compõem, somos levados, não à conclusão que essa unidade é impossível, mas, ao contrário, que, sendo possível, será produtora de resultados sociais (civilizacionais) notabilíssimos, por isso que, conseguida a unidade orgânica, a divergência grande das partes componentes tenderá a fazer essa unidade altamente produtora de civilização.
("A Confederação Ibérica")

Se somos ibéricos, temos direito a esperar que tudo deve tender para uma política ibérica, para uma civilização ibérica que, comum aos países que compõem a Ibéria, a todos, porém, transcenda (a cada um individualmente transcenda).
("A síntese cultural ibérica")

Um país vale profundamente na sua civilização pelo grau com que, nacionalizando-os, aprofunda e dá novo sentido aos elementos gerais comuns a todos os países da civilização a que pertence. Um país inferior limita-se, aceitando os elementos gerais de civilização, a imprimir-lhes o cunho nacional suficiente para que não se desnacionalize, recebendo-os. Este género de países nada de essencial dá à civilização. Podia deixar de existir sem que ela sofresse; (...)
Chamo a estes países conservadores de civilização.
Um país mediamente criador não só aceita os elementos vindos do exterior, mas também os harmoniza e os intensifica em um determinado sentido; esse sentido o vinco, a psique nacional o habilite a dar-lhes.(...)
A estes países chamo países distribuidores de civilização.(...)
Finalmente há os países que criam civilização. São aqueles que aos elementos gerais que o seu tempo lhes fornece acrescentam, ao sintetizá-los qualquer cousa que não consiste só na harmonia deles, mas qualquer cousa a mais, qualquer nova direcção não contida em um ou outro dos elementos sintetizados, mas no seu conjunto, e, se em algum dos elementos, vagamente. (Tal como sucedeu), em virtude da sua estupenda acção nas descobertas, com este divino lugar da terra, a quem os deuses concederam que abrisse as portas do Longe e renovasse na distância o velho mundo.(...)
Esse período das descobertas marcou o que somos. Fomo-lo incompletamente, porque agimos inibericamente. Todos nós de aqui - portugueses, castelhanos, catalães... - só atingiremos a nossa maioridade civilizacional quando, confederados na Ibéria, pudermos, lidos na desgraça e na experiência triste de tanto passado, afrontar a Europa outra vez, reconstruir o nosso predomínio dos tempos em que o mundo era nosso, de outra maneira, para outros fins...

Que esta aspiração de todo o passado ibérico, ressurrecto agora numa voz isolada, encontre eco nos corações da Ibéria! Que todos nós, por mais que nos custe, nos compenetremos do nosso destino gladiolado! (...) Sacrifiquemos, cada um de nós, aquilo que nada vale. Tudo isto vai custar, tudo isto é muito difícil, tudo isto pesa e dói e nos separa de cousas amadas, e de um passado próximo, que, embora fosse um erro, foi o nosso passado.

Construamos em nós a Ibéria. Um dia a Ibéria será.
("Para construir a Ibéria")