11 de dez. de 2010

TAL COMO HÁ DOIS MIL ANOS ( uma reflexão políticamente incorrecta sobre o Natal )




José nem queria acreditar: depois de uma jornada daquelas, com a mulher exausta e prestes a dar à luz, não tinham lugar na hospedaria! A noite caíra entretanto e só lhes restava procurar abrigo na gruta ali próxima, onde os pastores guardavam o gado.

Ouvem-se buzinadelas e a campainha da porta toca repetidamente. É a família que se reune, trocando os votos tradicionais entre beijos, abraços e exclamações elogiosas pelo brilho luxuoso da casa engalanada. Ao fundo, a mesa posta com a toalha e o serviço das grandes ocasiões, pronta para servir requintadas iguarias.

Na hospedaria, a algazarra subia de tom. Judeus vindos dos quatro cantos da província, por causa do censo romano, aproveitavam a ocasião para fechar negócios e festejar reencontros. Esse fundo barulhento, canalizado pela noite, repercutia-se nas paredes da gruta, mas José não ouvia nada; a sua atenção ía toda para Maria, que não pudera esperar mais tempo e banhada em suor e dor se esforçava, com valentia, para fazer nascer a criança. José ainda gritara por ajuda, mas só lhe respondera o eco da sua voz, perdendo-se contra o ressoar incessante da hospedaria. Provávelmente, estariam a servir a ceia, a avaliar pelos brados de aprovação e pelas cantorias dispersas, fomentadas pelo vinho.

Puxados por mãos ansiosas e entre gritos de entusiasmo, rompem-se as fitas e rasgam-se os papéis. A excitação, ateada pela ansiedade mal contida, atinge o auge com o desembrulhar dos presentes. O ambiente lembra mais uma feira do que a evocação de algo transcendente. No fim, multiplicam-se os risos, já entrecortados por alguns bocejos, soltam-se rolhas e, por entre renovadas exclamações de prazer, é servida a ceia.

Na gruta, aquecida apenas pelo calor dos pais e pelos bafos do burro em que haviam viajado e ainda de um boi, ali antes recolhido, o recém-nascido chorava de vida. Lágrimas de alegria corriam também pelos rostos, finalmente serenos, dos pais. A noite ía alta e o novo rumor que os envolvia, precedido por uma estranha claridade, já não tinha nada que ver com a proximidade da hospedaria, onde as luzes já se haviam apagado.

Sopram-se as últimas velas e o fumo vai adensar ainda mais a atmosfera moldada pelos múltiplos cigarros e charutos acesos ao longo da noite. Voltam a vestir-se sobretudos e cachecóis. A necessidade de levar os mais pequenos ao colo e os sacos com os presentes amontoados, dificultam a saída. Beijos agradecidos e recomendações de prudência ao volante encerram mais uma noite de Natal. No dia seguinte, já se sabe que a cabeça, o fígado e o estômago vão acusar os excessos da véspera, mas tudo isso faz parte da quadra festiva...



Mais uma vez, optámos por ignorar a existência da gruta e o seu simbolismo, que aponta a via do recolhimento na caverna mais íntima do nosso ser; dizem os textos iniciáticos que será sómente ali que poderá nascer um Menino de Luz em cada um de nós... Trata-se de um processo individual, simples, natural e profundo, interno e directo, sem necessidade de nenhuma instituição eclesiástica nem de qualquer tipo de intermediário, tal como sugere a gruta original... Mas por uma questão de educação e de formatação social, aliadas ao comodismo e à distração ( o próprio estatuto da quadra inclina para manifestações de uma vaga espiritualidade sazonal, totalmente gratas ao ego e que iludem outros caminhos), acabamos por não querer saber de mais nada. Deste modo, ano após ano, repetimos, aliviadamente, o comportamento comum de sempre; ou seja, continuamos como cúmplices passivos das armadilhas da nossa própria mente, que arranja toda a espécie de desculpas e de alibis para que passemos a noite num cenário menos complicado e mais racionalmente tradicional!...

Bem vistas as coisas, continuamos clientes fiéis e permanentes daquela famosa hospedaria onde a outra Família não teve lugar! Porque, afinal de contas, as paredes da hospedaria são as mesmas das nossas mentes, projectando a agradável sensação de segurança de um mundo familiar e doméstico, sem sobressaltos ou mistérios descabidos que o ponham em causa... Na verdade, é na hospedaria que, de forma consciente ou inconsciente, passamos, não só as festas, mas as nossas vidas inteiras.

E assim decorreram dois mil anos!

Mas, após uma estadia tão prolongada, o que fazer quando nos apresentarem a conta?!...