1 de out. de 2019

DEBAIXO DO ARCO ÍRIS




































Desejai apenas o que está dentro de vós. Desejai apenas o que está além de vós. Desejai apenas o que é inatingível. Porque é dentro de vós que está a luz do mundo – a única luz que pode ser derramada sobre o caminho. Se a não podeis ver dentro de vós, é inútil que a procureis em outra parte qualquer.”

                                  Mabel Collins, “A Luz no Caminho” (traduzido por Fernando Pessoa)










                                            
Aquela pequena quinta, nas cercanias de Lisboa, para onde nos mudámos no seguimento natural das vivências ocorridas em Almourol e Sintra, foi uma espécie de batota do Céu a nosso favor, oferecendo-nos o trunfo imbatível da Natureza. Ali decorreram anos profundamente profícuos e ditosos, onde foram surgindo, como fruto do nosso próprio esforço, as primeiras grandes descobertas externas e, sobretudo, internas.

De fato, foi ali que surgiu, em maior profundidade, a noção de uma história oculta de Portugal e dos seus mistérios. Curiosamente, sendo aquela pesquisa totalmente nova, não deixava de ser estranhamente familiar. Aos poucos, fomos traçando um caminho de exploração interna, completamente insuspeito e inatingível por fora, em que as descobertas se sucediam em catadupa; claro que, de cada vez, nos deixavam mais inebriados, como se tivéssemos saboreado um sublime licor espiritual.

Na verdade, vivíamos numa redoma por debaixo do arco-íris, aproveitando esse tempo de bênçãos e de paz para adquirirmos o “músculo” físico e espiritual necessário para construir uma sólida, e, ao mesmo tempo, etérea, base de sustentação para tudo o que acabaria por surgir depois.

E de que não suspeitávamos, sequer.

Na verdade, sempre acreditámos que aquela quinta encantada seria o cenário do final feliz para o nosso caminho desta vida. Mas, como diz a sabedoria popular, “o homem faz planos e Deus ri...” Aquela quintinha mágica não estava destinada a ser o final, mas sim o princípio de tudo; um extraordinário princípio onde decorreram 21 anos da mais intensa e profunda felicidade.

Muito próxima estava a serra do Montejunto, com a sua altura iniciática de 666 metros. Uma lenda afirmava que era oca e que, por dentro, se ligava com a serra de Sintra; outros, diziam que o mar entrava por ela adentro e que se podia ouvir o seu fragor através de inúmeras cavidades espalhadas pelas suas vertentes, a que a sapiência popular havia batizado, precisamente, como “Ouvidos do mar”. Portanto, mesmo estando a uma hora da costa, o mar também era ali uma constante. Até porque os mistérios de Portugal que tanto nos assombravam se ligavam diretamente às suas descobertas marítimas, ou àquele Mar Português que ainda une o nosso país ao seu destino iniciático.

Ao lado da casa estava um enorme pinheiro manso, que foi quem primeiro, para ali, nos chamou. Refira-se que a simbologia tradicional do pinheiro o associa ao pastor Átis, que a deusa Cibele, sua apaixonada, num acesso de ciúme transformou em pinheiro; mas seja apenas uma referência mitológica ou não, dele sempre emanou uma intensa vibração amorosa, serena e suave, que impregnava todo o espaço, como se a divina parelha pagã ali tivesse feito as pazes e gozasse, em plenitude, o seu amor de milénios... E, na verdade, foi sob o seu influxo que o núcleo da família aumentou e se converteu em 7 elementos, comprovando a fertilidade dos terrenos cultivados por dentro e por fora.

 Em pleno campo, a vida foi ganhando cada vez mais sentido e perdendo forma. Passei a dedicar-me também à agricultura e, de cada vez que lavrava a terra, abria sulcos profundos por dentro de mim, que recebiam as outras sementes lançadas. Aos poucos, fui-me pautando pelos ritmos da natureza e desenvolvendo a arte do olhar junto com a arte do sentir.

Explicando melhor: o olhar comum é condicionado e limitado pelos parâmetros impostos pelo sistema mental-social, onde assenta o nosso mundo conhecido. São esses critérios definidores que nos fazem ver o mundo e a vida exatamente do modo como sempre nos ensinaram a ver o mundo e a vida, e não como realmente os poderíamos ver pelos nossos próprios olhos.

Passar desse “olhar” pré-definido para o “ver”, livre de empecilhos e abarcando horizontes sem fim, é deixar de pensar somente aquilo que nos foi ensinado a pensar; é despejarmo-nos dos conceitos impostos por outrem, de Aristóteles para cá, provocando um amontoado de ideias, critérios, interpretações, conceitos e preconceitos, que nos ocupam todo o espaço da visão; trata-se, afinal, de criar o vazio interior necessário para se poderem vislumbrar caminhos novos sobre novos mundos, ambos completamente insuspeitos, até aí.

E Portugal e os seus mistérios sempre presentes, como algo que só se poderia alcançar por dentro, mas de que nos sentíamos cada vez mais perto.

Foi quando me debrucei sobre a obra de Fernando Pessoa, para estudar a adaptação da “Mensagem” ao cinema, que senti um estrépito interior, como se tivesse rebentado um dique por dentro de mim; “avassalador” seria um termo suave para descrever o caudal que então se precipitou. E logo aquele fluxo de memórias e valores arrasou com o que restava do meu antigo “armazém de dados”, isto é, com a parte que ainda subsistia dos critérios exclusivos da mente para descrever o mundo e se manter no controle da minha vida.

Esta outra "arte do olhar", que só pode surgir com a limpeza daquele velho armazém de dados, implica a abertura de processos criativos internos, que também funcionam por imagens, surgidas a par do sentimento mais profundo. Poderemos, portanto, estar a falar de um certo tipo de cinema – não propriamente de películas, mas de um cinema da alma, íntimo, abstrato, reservado, mas que, no entanto, encerra a mais espetacular das aventuras a que um ser humano pode aspirar.

 Ao ficarem à vista os tais caminhos novos, percebi imediatamente que as corridas desenfreadas e a dedicação exclusiva a que o cinema e a televisão me obrigavam, apesar da paixão com que sempre o fazia, não me conduziriam por nenhum deles; e nada me pareceu tão importante como percorrer aqueles caminhos e tentar chegar ao mistério que deles emanava.

Foi assim que deixei de vez a vida conturbada de Lisboa para rebrotar em pleno campo, naquela casa térrea e simples, com os meus discos e os meus livros, como diz a canção eterna de Elis Regina. E onde também comecei a escrever estas minhas filosofices rurais...

Por isso, quando via o sol a subir no horizonte, as gotas de orvalho a provocarem pequenos arco-íris pelo chão, as estrelas a entrarem, desavergonhadamente, pela janela do meu quarto, ou quando passava a mão pelas carumas, ou pela terra virgem, ou por um conjunto de espigas ondulantes, sentia percorrer-me o corpo aquele mesmo arrepio de quando tocava a pele da mulher amada. E sabia conhecer a mensagem que o arrepio me trazia.

Arrepios desse e doutro tipo, sem nunca serem comuns, eram habituais naquele lugar; muitos dos acontecimentos que os provocaram continuam, até hoje, inexplicáveis, como o que sucedeu logo no princípio da nossa estadia, numa noite escura de inverno, quando voltávamos para casa após um dia de trabalho...

O carro percorria o último troço de um caminho de terra, atravessando o pinhal vizinho e, depois da última curva, esperava-nos um susto monumental: um relâmpago rasgou a escuridão e incendiou tudo em redor, como se o raio tivesse caído bem à frente do carro. Travei a fundo, o carro foi abaixo e ali ficámos, totalmente paralisados por fora e por dentro, com os corações a quererem saltar do peito.

...


Aos poucos, recompusemo-nos a custo e percebemos que não havia raio nem incêndio algum, mas que a luz fortíssima que se acendera no breu e que não se apagara, provinha de uma fonte por sobre a copa das arvores, como se fosse um holofote gigantesco. A nossa casa estava a uns bons 150 metros e essa fonte desconhecida situava-se bem por cima dela, fazendo dia claro a toda a volta. O silêncio era total, apenas cortado pelos corações que continuavam a galope.

... 


Não sei quanto tempo permanecemos ali imobilizados nem o que nos fez avançar; certamente que também pesou a inconsciência da juventude, aliada à curiosidade, que acabou por vencer o medo...

A casa continuava intensamente iluminada, e conduzi o carro, devagar, ao seu encontro. Mas assim que chegámos mais perto, a fonte da luz elevou-se e, tomando uma velocidade estonteante, desapareceu no céu, por detrás de uns montes próximos, em direção a leste.

Nunca soubemos o que foi aquilo, mas que aconteceu, aconteceu...

Claro, o mais fácil seria, agora, apontar para um OVNI, completando, ademais, o rol de eventos bizarros à nossa volta. Ou então... uma vez que, na altura, trabalhávamos em cinema: quem sabe se aquela luz não terá sido a dos projetores do filme transcendente que já antes se havia anunciado e que, com a emoção do momento, não recordámos nem ouvimos gritar “Ação”...?

E ação se fez, através da vivência de muitas outras cenas que encheram os nossos corações do sentido mais profundo do maravilhoso e do fantástico, umas vezes com mais consciência, outras menos, e que evidentemente, incluiu, também, um quotidiano revelador.

Foi desse modo que se foi realizando o filme das nossas vidas, a par da mensagem pessoana e de muitas outras que íamos absorvendo e desenvolvendo, com a admiração crescente pelo projeto espiritual que tinha Portugal como um dos seus vectores fundamentais: o Quinto Império. Estudá-lo naquele cenário maravilhoso foi sempre um enorme privilégio, e eu tinha consciência disso.

Na verdade, o sentimento que nutria por aquele lugar e que ele, lugar ou espaço vivo, com todos os Seres que o habitavam, dedicava, igualmente, a mim e a toda a família, era algo que demonstrava, em continuidade, o mais puro e genuíno Amor – aquele que não espera uma troca, mas que se dá, ou se entrega, simplesmente, sem qualquer sentido de permuta.

Foi sempre assim, naquele local abençoado.

Por isso, quando o Destino forçou um giro inesperado nas nossas vidas e nos fez mudar de Portugal para a Galiza, aquela quintinha mágica nunca esboçou qualquer esforço para nos reter; pelo contrário, revelou-se como o mais generoso e formidável cais de partida que alguma vez poderia imaginar: não só nos concedeu o impulso necessário para a saída, como nos recordou, de imediato, toda a preparação que nos havia oferecido ao longo dos anos para podermos percorrer, com outra capacidade e estrutura interna, os novos caminhos.

Relembrou que o Portugal espiritual que ali descobrimos, em tudo transcendia o seu espaço geográfico, e que a sua energia peculiar não tinha fronteiras nem quaisquer limitações físicas, podendo fazer-se sentir em qualquer outra parte do mundo. E sublinhou que essa seria uma das chaves da instauração do Império cultural e espiritual que germinaria por todos os cantos da Terra, de acordo com o universalismo lusitano.

Claro que, para nós, família que a habitámos por tanto tempo, aquela quintinha será sempre a imagem daquilo que absorvemos do mistério português: a taça com o conteúdo. Mas creio que a essência que, então, nos foi oferecida permanecerá conosco para sempre, porque a bebemos, com a consciência possível, até à última gota. Ou seja, a alma daquele espaço, o seu poder e a sua energia, continuarão a fazer parte do trabalho espiritual das nossas vidas, onde quer que estejemos.

 Foi assim, confortado por esses pensamentos e levando no coração tudo aquilo que não podia levar nas malas, que deixei Portugal e parti, com a minha admirável e corajosa família, para uma Galiza igualmente misteriosa e mágica.



E nada foi deixado para trás.









20 de ago. de 2019

A CONSPIRAÇÃO DE ALMOUROL


























Para mim, tratou-se, sem dúvida alguma, de uma conspiração.

E pode dizer-se que os Templários nela participaram...

Pelo menos, foi num dos primeiros e mais bonitos castelos templários de Portugal que tudo começou: Almourol, erguido numa pequena ilha no meio do rio Tejo e muito perto de Tomar, onde se situava a sede da Ordem Templária de Portugal.


 Devo dizer que me sinto um ser privilegiado, mas não especial, pois a estratégia em questão ocorreu sem a minha intervenção consciente, limitando-me a reagir às solicitações respetivas. E depois, inesperadamente, surgiu o Amor, que tomou conta de todo o processo...


Mas retomemos a narrativa.

O castelo de Almourol foi conquistado por D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, em 1129 e depois entregue a Gualdim Pais, então o quarto Mestre da Ordem do Templo no nosso país.

No entanto, a história assinala que, antes de ser conquistado pelos cristãos, o castelo era muçulmano e chamado Al-morolan. Portanto, também se poderá dizer que os mouros e os seus segredos lendários, terão, igualmente, contribuído para aquela conspiração nas águas do rio Tejo ...

Refira-se que as mitologias do noroeste da península ibérica, nomeadamente do norte de Portugal, da Galiza e das Astúrias, ainda denominam de “Mouros” ou “Moros” a determinados seres mágicos, guardiões de tesouros e construtores de megálitos, que dizem viver em zonas desconhecidas debaixo da terra, e que raramente interagem com os humanos.

Terão aberto uma exceção em Almourol?

Recordando melhor o que se passou, lembro-me que o barqueiro que inicialmente me conduziu ao castelo e que, nas vezes seguintes, nunca mais pude encontrar, me fitou de forma arrepiante quando entrei no seu pequeno barco a remos, mantendo aquele olhar fixo em mim durante todo o percurso, sem pronunciar uma palavra, nem mesmo para responder às minhas perguntas, o que deveras me incomodou; sobretudo, porque o seu olhar pouco ou nada tinha de humano...


Sem mais delongas, passo a explicar que me encontrava no castelo de Almourol a filmar uma versão da sua lenda, destinada à Televisão Portuguesa. O guião descrevia que um cavaleiro andante que passava na margem do rio, descobria na praia do castelo uma formosa mulher a banhar-se nas águas do Tejo e logo se enamorava dela. No entanto, a mulher, que era a Senhora do castelo, estava guardada por um gigante, que a defendia contra todos que pretendiam conquistá-la, e aos seus domínios. Por isso, o cavaleiro apaixonado não teve outro remédio senão atravessar as águas e enfrentar o gigante. Depois de uma luta terrível e de resultado incerto quase até ao final, acabou por derrotá-lo. Mas logo o seu destino ficou traçado: desse dia em diante, o cavaleiro ocuparia o lugar do seu adversário, passando a defender a Senhora e o seu castelo contra todos os perigos e assaltos forâneos.

Desconheço a origem desta lenda mas parece-me evidente uma sua leitura, ao nível simbólico-tradicional: a Dama representa a Alma e o castelo, com as suas incalculáveis riquezas, o Espírito, encerrando o caminho para um determinado Conhecimento a que somente se acede depois de duras provações, incluindo o risco de vida. Seria esse o verdadeiro Tesouro (porventura consignado em páginas secretas de livros perdidos), custodiado pelos “Mouros intraterrenos” e pelos iniciados Templários, também eles conhecedores dos mistérios em causa e que se tornaram em zelosos guardiões dos caminhos que a eles conduziam.

Como aquele que, para mim, inocentemente, se iniciou em Almourol...

Não sei, ao certo, o que ali se passou, mas no dia em que terminámos o filme, a minha vida mudara para sempre, pois também eu ficara enamorado da Princesa do castelo... Devo acrescentar que, no meu caso, tal fato nada tinha de simbólico, mas era literal e maravilhosamente verdadeiro: reconheci na Princesa a minha alma gémea e essa descoberta veio a ser coroada com cinco filhos mágicos!

No entanto, para que tudo se cumprisse como prescrito, também eu não podia deixar de enfrentar o gigante... E logo ali se iniciou um combate que não foi célere nem fulminante, como na lenda ou no filme, mas que se estendeu pelos anos fora, numa refrega sem quartel a que também se chama vida.

Desconhecendo, à partida, as implicações e consequências do processo desencadeado, fui-me dando conta que aquela luta intensa e dramática respeitava simultaneamente ao Tesouro espiritual dos “Moros”, ou à Obra misteriosa guardada pelos Templários nos subterrâneos do castelo...

Tratava-se de uma luta pelo Amor e pela Consciência.

Frente a uma força muito superior à minha, só podia tentar aparar os golpes e recuar. Por vezes, aconteciam pausas para retomar o folego, mas logo as espadas se cruzavam de novo, com maior violência ainda.

Em cada assalto recuava mais e mais.

Até que percebi que estava a ser empurrado numa direção determinada, passando através de vários cenários e de momentos da vida tão mágicos como o havia sido Almourol. E foi num desses locais, em plena serra de Sintra, que recebi o golpe mais formidável de todos.

Sucedeu no lugar da Peninha e a potência nele empregue rasgou a carne e soltou o espírito, deixando-me tombado sobre uma grande rocha. Estava vencido e tudo teria acabado ali mesmo, mas algo misterioso surgiu em cena e fez paralisar a ação, deixando aquele momento em suspenso no espaço-tempo.



... ... ...



Não sei explicar o que se passou naquela descontinuidade temporal, nem quanto durou. Quando dei por mim e abri os olhos, não havia adversário à vista e, a custo, procurei recompor-me do tremendo abalo sofrido. Todo o meu corpo tremia, mas o meu raciocínio era estranhamente lúcido e fluía em catadupas de informação, muito para além da mente. Foi como se tomasse conhecimento de zonas desconhecidas do meu corpo, por fora dos seus limites físicos.

Demasiado comovido para ficar atónito, percebi que a violência extrema do golpe havia alterado a noção que tinha de mim próprio. Mas não só: havia rasgado uma espécie de cortina temporal à minha volta, abrindo uma fenda naquele presente e deixando à mostra um caminho que haveria de percorrer no futuro, com a minha Princesa de Almourol.

E que, de novo, tinha a ver com a travessia de águas.

Não seriam mais águas de rio, nem haveria barqueiros disponíveis, humanos ou mouros; do que se tratava agora seria o mar, o mesmo que banhava os pés daquela fascinante serra de Sintra.

Na verdade, encontrava-me um pouco acima do Atlântico, junto ao cabo da Roca, o ponto mais ocidental da Europa, e por aquele mar adentro se estendia o caminho vislumbrado, unindo a serra de Sintra a uma outra serra misteriosa, no continente americano. Sabia qual era pelo nome e por visão, mas só muito mais tarde a conheci diretamente, ao percorrer o interior do Brasil e chegar a Minas Gerais.

A Obra que me contactou em Almourol, através dos seus intermediários “moros” e templários, propunha-me estender o combate com o gigante através de um longo e árduo caminho, ligando dois lados do mundo, até me deixar na frente do seu Portal maior, onde tudo se decidiria.

Era a proposta final da conspiração.

Num relance, soube de imediato que aquela outra montanha de Minas Gerais representava efetivamente a continuidade e o encerramento do mistério de Almourol. Percebi, então, que deveria conduzir a minha Princesa àquele mesmo destino, que, afinal, não lhe seria estranho nem desconhecido, pois outro não era que o lar que lhe pertencia há tempos sem fim. Como no final de um conto de fadas, poderíamos, então, tomar posse dos Tesouros ocultos no interior da montanha e que eram precisamente os mesmos que haviam sido sugeridos no início de tudo, num pequeno castelo templário no meio do Tejo, a muitos sonhos de distância.

Tudo isto, evidentemente, em caso de vitória, pois ainda havia um gigante pelo meio...

No entanto, mesmo que eu fosse derrotado, o caminho proposto entre os dois continentes e as duas montanhas teria sido aberto e ficaria, no mínimo, assinalado, assim como seria reforçada a construção da ponte espiritual entre Portugal e o Brasil, objetivos primordiais a serem alcançados. Quer isto dizer que, qualquer que fosse o resultado do último combate, aquela Obra hermética sairia sempre a ganhar...

Apesar da imensidade do plano e da desproporção das forças envolvidas, a proposta pareceu-me justa.

Sim, porque, no caso mais provável de ser vencido, eu teria tido a oportunidade de viver a maior aventura que um ser humano pode aspirar: a tal luta audaz e dedicada pelo Amor e pela Consciência; e se, desta vez, não conseguisse atingir o objetivo, ficaria mais perto de o conseguir numa próxima tentativa. Portanto, mesmo perdendo, ficaria igualmente a ganhar.

Desse modo, por mais inapto ou despreparado que me sentisse, estava internamente pronto para iniciar a demanda. E sabia que teria que dar tudo por tudo para corresponder ao propósito da insigne conspiração de “Moros” e Templários...

Lembro-me de ter fechado os olhos para confirmar a decisão.

E de ter sorrido, depois.











5 de jun. de 2019

GALIZA, A COROA DO IMPÉRIO (Um evangelho da Ibéria - Livro III)





                                 E, súbito, anoiteço
                                 E nas minhas alturas misteriosas
                                 Despontam as estrelas... 

                                                       Teixeira de Pascoaes






1. DO OUTRO LADO DO ESPELHO


                                       ...nin que ollo alerta vivas
                                          como a cordura manda,
                                          que donde menos penses
                                          tamaña lebre salta. 

                                                      Rosalía de Castro





Sabia que a Galiza era terra de mistérios e prodígios, mas não estava preparado para tanto. Por pouco não morri de susto.

Aconteceu numa noite de verão, no cimo de uma montanha galega. Sem aviso prévio, fui virado do avesso e despejado de toda a soberba intelectual racionalista que então comandava a minha vida, experimentando estados de percepção que desconhecia por completo. Tratou-se de uma experiência limite, tão bela quanto terrível, que me comoveu até às lágrimas e que, simultaneamente, me encheu de pavor.

Digamos que foi um contato com o sobrenatural, que deixou a sua marca gravada no mais fundo de mim e que ainda hoje consigo somente descrever, sem saber explicar o que se passou.

Antes de subir a montanha, não havia qualquer relação especial entre mim e a Galiza. Do território galego conhecia apenas o percurso entre a fronteira portuguesa e Santiago de Compostela, que havia visitado em criança, levado pelos meus pais. Só muitos anos depois li um ensaio sobre o Caminho das Estrelas e logo me interessei pelo tema, atraído também pela sua plasticidade, pois estava ligado profissionalmente ao cinema e existia a possibilidade de fazer uma série de filmes sobre o mítico caminho, destinados à televisão portuguesa. Para estudar melhor essa hipótese, resolvi conhecer os seus pontos mais significativos e fazer um primeiro levantamento fotográfico. Devido à minha tendência em começar as coisas pelo fim, iniciei essa viagem pelo cabo Finisterra.

As estrelas assinaladas pelo Caminho de Santiago são as da Via Láctea e não têm a ver com aqueles outros corpos celestes que também chamamos de estrelas sem o serem, de fato, e que provocam um espetáculo grandioso no céu: as estrelas cadentes. Naquele ano, coincidindo com as datas da minha viagem à Galiza, iriam verificar-se condições muito especiais no firmamento, que faziam prever uma chuva anormal de estrelas. Foi essa perspectiva que me aliciou a fotografar aquele espetáculo extra no céu do Caminho de Santiago, juntamente com a exploração das suas vias terrenas.

Mal sabia o que realmente me esperava.

Havia chegado a Nóia ao entardecer e resolvi, um pouco ao acaso, porque não conhecia a região, subir a um dos pontos mais altos que apareciam no mapa. Preparava-me para uma noite de gala e pode dizer-se, em completa verdade, que assim aconteceu.

Fotograficamente, foi um desastre total. De um momento para o outro surgiu uma neblina que me retirou totalmente a visão do céu e me lançou na mais completa escuridão. Contrariado, recolhi o equipamento e preparava-me para voltar ao carro quando um arrepio me subiu demoradamente pela espinha, prenunciando algo de muito estranho.

Inquieto, olhei em redor e vi que na minha direção avançava um banco de névoa mais espessa, que me rodeou num instante, não me dando tempo para me orientar. Parei e sentei-me numa grande pedra com que havia chocado, quase me fazendo cair.

Lembrei-me de ter lido algures que as nevoas súbitas eram frequentes na Galiza, e que desapareciam tão depressa como chegavam. Para mais, estando quase a mil metros de altitude, talvez fosse igualmente normal que o pico daquela montanha tivesse criado uma nevoa com efeito de capacete. Tudo bem, deveria manter a calma, esperar pacientemente que o efeito se desfizesse e pouco depois já estaria no aconchego do meu quarto de hotel.

Isto era o que dizia para mim mesmo, sentado com crescente desconforto físico e psíquico, abraçado aos sacos do equipamento fotográfico, mas com o coração cada vez mais aos pulos.

O tempo passava em eternidades que se sucediam e as brumas continuavam imunes e impenetráveis por qualquer lanterna. Até davam a sensação de se terem tornado mais densas, configurando como que uma galeria de tuneis que parecia não ter fim. Eu começava a ficar gelado e tremia (confesso que não só de frio), mas ao concentrar-me no frio aferrava-me ao lado físico e afastava de mim outras inquietações. Até que um impulso súbito me fez largar os sacos e ficar de pé.

Não consigo explicar o que aconteceu depois. Foi como num sonho, em que as situações mais absurdas se sucedem com toda a naturalidade. Senti-me a caminhar ilogicamente pela névoa dentro e, de súbito, houve como que uma explosão de luz sem estampido, um imenso clarão branco que instantaneamente me cegou. Quando voltei a abrir os olhos, todo o meu corpo estremeceu e quase colapsou.

Foi quando o vi.

O corpo não parava de tremer e balançava espasmodicamente entre a emoção suprema pela maravilha que contemplava e o pânico mais absoluto infundido por aquela situação, completamente por fora de todos os parâmetros que conhecia.

Á minha frente erguia-se uma construção monumental a brilhar intensamente, de uma beleza e imponência inconcebíveis, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente familiar. Num repente vertiginoso, soube que se tratava do Pórtico da Glória, feito de energia pura e emanando continuamente um poder e majestade inconcebíveis.

 Uns dias antes, havia visitado a catedral de Santiago de Compostela e muito me impressionara o renomado e excepcional Pórtico da Glória, pela sua beleza tranquila e profunda solenidade. Achei que representava genialmente, na pedra, a superação final e a transcendência do homem. Este outro Pórtico nada tinha de humano, e a sua contemplação provocava-me cada vez mais um misto de felicidade intensa e de terror absoluto. Dele se desprendiam fluxos incessantes de luz, como uma força- sentimento- energia ininterrupta, a que imediatamente se associava a noção de Glória, mas que não cabia na minha mente. No entanto, causava-me uma exaltação nova e inigualável, que ultrapassava todos os meus limites e fronteiras racionais; lembro-me de ter pensado, sem pensar, que aquela poderia ser a entrada do Reino de Deus.

Antes de prosseguir, devo dizer que sempre me tive na conta de uma pessoa equilibrada, muito pouco dada à fenomenologia paranormal e ao sobrenatural, a não ser no cinema. Por outro lado, tive uma educação católica, mas também não exercia qualquer prática religiosa e Deus era apenas uma referência longínqua, por fora do meu leque de interesses da altura. Para enfrentar aquela situação, não havia explicação que me ajudasse, nem tampouco me podia apoiar no lado metafisico. Sem saber como reagir, fiquei completamente indefeso.

E vivi, finalmente, um êxtase profundo e esclarecedor, que marcava indubitavelmente o fecho de um ciclo, com a morte daquele “eu” que reinara em mim até subir a montanha. O Caminho de Santiago que me atraíra à Galiza por um motivo colateral revelara-se, enfim, na sua verdadeira dimensão transcendental, como caminho de morte e ressurreição.

Somente depois de tal experiência é que dei conta da quantidade de monumentos funerários da mais remota antiguidade que se encontram na Galiza, bem como na sua própria tradição popular, intimamente ligada ao fenômeno da morte, tornando claro que a peregrinação a um local de morte contém o desejo, consciente ou inconsciente, de renascimento espiritual. Tanto a morte como o renascimento estão muito bem assinaladas não só nos monumentos, mas sobretudo na atmosfera especial que envolve as Rias, os campos e as montanhas de uma Galiza que também se situa, ela própria, no lugar onde morre o sol, ou no extremo oeste da Europa.

 A morte ligada ao oeste concorda com uma tradição ancestral, com inúmeras referencias míticas: é a oeste que se situam as Ilhas Bem-Aventuradas, lugar de repouso dos heróis após a morte, bem como a Ilha de Avalon, para onde se dirigiu a barca com os restos mortais do Rei Artur. E foi na costa ocidental galega que encalhou uma outra barca com o corpo de Santiago.

A própria Agartha, sanctum sanctorum do planeta, também é conhecida como “País do Ocidente”, onde não se entra com corpo físico...

Senti-me compulsivamente lançado nessa peregrinação de morte, através de um traçado novo do Caminho por fora e por dentro de mim. E eu sabia que somente me adentrando por esse Caminho com a humildade do peregrino e a vontade do guerreiro poderia, algum dia, voltar a encontrar e, dessa vez, atravessar, o Pórtico da Gloria da minha vida.

Não sei quanto tempo fiquei defronte daquele Portal e não pude reter muito mais do que ali se passou. De súbito, como num efeito vertiginoso de zoom ao contrário, tudo se desfez. Tive alguma dificuldade em reequilibrar os meus parâmetros de visão, mas quando consegui voltar a focalizar distingui o planeta Vénus num céu aberto e totalmente limpo, brilhando como estrela da manhã e anunciando o alvorecer próximo de um novo dia.

Em volta, os picos das montanhas vizinhas faziam-me outra vez companhia. O nevoeiro cerrado desaparecera por completo, deixando apenas uns farrapos de neblina pairando no ar. O saco com o equipamento fotográfico estava a poucos metros e, um pouco adiante, alheio a tudo o mais, o meu carro esperava por mim.


              ****

Quando me sentei ao volante, a minha mente era um vulcão. A componente racional tentava por todos os meios retomar o controle e trazer-me de volta à realidade conhecida, empenhando-se em me fazer ir embora dali o mais rápido possível e esquecer o sucedido. Mas as razões da mente não contavam com aquelas outras do coração, imerso num absurdo estado de felicidade que não me fazia sentir ameaçado. Um cansaço bendito, vindo do fundo de mim, abateu-se sobre o desfilar sem fim dos argumentos lógicos. Recostei-me no assento e mergulhei num sono profundo.

Acordei já com o sol alto, e vivendo as últimas imagens de um sonho extraordinariamente nítido com o Pórtico da Glória, no cimo daquela montanha. No sonho, dirigia-me a ele e preparava-me para cruzar para o outro lado, até que percebi que não tinha corpo e, ao constatá-lo, acordei. A minha mente aproveitou para pôr de novo em dúvida o sucedido na noite anterior: fora com toda a certeza um sonho, que havia continuado daquela maneira. Mas fosse o que fosse, havia estabelecido em mim uma relação com a Galiza, inexistente até ali.

De fato, em sonho ou num outro estado desconhecido, sabia que vivera uma experiência importante para o resto da minha vida, completamente por fora da realidade conhecida. Sentia ainda bem fresca uma vivência iniludível e que, seguramente, teria efeitos e consequências. Provavelmente, tudo continuaria por fora na mesma, pois o que havia agora de diferente era por dentro de mim; e mesmo mergulhando no quotidiano, ou embrulhando-me nas questões mais complicadas da vida, sabia que nada me poderia fazer esquecer aquela noite numa montanha longínqua, onde senti violentamente, mas apenas ao de leve, o toque sobrenatural da Galiza.

 Para não dar ao sucedido uma conotação religiosa, que poderia levar a outras interpretações menos corretas, talvez pudesse dizer que, por momentos, havia atravessado para o outro lado daquele espelho que, até ali, refletia a minha realidade.

Quando comecei a descer a montanha, uma manhã não menos gloriosa despejava-se pelas vertentes. Cruzei-me com águias e corvos que me davam os bons dias e atravessei campos exageradamente verdes, salpicados de branco e negro pelas inúmeras vacas que me olhavam num silencio curioso, ou que também me saudavam entoando demoradamente e no tom preciso o OM sagrado...

Lavei a cara numa ribeira que corria, cristalina e brilhante, pelo meio das pedras, formando uma pequena cascata à beira da estrada. Ouvi-a claramente rir-se de mim, mas com carinho, oferecendo-me a sua frescura, e ri-me, igualmente, de mim mesmo, da minha tremenda atrapalhação da véspera e do terror metafísico que sentira.

A razão encolhia a sua arrogância, mas não ía largar sem mais todo o poder de que dispunha. Ela sabia que o estado de exaltação em que me encontrava não iria resistir aos embates da vida quotidiana, mas não sabia o quão profundo estava gravado em mim aquele sabor agridoce e exultante da magia da Galiza, e que eu já não era o mesmo.

De fato, entre mim e aquela montanha decorreu um misterioso processo interativo que nos uniu para a vida. Desde logo, ali se selou uma relação intrínseca, que depois também gerou, só o percebi com o passar do tempo, a necessidade de uma maior proximidade física; na verdade, sentia cada vez mais a inevitabilidade do meu corpo voltar a interagir com o corpo da Galiza, tal como havia acontecido no cimo daquela montanha. E esse novo desiderato poderia, sim, constituir uma alteração considerável na minha vida; tanto foi assim que, alguns anos passados me mudei, com o meu núcleo familiar, para Santiago de Compostela.

Mas muitas outras mudanças significativas ocorreram antes.


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Por muito que repetisse para mim mesmo que era um processo interno e que, por fora, tudo continuaria na mesma, eu estava muito enganado. Na verdade, o que se tinha passado correspondia ao despertar de um vulcão que não tardou muito a entrar em atividade, precipitando-se por todas as vertentes da minha vida.

As montanhas da Galiza tinham posto muita coisa em causa e comecei, então, a varrer o meu “armazém de dados”, onde se acumulavam conceitos, preconceitos, teorias, rótulos, classificações e análises que definiam e condicionavam a minha vida .... Decidi que romper esse “casulo” era o combate que mais me interessava travar comigo mesmo e percebi, claramente, que aquele era o sentido da rebeldia que o poeta e pensador Fernando Pessoa apelidou de “Novas Descobertas”; assim sendo e, com a consciência em livre expansão, resolvi, também, juntar-me à mesma causa.

Por motivos profissionais, eu tivera que ler a obra de Fernando Pessoa, cuja “Mensagem” queria transpor para o cinema e, quanto mais lia, mais me identificava com o seu pensamento; foi desse modo, sem estranheza ou esforço algum, que me defrontei com a questão da tradição portuguesa do “Quinto Império”. Na verdade, mais do que um conhecimento, tratou-se de um inequívoco reconhecimento. Senti como se toda aquela temática estivesse latente por dentro de mim e, de súbito, caísse o pano que a ocultava, descobrindo um sentido, um propósito e um caminho completamente insuspeitos até aí.

A minha vida estava a ponto de mais uma grande convulsão interna, na sequência da outra acontecida na Galiza. Mas que relação existiria entre as esperanças espirituais mais profundas do povo português e as montanhas mágicas do noroeste peninsular? O que tinha a Galiza a ver com o Quinto Império?

Tal como expliquei em livros anteriores, o Quinto Império corresponderá a um novo ciclo espiritual da História do mundo, assentando na Cultura e na Liberdade, no qual a igreja romana de Pedro dará lugar à igreja gnóstica de João ou do Espirito Santo, tanto no Ocidente como no Oriente. A sua implantação tem tudo a ver com a Tradição Lusitana e com o trabalho que os portugueses vêm desenvolvendo ao longo da História, umas vezes a descoberto, outras debaixo das asas do mistério...

Portanto, impunha-se realmente a questão: o que tinha a Galiza a ver com o Quinto Império?

Mais uma vez, não tinha resposta, mas sabia que tinha que a encontrar. E que não seria pelo lado de fora que chegaria a alguma conclusão. Percebi, então, que tinha perante mim o desafio mais ousado, louco e maravilhoso que alguma vez imaginei: ler uma História que não está escrita, percorrer Caminhos que não existem e cruzar um Pórtico que não é deste mundo...

Um absurdo total!

Só podia rir de mim mesmo e fazer minhas as palavras de António Vieira: “Não há maior comédia que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou zombar do mundo, não tenho mais que olhar para mim. ”


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Para além do meu núcleo familiar, que sempre apoiou e acompanhou todas estas vivências, o meu refúgio era o trabalho. O cinema preenchia uma grande parte do tempo e, na minha cabeça, pairavam muitos filmes por fazer e outros tantos sonhos por cumprir. No entanto, não tardei a perceber que a energia tremenda que essa vida exigia me fazia falta para percorrer o caminho interno, que se tornara o mais importante para mim. Com a noção de tudo isso e de comum acordo com a minha mulher, cúmplice perfeita nessa busca, arrumámos a vida citadina de Lisboa, fizemos as malas e mudámo-nos para o campo.

Essa atitude acabou por se revelar fundamental, pois a natureza converteu-se no mestre de sabedoria que faltava. Tinha sido em plena natureza que me haviam confrontado com o Pórtico da Glória e seria também através da natureza que haveria de o reencontrar. Em pleno campo, a minha vida foi perdendo forma e ganhando sentido. Aos poucos, ía sendo iniciado numa outra descrição do mundo, num outro caminho, e tudo me fazia substancialmente mais feliz.

O termo “iniciado” deriva do latim “initium”, que significa início ou começo. Portanto, o iniciado é aquele que é introduzido numa determinada via de conhecimento e com ela estabelece um vínculo. Normalmente, através de uma instituição. No meu caso, tudo se passou de forma espontânea e assim teria que seguir até ao final. Ou seja, todo o apoio teria que me chegar por dentro, pela via interna, passando do abstrato para o concreto. Deste modo, não poderia nunca ser o pensamento a dirigi-lo, sobretudo um pensamento pré-definido e condicionado por critérios pré-existentes. Acima de tudo, teria que me apoiar na espontaneidade, como referência da alma.

Claro que a transformação interior poderá ser auxiliada pelo lado de fora, e tinha o exemplo do que vivera no Caminho de Santiago. Ao percorrer um caminho assim, seja o de Santiago ou qualquer dos outros caminhos existentes no mundo, o ritmo do peregrino acerta-se com o compasso da natureza, estabelecendo-se uma sintonia com a terra, as árvores, as rochas da montanha, as aguas dos regatos, as borboletas que esvoaçam..., possibilitando a entrada num estado de receptividade ou de vaso comunicante com os ritmos do próprio planeta que, conforme a profundidade do alinhamento, o poderão conduzir a um processo de transformação e de ascese.

Por outro lado, também existem locais muito especiais na superfície da Terra que oferecem inúmeras dádivas de energia. Esses vórtices, maiores e menores, refletem o apoio telúrico do planeta aos homens que habitam a superfície e fazem esbater as fronteiras entre planos e mundos, a ponto de se tornarem, nalguns locais, extremamente tênues ou mesmo translúcidas.

Alguns desses lugares correspondem aos chamados “chakras” planetários ou outros, de menor dimensão, segundo um conceito que desenvolverei mais adiante.

Muitos desses “locais de poder”, como alguns os chamam, foram assinalados pelo homem desde os tempos da pré-história. Os menhires, as pirâmides, as inscrições misteriosas em cavernas, os templos grandiosos ou mesmo as simples capelinhas perdidas na paisagem, muitos deles demarcando a posição das veias telúricas da terra, comprovam que o homem antigo detinha um conhecimento notabilíssimo sobre o mundo que o rodeava e que era sensível àquelas forças invisíveis, assinalando, para a posteridade, os referidos locais.

No entanto, a nossa atual civilização parece estar fora dessa posteridade, pois continua a ignorar ou a desprezar essa dádiva, substituindo-a pelo regime absolutista da razão, apoiada num fantástico progresso tecnológico e científico. O problema é que, com o estado a que chegou o mundo, estamos em risco crescente de perder tudo aquilo que, com suposta vantagem, veio substituir aquele outro conhecimento ancestral. O que também significa que a roda do destino não é isenta de ironia...

Resta dizer que nem sempre, ao longo das eras, os referidos locais de poder permaneceram imutáveis. Muitos poderão estar ativos por milénios, serem desativados e voltarem à atividade, ou surgirem outros, de acordo com os tempos e o desenrolar da história do homem. Portanto, o verdadeiramente importante não serão propriamente os locais, mas o conhecimento que permite detectá-los e utilizar a respetiva energia.

No meu caso, e por motivos que desconheço, o lugar onde me defrontei com um poder inimaginável e que representou a morte da vida que levava até aí, foi uma montanha na Galiza. Por isso, a Galiza passou a fazer parte integrante de mim e da minha nova vida. Entrou no meu ADN. E apesar de saber que o percurso que me foi apontado é interno, é na Galiza que também oiço bater o meu coração. Por vezes, confundindo-se com o estalar das ondas na noite, com a aragem que agita a neblina num vale encantado ou com o doce calor do sentimento que emana da terra generosa e meiga, que agora também considero como minha.


Por direito de morte e renascimento.













2.  A PAR E PASSO

  Se os povos na terra se unissem sempre pelos laços espirituais, se os acidentes da história não predominassem por vezes, ninguém estaria mais unido que Portugal e a Galiza.   
                                                                                                               Leonardo Coimbra








Portugal e Galiza são a extensão natural um do outro. Detêm conjuntamente aspetos muito significativos da história, da língua, da cultura, do temperamento e do sentimento dos seus povos, experienciando em comum uma profunda saudade por algo indefinido que passou, mas que, simultaneamente, se apresenta como futuro.

Pode dizer-se que Portugal e Galiza são irmãos de muitas vidas. Por isso, ao estudar-se a História da Galiza, estudam-se também, os primórdios da História de Portugal, como ramos de uma árvore que tomaram direções aéreas distintas, mas que continuam ligados entre si pelo tronco e alimentados pelas mesmas raízes.

Podemos constatar tudo isso numa breve incursão por essas raízes, mergulhadas numa terra que hoje se reparte pelos dois territórios. Sem necessidade de ir mais longe, partimos do século IV, onde os atuais Galiza e Portugal, então denominadas Gallaecia e Luxitania, eram províncias de um império romano em decadência.

Por essa altura, mais precisamente no ano 340, nasce Prisciliano, personagem quase desconhecido e que, sob a tónica da verdade e da liberdade, se entregou à defesa dos valores do cristianismo original, corrompidos pelo poder crescente da Igreja Católica. 
Foi executado em 385, a mando da própria Igreja, cada vez mais avessa àquelas ideias estapafúrdias e totalmente descabidas na nova linha de culto. Sobre Prisciliano, disse Agostinho da Silva: “Nada ou quase nada se conhecendo a seu respeito, posso imaginar para ele e lho atribuir tudo quanto a mim me apeteceria ser e proclamar. ” Pensando exatamente do mesmo modo, considero que os valores em causa se converteram na tónica perene dos territórios que serviram de palco à vida de Prisciliano e acompanharam a sua ânsia desmedida de liberdade: Gallaecia e Luxitania, ou Galiza e Portugal.

Pouco depois da sua morte, em 409, chegaram os Suevos à província romana da Gallaecia e aí se estabeleceram definitivamente. Faziam parte de uma série de povos germânicos que deambulavam pelo império e que foram bem recebidos pelas populações locais.

No ano seguinte, o rei suevo Hermerico consegue fazer reconhecer o Reino Galego, assinando um pacto com o imperador romano Honório, no qual aceitava, ainda que teoricamente, uma vinculação a Roma. Estava constituído o primeiro reino medieval da Europa, compreendendo os territórios que são, atualmente, a Galiza, Astúrias, Leão e todo o norte de Portugal, até ao rio Douro. A capital era Braga que, nos dias de hoje, ainda é a capital da província portuguesa do Minho.

A autoridade romana enfraquecia paulatinamente, chegando mesmo a desaparecer em grande parte da Península e o sucessor de Hermerico, de seu nome Requila, estendeu o reino galego dos suevos pela província da Lusitânia, chegando até onde, hoje, se encontra Lisboa. As novas fronteiras mantiveram-se estáveis, embora sob diferentes domínios, até ao século VII, permitindo uma fusão dos galaicos, que eram cristãos, com os suevos, convertidos ao cristianismo em 449 pelo rei seguinte, Requiário, misturando-se, então, com os lusitanos e mesmo com os romanos que ali seguiam. Foi desse caldeiro de culturas que nasceu o espirito da nação galega, sobrepondo-se a qualquer diferença étnica, às flutuações das políticas e às vicissitudes das guerras travadas depois com os visigodos, aliados do imperador de Roma.

De fato, a consolidação do reino galego constituía uma ameaça ao domínio, ainda que enfraquecido, de Roma. A situação foi denunciada pela antiga aristocracia galega, que havia perdido os seus privilégios, e em 456, Roma fez avançar as tropas do visigodo Teodorico. Na batalha do rio Orbigo, perto de Astorga, os galegos foram vencidos e o rei Requiário, que se retirara para onde é hoje a cidade portuguesa do Porto, foi capturado e morto.

Poderia ter sido o fim do reino galego, mas o novo rei Maldras conseguiu negociar com os visigodos e manter a união do povo. O seu sucessor, Regismundo, assinou uma paz duradoura com os visigodos, mas teve que abandonar o catolicismo como religião oficial, trocando-o pela religião arriana dos visigodos que, aliás, era a professada anteriormente pelos suevos. E tudo se manteve assim até ao ano 550 em que, reinando Carriarico, chega à Galiza um tal Martinho de Braga, ou de Dumio, bispo católico que se tornaria no “Apóstolo dos Suevos” e que, mais tarde, viria a ser canonizado santo.
Estando o reino a sofrer com a peste, Martinho não só o livrou da epidemia como curou o filho do rei. Isso fez com que Carriarico rompesse com os visigodos, fazendo retornar os galegos ao catolicismo. É então que o futuro S. Martinho funda o mosteiro de Dumio junto à capital, Braga, que viria a tornar-se no centro cultural mais importante do reino.

No ano 561, sob o rei Teodomiro (que havia sido salvo da peste e educado por Martinho) e sob a influência do santo, reuniu-se o I Concilio Bracarense, instituindo-se como órgão assessor do rei, um sistema inovador e precursor de governo adoptado depois por outras monarquias, como a visigótica. Mas quando morre o rei Miro, filho de Teodomiro, o rei visigodo Leovigildo, aproveitando-se do conflito sucessório, anexa a Galiza. Corria o ano 585.

Entre esse ano e 711, a Galiza foi uma das províncias do reino visigodo, mas sempre lhe foi reconhecida uma situação especial pela sua particular especificidade, chegando mesmo alguns reis visigodos a honrarem os seus herdeiros com o título de reis da Galiza.

A roda do destino ía girando e, do mesmo modo que um conflito sucessório fizera desaparecer o reino galego, também foi um conflito idêntico que condenou o reino visigodo. Em 701, Vitiza acedeu ao trono de Toledo, mas foi deposto por Rodrigo. Os partidários de Vitiza aliaram-se, então, aos árabes, que haviam desembarcado na Península em 711 e destroçaram Rodrigo, assim como todo o reino visigodo.

Iniciou-se, assim, um novo período na história da Península Ibérica. Os recém-chegados árabes instalaram a sua capital em Córdoba e daí governaram o reino da Espanha. No entanto, não ocuparam a antiga província romana da Gallaecia, do rio Douro para cima. Aliás, as boas relações dos galegos com Córdoba, um poder tolerante, como o de todas as culturas avançadas, permitiu-lhes reintegrar os territórios ao sul do Douro que, anteriormente, pertenciam ao reino suevo. Renascia, assim, de modo inesperado, o reino galego, demarcando-se numa península dominada pelo crescente muçulmano.

O ano 813 foi marcado pela mítica descoberta do túmulo do Apóstolo Santiago, servindo para fortalecer o prestígio do reino e o início da independência religiosa da recém-criada Compostela face à centralizante igreja moçárabe de Toledo.

Os dois séculos seguintes marcam o início da reconquista cristã da península, a partir do norte, e a consolidação das monarquias feudais ali existentes. Em 1072 era Garcia que reinava sobre um território que compreendia a Galiza atual e parte de Portugal até Coimbra. Em conflito com o irmão, acabou capturado por ele, morrendo na prisão. O vencedor adotou o nome de Afonso VI, governando os reinos de Leão, Galiza e Castela e é no seu reinado que se começaram a desenhar os futuros Portugal e Galiza.

A chegada à corte de Afonso VI dos primos borgonheses Raimundo e Henrique, para auxiliarem a reconquista peninsular, foi determinante. O rei resolveu casá-los com as suas filhas Urraca e Teresa, entregando a cada um determinado território. Para si, reservou o governo direto de Leão e Castela, tendo entregue o Condado compreendendo a atual Galiza, a Urraca, casada com Raimundo de Borgonha. O território ao sul do rio Minho, denominado Condado Portucalense, foi entregue à sua outra filha, Teresa, casada com o Conde D. Henrique.

Henrique e Teresa foram os pais de Afonso Henriques que, pela graça divina, manifestada na força da espada, se veio a tornar no primeiro rei de um Portugal independente. No tratado de Zamora, assinado em 1143, o rei de Leão reconhece a independência do Condado Portucalense, a partir daí denominado Portugal, e o seu reconhecimento pela Santa Sé, indispensável na época, data de 1179.

O território de Portugal, separado a norte do reino da Galiza, Leão e Castela, foi depois sucessivamente alargado até ao extremo sul da Península, com a reconquista aos ocupantes muçulmanos desses territórios. Cem anos depois, em 1250, reinando em Portugal Afonso III, ficaram definitivamente estabelecidas as fronteiras lusitanas, que se mantêm na atualidade. Tal fato, converteu Portugal na nação com as fronteiras mais antigas da Europa e uma das mais antigas do mundo.

Ao longo da História, inúmeras vezes reis portugueses conquistaram posições na Galiza, mas, por uma razão ou por outra, acabaram por perdê-las para Castela. O que permaneceu vivo foi o desejo não cumprido de uma reunificação natural, configurando todo o rosto da Ibéria voltado para o mar...



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A perda da Galiza, em detrimento da expansão dos portugueses para sul, terá sido um erro ou “defeito de origem”, na opinião de Agostinho da Silva, que assim o lamenta: “nunca se devia ter abandonado a Galiza; se havia que morrer, havia que morrer junto com ela; Portugal tem culpa das lágrimas de Rosalía, e cada emigrado que não volta a ele o acusa..."

Quanto a mim, o grande problema ali surgido é que Portugal abandonou uma parte de si mesmo, pois o seu corpo total (físico-geográfico e energético) inclui a Galiza; ou seja, a partir do momento em que desistiu da Galiza, Portugal deixou de ser inteiro, ficando com a alma comum partida e separada. 

Sem querer estabelecer comparações exageradas e desajustadas, porque os objetos são distintos e se situam em níveis completamente diferentes, não posso deixar de constatar a similitude da experiência que vivi na Galiza com este processo português, onde ressalta a necessidade absoluta de reunir as duas partes separadas da alma mater.

 Por isso, parece-me legítimo supor que aquela minha vivência continha, implícita, uma chamada de atenção para este processo maior envolvendo Portugal e Galiza, dois amores que permanecerão sempre guardados no meu coração, mesmo que dividido em duas partes... Seja como fôr, a realidade para ambos os casos é que não se poderá cumprir o que houver para cumprir sem que, primeiro, se reunam todos os pedaços separados, sejam da alma ou do coração. 

No caso de Portugal (obviamente o que mais interessa, para que muitos outros se possam integrar no respetivo processo), terá que se perfazer com o território perdido a norte; isto é, deverá reunir-se de novo com a Galiza, não política, mas espiritualmente.

E sem mais demoras.


Não são somente os portugueses que falam desta reunião de alma. Na Galiza, muitos autores ligados à revista NÓS, surgida em 1920, confessam que a Galiza tem ânsia de “viver de novo, de voltar ao seu ser verdadeiro e imortal. ” Também Castelao fala numa missão transcendente da Galiza: “a de atrair Portugal à comunidade da grande família hispânica. (...) Não esqueçamos que a Galiza tem as chaves da única porta que pode comunicar os dois espíritos e os dois interesses. A Galiza é a chave de toda a regeneração hispânica. ”

Deste outro lado, Agostinho da Silva recorda que os “Portugueses não começaram pela terra. De terra quiseram apenas aquilo que deles era e Castela lhes tomaria se pudesse. E tão pouco ansiosos eram de terra que mesmo uma parte do que com eles deveria ficar, facilmente a deixaram entregue ao ímpeto centralista da meseta, por aqui cometendo sua primeira falta histórica, a de terem desistido da Galiza. Para o êxito imediato, que era o de garantir uma fronteira que defendesse da Espanha, tal como ela se ia formar, já preparando o caminho de Carlos V, deixaram Galiza entregue à sua sorte: os cavaleiros portugueses traíram as meninas que nas cantigas de amigo choravam sua ausência e ansiavam por suas romarias. As cervas do monte que volviam às aguas, as encontravam desertas; rios de lágrimas que nunca mais pararam de correr.                
Deus, porém, para seus planos, tem paciência de eternidade. Tentou, com Portugal, que ao menos a tarefa possível se fizesse, a de abordar a todas as praias, a de estudar todas as correntes, a de se maravilhar diante de todos os novos mares e os novos céus; e ainda lhe permitiu a coisa mais extraordinária que porventura fez, a de plantar no firmamento novo para o sul aquele Cruzamento que era a santificação de todas as encruzilhadas da velha terra que ia dos senhores do Douro aos senhores da Biscaia. O que está plantado no rumo do outro pólo do Mundo é o casamento místico das noivas da Galiza e dos marinheiros de Portugal. “

Este “casamento místico das noivas da Galiza com os marinheiros de Portugal” não será também uma referência à reunião das duas partes da alma comum galaico-lusitana? E porque se situa essa boda futura “no outro pólo do Mundo”?...

Essa é a outra grande questão que procurarei, mais adiante, responder.














3. A GARANTIA

       A Galiza vive na minha alma. É a sua aspiração. 
                                                    Teixeira de Pascoaes










A paixão pela serra do Marão e pela Galiza foi uma constante na obra do escritor e poeta português Teixeira de Pascoaes: “É na Galiza que principia o Marão, erguido, ao longe, em frente da minha janela, como o templo grandioso da Saudade. Da Galiza veio Camões; e é para a Galiza maternal que dirijo sempre os meus olhos de filho amoroso e obediente. “


O seu livro “Marânus” foi deste modo dedicado:

“Galiza, terra irmã de Portugal
  Que a divina Saudade transfigura,
  A tua alma é rosa matinal,
  Onde uma lágrima de Deus fulgura.
  Terra da nossa infância virginal,
  Altar de Rosalía e da Ternura,
  Dedico-te estes versos que, uma vez
  Compus em alto cerro montanhês. “

Teixeira de Pascoaes também nunca escondeu a sua admiração ou mesmo, devoção, por Rosalía de Castro, a poetisa galega que cantou a Galiza como ninguém:

“Divina Rosalía. Ó santa protetora
  Da terra da Galiza, a nossa terra Mãe!
  (...)
  Divina Rosalía. Ó virgem da tristeza!
  Coração de mulher que abrange a Natureza
  E num canto imortal a converteu.
  (...)
  Divina Rosalía.
  Senhora da Saudade e da Melancolia... “



Aquele forte e feliz sentimento do poeta de Amarante sempre encontrou correspondência, igualmente arrebatada, do lado galego, como explicita Vicente Risco: “Teixeira de Pascoaes é noso, noso, polo sentimento, se non fora como el di ”no sangue e na alma”. (...) Bem nos podemos gabar ao proclamálo irman galego, ao invocar o seu nome, já tão cheio de glória aquén e alén das fronteiras da Lusitânia, tan cheo de significado para nós pola calidade do seu pensamento e mais pola índole vaga e saudosa do seu estro sublime. “

Na correspondência trocada entre ambos, Pascoaes insiste em afirmar que “a Galiza é irmã e mãe de Portugal. Portugal saiu dos seios da Galiza; depois abandonou a Mãe e foi por esses mares fora; fugiu como o filho pródigo. Mas é chegado o tempo do seu regresso ao lar materno. Temos de voltar a viver espiritualmente em comum. Assim o exige o destino das nossas Pátrias que ainda não está cumprido...”

Desde que o meu corpo se fundiu com o corpo da Galiza, numa união para a vida, pude entender e confirmar que tudo o que Teixeira de Pascoaes e depois Leonardo Coimbra haviam escrito sobre a Galiza, correspondia à mais absoluta realidade, e que até ficava aquém do que eu próprio experimentava.

Dizia Leonardo que o lirismo galego era irmão gêmeo do lirismo português, pelo que “explicando a Galiza, explica a nossa alma. ” E numa outra de muitas passagens inspiradas, afirmava que a Galiza e Portugal são como o porto onde o homem faz a passagem para o Céu; são “os dois grandes romeiros do Infinito”, o “Lar onde pela tardinha, se fecha em ternura (...) o coração do homem subindo a Deus! ” 
Mas mais ainda do que constatar aquelas verdades, descobri que a terra galega tinha voz e falava comigo! Não só a terra, como os rios e as ribeiras, as ondas do mar, as árvores, especialmente os carvalhos, os campos e os ares e, sobretudo, as montanhas.... Pode parecer uma estafada construção literária, mas a verdade é que eram vozes autênticas que me falavam por dentro, começando sempre por me dizer a mesma coisa: que os valores da alma lusitana estavam ali bem guardados!

Mas a que valores se referia?

Já em 1911, Teixeira de Pascoaes, que nesse ano fundara com outros autores o movimento “Renascença Portuguesa”, fazia notar que Portugal, depois de haver atravessado uma época de esplendor, havia mergulhado durante séculos na maior decadência e na morte da alma, pelo que cumpria despertar o espirito português para que realizasse “ a sua obra de perfeição social, de amor e de justiça. ” Pascoaes queixava-se amargamente do estado deplorável da Pátria e da necessidade imperativa de a sacar da “sepultura moral e física em que está prostrada. ” Para isso, sonhava com recuperar os valores perdidos da alma lusitana, não como um “passadismo” inútil e vazio, senão como um “regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida. ”

Portanto, o que estava e continua em causa, porque seguimos espiritualmente exauridos, é a recuperação de uma identidade espiritual expressa pelos valores da alma, e isso não se pode confundir com qualquer volta ao passado, nem tampouco com o presente ou o futuro, pois é um estado interno e intemporal. Sublinhava Pascoaes que a ideia era “reintegrar a alma da nossa Raça na sua pureza essencial, revelar o que ela é na sua intimidade e natureza originária para que tome conta de si própria, e se torne ativa e criadora, e realize, enfim, o seu destino civilizador. “

Ou seja, pela minha visão, que rompa o nevoeiro que, desde então, se vem adensando e mostre ao mundo os valores e o caminho do Quinto Império. Pascoaes afirma que “será o advento da Era Lusíada”, permitindo a Portugal oferecer ao mundo o passo seguinte, espiritual, do contributo anterior e material das Descobertas, porque a alma lusíada “precisa, enfim, de cambiar espiritualmente o que materialmente iniciou. “

Mas a Renascença Portuguesa não encontrou unanimidade entre os seus membros fundadores e foi mais um movimento que falhou, continuando Portugal à deriva, comandado por “forças morais” que de moral pouco tinham, e que também não eram “novas” nem “essencialmente lusitanas”. Certamente por isso, Pascoaes escreve ao galego Álvaro Cebreiro dizendo que “a Galiza é a minha Pátria verdadeira, porque só nela encontro almas irmãs da minha! ”

Também a mim me custou muito entender como é que Portugal, sendo um país de marinheiros experimentados, havia tão desastradamente perdido o norte, isto é, os valores da sua alma mater... A não ser que o desnorte em que Portugal passou a viver (e que, em termos espirituais, não se alterou), fizesse parte de uma determinada estratégia, ou mesmo de um processo iniciático, em que a morte constituísse a prova máxima para chegar à transformação e à superação de si próprio.

Analisando bem todas as circunstâncias, tenho, para mim que foi esse o caso. Vejamos: a partir do século XVI, e após o esplendor interpretado pelo voo fabuloso da Ave (ou de Avis, a sua segunda dinastia), Portugal encetou um outro período da sua História e começou deliberadamente a morrer na batalha de Alcácer-Kibir, que determinou o final daquela dinastia.

E sobreveio o presumível sono iniciático.

Esse sono foi-se tornando cada vez mais pesado e espesso, ao longo dos séculos, até provocar o esquecimento do próprio processo e se transformar na mais terrível das mortes – a morte da consciência da nação. Mas, realmente, talvez fosse essa a suprema prova: descer ao mais fundo dos fundos e morrer sem remissão, para depois, um dia, renascer das próprias cinzas como a Fénix, a Avis sagrada da mitologia...

Por muito saudável que digam estar a economia, o Portugal de agora continua a errar às cegas, como um zombi, no limbo obscuro e gelado da História. E por mais que soem discursos branqueadores dessa situação, por parte de um poder a quem só o poder interessa, a realidade nua e crua é que o país perdeu a sua identidade e, portanto, o seu propósito espiritual como nação.

Definitivamente, este não é o Portugal anunciado por António Vieira, pelo Bandarra e por Fernando Pessoa; aquele Portugal que, segundo eles, se levantará, um dia, como "luz das nações" e dará novos mundos ou valores ao mundo, impulsionando a criação de um Império de consciência e de cultura, enquadrando a manifestação do Cristo Redentor Encoberto...

Teria sido apenas um delírio de visionários perturbados? ...


Creio que não, e a primeira coisa a fazer será recordar a História, não para voltar ao passado, que não serviria de nada, mas para construir os alicerces do presente, sobre o qual vai assentar o futuro. Ou seja, o tal “regresso às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida ”, como defendia Pascoaes.
Para isso, talvez seja mesmo necessário baralhar e dar de novo, como também dizia Agostinho da Silva: “ baralhar e dar de novo começa pelo princípio, e o princípio, para nós, é o Condado Portucalense. Então quais as relações que poderia ter havido entre o Condado Portucalense e o Condado Galego? É evidente que o D. Afonso Henriques era um menino e tinha a impaciência própria da meninice. Hoje podemos ver que talvez tivesse havido uma precipitação de manobra. O negócio “maquiavélico”, no bom sentido, era manter a possibilidade do Condado Portucalense e o Condado Galego seguirem juntos um caminho na História.
A coisa não deu. Mas, como se trata do tal baralhar e dar de novo, temos aí um problema: ver como é que nós podemos voltar às origens e rever toda a história de Portugal. O que nos levanta uma outra questão: como nós não sabemos qual é a verdadeira máquina da história, como é que as coisas funcionam, toda a vontade que nós temos de dizer que na história alguma coisa foi errada, ou certa, é inteiramente anticientífica. Só podemos dizer que na história houve tal acontecimento. Se ele foi bom ou não, não sabemos. O que sabemos é que ele sucedeu daquela maneira, naquela altura. Portugal seguiu a sua evolução, a Galiza fê-lo para o lado de lá; são de facto os noivos que os pais não deixam casar, de um lado e outro do rio. De maneira que o problema quanto às origens é um e o da relação Portugal- Galiza é outro. Deixemos então o primeiro porque ele vai ser implicado pelo outro, o do futuro. “

Ora o problema do futuro de Portugal, qualquer que seja, terá que passar sempre pela união com a Galiza, pois é no seu ventre que se encontram as águas amnióticas já grávidas daquele futuro, igualmente presente nos ares cristalinos que deixam antever outros mundos, ou nas montanhas que, ponderadamente, se abrem.

A Galiza interna das maravilhas, profunda, mágica e prodigiosa...




                             ****


A Galiza, ocupando o noroeste peninsular, encima o perfil ibérico voltado para o mar. Ou seja, constitui a testa e a parte superior do crâneo da "Cabeça da Europa".



















Sendo assim, convém especificar melhor essa noção, que surge no seguimento de uma tradição muito antiga. Os poetas portugueses Luis de Camões e Fernando Pessoa, ambos, curiosamente, de origem galega, retomaram aquele legado e coincidem em afirmar que a Europa, representada antropomorficamente como um corpo régio, possui como cabeça a Península Ibérica.

























Escreveu Camões em “Os Lusíadas”, referindo-se à Ibéria pelo seu nome antigo de “Hispania” ou “Espanha”:

 Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda ...

E, mais adiante, especifica:

 Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o Reino lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa ...


Camões afirma que o reino lusitano é o “quase cume da Europa”, o que significa que existe um cume e que se encontra por fora do território português: a Galiza, que encima o perfil ibérico lusitano e corresponde, simbolicamente, à testa e ao alto da cabeça da Europa.



















             
                                            
Fernando Pessoa retoma a linha de Camões na sua “Mensagem”, assinalando que a Europa:

 Fita com olhar esfíngico e fatal
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal. 




Mas se Portugal constitui, assim, o rosto da Europa, qual será o simbolismo do território que se lhe situa imediatamente por cima, isto é, a Galiza?

Se nos reportarmos à sabedoria oriental, nomeadamente ao hinduísmo e aos textos sagrados denominados “Upanishads”, escritos por volta do século VII a.C., constatamos que nessa zona do corpo humano se situam dois "chakras" muito importantes -  o “Ajna” e o “Sahaswara” - que conferem, respetivamente, a clarividência e a iluminação total do ser.

Faço um parêntesis para explicar que o termo “chakra” corresponde a um vocábulo sânscrito que se traduz como “roda”, referindo-se à forma aparente daqueles sete principais vórtices de energia no corpo humano que vão da base da coluna vertebral ao cimo da cabeça. Correspondem a grandes centros nervosos, relacionados com glândulas e cujo fluxo determina estados psicológicos, emocionais e espirituais, movimentando as forças vitais que nos mantêm vivos, saudáveis e vibrantes. Ou seja, regulam o campo energético, atuando como transformadores ou portas de entrada de energia no ser humano.











                                                                                                       




 Ora é na cabeça, mais propriamente entre as sobrancelhas, que se situa o sexto chakra  -“Ajna” ou Frontal -, que rege o funcionamento das glândulas Hipófise e Hipotálamo e que também é conhecido como o "Terceiro Olho", pois é o seu fluxo ativo que confere a clarividência. Ali se situa o centro da intuição, permitindo o encadeamento, ainda que momentâneo, com a sabedoria eterna e a mente universal.

Um pouco mais acima, no topo da cabeça, situa-se o sétimo chakra –   “Sahaswara” ou Coronal –, regendo a ação da glândula Pineal. Também é chamado “Loto das mil pétalas”, pois corresponde à iluminação espiritual conferida pela consciência mais pura, religando o ser humano com a Divindade ou com o Infinito.

Penso que tais chakras ou vórtices de energia detêm claramente uma correspondência na Cabeça da Europa, nomeadamente no território galego, como cume dessa Cabeça. De fato, creio que o sexto, o chakra Frontal, estará representado pela cidade de Santiago de Compostela, herdeira da cidade portuguesa de Braga como "reguladora" do Caminho Iniciático que agora tem o seu nome e associada à Ria de Nóia, como a "campânula onde se alarga o vórtice. No dizer de Agostinho da Silva, Santiago é a cidade "farol da unidade cultural europeia" passando, um dia, a "farol da unidade da cultura universal". 

Quanto ao sétimo, o chakra Coronal (ou Coronário), associo-o à cidade da Corunha e à sua Ria, como campânula do respetivo torvelinho de energia. Recordo que na Corunha existe um magnífico farol romano ainda em funcionamento, conhecido como Torre de Hércules, que é património da humanidade.


             
 
                         

Será que esse farol poderá reorientar a nau portuguesa, ajudando-a a reencontrar o norte perdido e a retomar o rumo da sua missão primordial? Ouso dizer categoricamente que sim, que o papel da Galiza contém essa função relativamente a Portugal. E para que não restem dúvidas da sua função orientadora ou de restabelecimento de um norte perdido, a Galiza acumula o simbolismo com a geografia, situando-se, precisamente, ao norte de Portugal.




                          ****


Desde a revolta de D. Afonso Henriques contra a Mãe (e a Mãe tem aqui o duplo significado da Mãe física – D.Teresa –, e da Terra Mãe leonesa, englobando a Galiza, que se separou do Filho ou do novo país lusitano), outros reis portugueses conquistaram, esporadicamente e sem grande empenho e convicção, posições a norte; por isso acabaram por perdê-las, deixando a Galiza entregue ao seu destino contra natura com Castela. No entanto, a Galiza sempre resistiu à hegemonia de Castela, conservando incólume o seu espirito original e a sua autonomia moral. Igualmente se manteve a tendência natural para a reunificação com Portugal, configurando num só país todo o rosto da Ibéria, pois ambos os territórios tudo tinham a ver um com o outro, diferenciando-se, por completo, de Castela.

Por isso dizia Fernando Pessoa que a Galiza, se "integrada em Portugal, fica parte do estado a que por natureza e raça pertence"...

Por isso, falava Agostinho da Silva nos erros históricos de Portugal, referindo-se ao nosso abandono da Galiza, "a companheira, pela qual o nosso amor jamais se desmentirá"...


Escreveu Agostinho: “Portugal fez uma coisa extraordinária no mundo: criou ele o seu próprio país e é curioso ver-se que toda essa Europa estava mudando constantemente, todos os países tinham mudado de fronteira, muitos países tinham desaparecido, outros países tinham aparecido de novo, mas havia um, a um cantinho da península, que não mudara nunca: era este que a gente portuguesa tinha construído, criando o seu próprio país, tão inexistente antes que tiveram mesmo de lhe inventar o nome, ao passo que, uma parte dessa faixa ocidental da Península, que devia ter sido conservada com Portugal, mas que mais bravura de guerra do que talento diplomático de Afonso Henriques e daqueles quo o seguiam fez que ficasse separado de Portugal, distanciou Portugal daquele Santiago de Compostela que devia ter sido realmente seu padroeiro e inspirador. “

Acrescente-se que “foi Santiago de Compostela que, com as peregrinações, deu aos povos a ideia de que existia uma Europa. “



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Esclareço desde já que não sou adepto de qualquer alteração política da Ibéria. A única alteração que verdadeiramente me importa é uma profunda mudança da consciência individual e coletiva, conduzindo a um "ibérico estado de ser", muito mais importante do que a um qualquer “estado ibérico. “

Posto isto, concordo em absoluto com o pensamento daquelas duas figuras de proa da cultura portuguesa; penso, no entanto, que há um motivo oculto para que Portugal e a Galiza tivessem mantido, até ao presente, uma fronteira entre si.
A razão prende-se com a situação atual portuguesa: de que nos vale ter um déficit quase a zero nas contas do Estado se continuamos a manter um déficit zero no desiderato mais profundo da alma nacional?

O Portugal de hoje veste um elegante fato europeu, de bandas e vincos impecáveis, como compete a um parceiro exemplar de Bruxelas, mas esqueceu-se da sua vocação atlântica; desviou o olhar do mar da História para coquetear com a Europa e olvidou que o nosso país é uma nau caprichosa, que não gosta de estar ancorada, e que aquele fato não serve para navegar.

Se Portugal e Galiza constituíssem, agora, um único país, estaríamos irremediavelmente bem vestidos, mas no mesmo barco, vagueando num oceano de nevoeiro e de esquecimento, sem a salvaguarda do farol aceso a norte... Para um poder valer ao outro, tivemos que permanecer separados, servindo-nos mutuamente dessa situação para dela extrair uma insuspeita força regeneradora.



 Mas se a Galiza, “altar de Rosalía e da Ternura”, se converteu numa espécie de Arquivo dos valores da alma lusitana, consubstanciados e traduzidos pela sua vibração e energia, ocasiões houve, ao longo da História, em que os papéis se inverteram e foi Portugal quem teve de lhe valer. Por exemplo, o triste e doloroso cenário da Guerra Civil espanhola, converteu a Galiza, segundo as palavras de Pascoaes, na “pobre defunta num túmulo onde o vento já não murmura os versos de Rosalía. “

Mas a poetisa da Galiza também havia escrito:

¿Qué andáis buscando en torno de las tumbas,
Torvo el mirar, nublado el pensamiento?
¡No os ocupéis de lo que al polvo vuelve!…
Jamás el que descansa en el sepulcro
Ha de tornar a amaros ni a ofenderos                         
¡Jamás! ¿Es verdad que todo
Para siempre acabó ya?
No, no puede acabar lo que es eterno,
Ni puede tener fin la inmensidad.


            
P                             Passado quase um século sobre a tormenta, a Galiza voltou a ser “o coração de Rosalía florindo”, no dizer de Leonardo Coimbra, enquanto Portugal se volveu no “Adamastor diluído em lágrimas”. E, na verdade, agora é o vento português que já não murmura os últimos versos proféticos de Fernando Pessoa, quase totalmente encobertos pelas brumas:  

 T                             Tudo é incerto e derradeiro.
T                              Tudo é disperso, nada é inteiro.
  Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
  É a hora!

Será a tal morte iniciática necessária para renascer a um outro nível e cumprir a sua missão última de Cristo das Nações, tal como a descreve o poeta Vasco da Gama Rodrigues? Creio que sim, mas o nosso país, prevendo que se poderia perder no terrível labirinto do olvido, terá entregue uma espécie de Fio de Ariadne àquele outro Portugal que os galegos chamam Galiza...

Esse Fio permanece até hoje, enquanto o nevoeiro se ía engrossando cada vez mais. E, agora, encontramo-nos às apalpadelas, tentando localizar aquele Fio salvador que, entretanto, também largámos da mão, esquecendo-nos que a sua outra ponta se encontra na Galiza.

Tudo isto significa que, apesar da separação externa, Portugal e a Galiza mantiveram inalterável a sua unidade interna, espiritual e daí que se possa dizer que são corpos artificialmente separados que detêm, por dentro, a mesma Alma Mãe. Sendo assim, o destino de um está intrinsecamente ligado ao destino do outro e se um perdeu, num determinado momento, o contato com a Alma comum, será a ligação mais íntima e profunda com o outro que poderá ajudar a restabelecê-la.


Digamos que a corrente telúrica-espiritual dessa Alma é a que faz ativar os respectivos "chakras" e recordemos que, na zona da cabeça, para além dos dois já referidos, existe mais um: o da garganta, conferindo o dom do verbo ou do som criador.







                                                     
                                                                                                                                                     
Nos termos da sabedoria hindu atrás referida, esse chakra denomina-se “Vishuddha” e, sendo o quinto (concordando com a numerologia do Quinto Império) corresponde ao primeiro da tríade mais espiritual situada na cabeça. Rege o funcionamento da glândula Tiroides e está associado ao elemento som, favorecendo o escutar da voz interna, espiritual, e propiciando uma superior capacidade de expressão e de comunicação.  Portanto, gera e promove o dom do verbo criador.

Fazendo corresponder este chakra da garganta com a "cabeça da Europa", o respetivo vórtice energético é representado pela cidade de Sintra, com a sua misteriosa e emblemática serra da Lua, em Portugal. E de acordo com as características do "chakra", será dali que ecoarão as vozes anunciadoras do Quinto Império e da chegada do respectivo Rei-Imperador...



                                                         















Os antigos gnósticos referiam-se à consciência da divindade em cada um como “o surgimento do Rei"... E, na verdade, só o despertar dessa consciência impulsionará a grande mudança que se anuncia na face da Terra. Primeiro de forma individual e, depois, coletivamente, porque a revelação é sempre restrita ao indivíduo, utilizando essa base pessoal única e indispensável para se expressar.


Foi o que sucedeu no passado, em que apenas um punhado de homens e mulheres coordenou os passos iniciáticos do nosso país, levando outros a alargar a consciência e a fazerem o mesmo, em círculos sucessivamente mais alargados, desde a misteriosa formação de Portugal, ligada à misteriosa Ordem de Mariz, à fabulosa epopeia das Descobertas, ligada à Ordem de Avis (possivelmente, um nome externo para Mariz).

Suponho que será também um punhado de portugueses que poderão, inicialmente, conduzir muitos outros às Novas Descobertas, abrindo caminho para a instauração do Império do Espírito Santo ou Quinto Império. Poderão funcionar como uma espécie de “catalisadores espirituais” ou agentes da nova Cultura, porque se trata de um Império de Cultura e não de política, acelerando a reação que envolve as massas e precipitando os resultados a nível de nação, ou mesmo de blocos de nações e, finalmente, no mundo inteiro.

Creio que o Portugal Quinto Imperial será, então, o renascido pela vitória dos portugueses no labirinto obscuro em que se encontram, devendo, desde já, reorientarem-se pelo alinhamento a norte; isto é, retirando todos os “proveitos espirituais” que esse alinhamento encerra e que são, nada mais, nada menos, que os valores perdidos da alma lusitana. Deste modo, a Galiza expressa, inequivocamente, a "garantia iniciática" do futuro da nação portuguesa.

Mas creio que a atribuição da Galiza vai ainda mais além. Muito se escreveu já sobre o papel de Portugal como profeta do Rei Encoberto, anunciando-o através da “garganta” de Sintra, e nada, ou quase nada, sobre a outra função da Galiza... Pois a minha convicção profunda é que, se Portugal representa o rosto da Europa, a Galiza só poderá corresponder à Coroa que assenta naquele rosto, assinalando a condição régia e imperial da Cabeça ibérica.

Portanto, a Galiza constitui a Coroa do Império.

Um Império anunciado e iluminado pelos valores da Cabeça reconstruída da Europa ao serviço do Rei-Imperador, que não é outro senão o Cristo da Segunda Vinda e que, como relata o Novo Testamento ou o referem inúmeros textos proféticos, voltará, um dia, a caminhar entre os homens.


 Seja na Ibéria, ou em que Ibéria for.













4 – RECONSTRUÇÃO

           Para ser grande, sê inteiro. 
                                   Ricardo Reis







Sonhar é cada vez mais preciso, num mundo materialista e à beira do caos. Mas como sonhar e, sobretudo, realizar o sonho, num corpo sem cabeça?
Por isso, para que a Europa possa contribuir para o pragmatismo do bom sonho Quinto Imperial, torna-se necessário, antes de tudo o mais, que disponha de uma Cabeça. E, assim sendo, a sua reconstrução surge como tarefa urgente e absolutamente prioritária.

Acredito que somente juntos, Portugal e Galiza poderão completar-se e impulsionar a construção daquela Cabeça, integrando as outras partes ou zonas geográficas da península que a compõem. Desse modo, a Europa voltará a ter uma Cabeça completa e funcional, devidamente coroada, e onde o rosto lusitano poderá olhar o futuro com lucidez e bem de frente.

Creio que esse futuro passará sempre pela implantação do Quinto Império no mundo e os agentes dessa enorme mudança serão os povos peninsulares, inspirados pela Cabeça Ibérica – portugueses, galegos, asturianos, castelhanos, andaluzes, catalães, bascos… e todos os que convivem num espaço criado e sacralizado para esse fim e que, no passado, ainda que agindo em separado, já transformaram o mundo de então no de hoje conhecido.

Por isso confessava Agostinho da Silva: “Tenho a ideia estranha de que se está em vésperas (no sentido de algo que pode acontecer agora ou daqui a mil anos) de uma nova expansão, muito mais interessante do que a anterior, porque vai ser feita em companhia da Espanha. Uma expansão de cultura, não estritamente portuguesa, mas peninsular...”

Na realidade, Portugal, desde que se assumiu como nação independente em 1143, foi o “país permanente” na Península, enquanto que a Espanha só muito depois se criou como nação e foi variando de forma, conforme as várias componentes territoriais que se lhe iam aglutinando ou separando. Daí que a responsabilidade pela iniciativa da nova expansão esteja com Portugal (depois de espiritualmente refeito pela Galiza), devendo ser o nosso país a levar a Espanha a uma atuação conjunta.

Para isso, a primeira coisa será acabar com um anti-espanholismo primário que volta à tona sempre que nos sentimos ultrapassados pelos nossos vizinhos. Mas como comenta Eduardo Lourenço, “brandir Gamas contra Colombos, solidificar um presente vivo em torno de polarizações míticas sem sentido, é uma provinciana e absurda perspectiva. Até porque é fácil manipular o nosso óbvio benfiquismo patriótico para iludir o sempre carenciado seio lusíada. “

E acrescenta: “De repente, Portugal descobriu a Espanha. Podia ser uma excelente ocasião para se descobrir a si mesmo como naturalmente "hispânico", mas os sinais apontam para outra tentação. Ou antes, para o secular hábito que a nossa classe dirigente sempre teve de poder em paz consumir sem sobressaltos a magra herança do nosso exíguo jardim. Chama-se a isto patriotismo, nacionalismo, amor natural de preferência pelo que é nosso ou nós somos. Mas as proporções que o fenómeno está tomando, o pânico real, imaginário e, sobretudo, cultivado, que a nova Espanha começa a inspirar entre os guardiões desse nacionalismo, merece mais do que uma simples alusão irónica. “

“Talvez ninguém possa medir melhor do que nós, portugueses, o que representa na labiríntica história cultural da Europa, esta emergência espetacular da Espanha como nação de referência em todos os planos e, em particular, no da Cultura, onde, até há pouco, a víamos, também, como “subcultura” em relação ao espaço hegemónico europeu.
Pressentindo, ou tendo uma ideia exata dessa “promoção”, o reflexo clássico de pânico ou de ressentimento, quer nos planos económico e político, quer no cultural, encontrou já, entre nós, algumas expressões. Por mais compreensível que possa parecer, quase mero reflexo condicionado que se tornou ao longo dos séculos no puro plano político, esse reflexo seria sempre lamentável. Lamentável, grotesco e vão. “

“A nossa reação (...) não pode, nem deve ter o perfil negativo, do habitual reflexo ultranacionalista, reacionário no plano político e ideológico e caricato no plano cultural. “

De fato, na esteira de intelectuais como Oliveira Martins, Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (e, no lado espanhol, Clarín, Unamuno, Valle-Inclán, Castelao e muitos mais), penso que deveremos olhar para a Ibéria como um todo multifacetado, excluindo de vez o estigma nacionalista que oblitera qualquer diálogo e reconhecendo que figuras tão distintas como Dali, Cervantes, Goya, Albéniz, Teresa de Jesus, Buñuel, Manuel de Falla, Picasso e tantos outros expoentes ibéricos fizeram da cultura espanhola “uma das poucas culturas míticas do Ocidente. “ Mas, por outro lado, também constatando que, realmente, “nada há em Espanha que se possa comparar ao fenómeno Fernando Pessoa. “

Ou, acrescente-se, à Tradição do Quinto Império.

Continua Eduardo Lourenço: “na verdade, o que devíamos lamentar é o fato de que o conhecimento de Portugal por Espanha, hoje em fase realmente nova e não apenas retórica, deixe ainda a desejar. (...) O nosso desconhecimento da Espanha é abissal. “
E remata certeiro: “ A cultura de um país vive da permanente revisitação do seu fundo imemorial, dos seus arquivos imaginários, sem precisar de inventar guerras de ficção para se moralizar. “

 Ultrapassando todos os conflitos do passado e as questiúnculas do presente, Portugal e Espanha, os dois países ibéricos, precisam conhecer-se muito melhor e entender-se de uma vez, sem a obsessão doentia da perca de identidade, sobretudo por parte dos portugueses; só assim poderão construir uma nova Península, assente na miscigenação cultural dos seus povos e representando a Cabeça unificada.

Deste modo, creio ser chegada a hora dos Povos Ibéricos darem as mãos e se juntarem num projeto de âmbito exclusivamente cultural e espiritual, e o resultado poderá ser a criação de algo absolutamente novo e inovador no mundo, capaz de rejuvenescer o corpo gasto e cansado da Europa e lhe recolocar nos ombros uma Cabeça.

Cultura tem a ver com Identidade e com Alma, tal como explica Eduardo Lourenço: “Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa convicção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos “identidade”. Como para os indivíduos, a identidade só se define na relação com o outro. Como essa relação varia com o tempo – é o que chamamos a nossa história –, a identidade é percebida e vivida por um povo em termos simultaneamente históricos e trans-históricos. Mas só o que a cada momento aparece como paradoxalmente inalterável ou subsistente através da sucessão dos tempos confere sentido ao conceito de identidade. Podemos assimilar essa estranha permanência no seio da mudança (...) como “alma dos povos. “

Sendo assim, ao falar-se numa federação de culturas, estamos a falar simultaneamente numa conjugação de identidades que não se anulam, mas se respeitam e enriquecem com a experiência comum; ou ainda de almas (de povos) que se congregam para cumprir uma determinada fase do projeto quinto imperial...

Um acordo visionário entre os dois Estados ibéricos será, pois, fundamental, mas sem tocar necessariamente na questão territorial dos Estados, pois não é, de todo, um assunto político. Agostinho confirma que se trata de “uma aproximação puramente cultural, a que os políticos podem dar significação política, na medida em que isso for necessário. Mas o político precisa de aprender certas coisas: que a sua base de trabalho é a cultura e não o contrário. É aprendendo cultura e inserindo-se na cultura que ele pode fazer uma política decente. “

Fernando Pessoa adjunta: “Se todos somos ibéricos temos o direito de esperar que tudo deva tender para uma política ibérica, para uma civilização ibérica que, comum aos países que compõem a Ibéria, a todos, porém, transcenda. “
E acrescenta: “A questão é exageradamente simples. Devemos ser separados em tudo o que sejam problemas nacionais, juntos em tudo o que sejam problemas civilizacionais. Instituições, costumes, convém que tudo isso seja diferente em um e outro povo. Orientação perante a Europa, convém que seja em ambas a mesma. (...) O ideal pode ser comum, a orientação diversa. Convém mesmo que assim seja. “

Mas este ideal comum, onde cabem todas as diferenças étnicas e culturais, é posto em causa pela questão dos nacionalismos políticos separatistas, que atormentam a Espanha. Mais uma vez recorro ao Professor Eduardo Lourenço para definir o problema: “Costuma chamar-se nacionalismo ao exagero da exaltação do que é nacional só por ser nacional, ou do que é nacional sem ter em atenção ao Outro. É a patologia do normal sentimento patriótico. Isso é que é o nacionalismo. O ultranacionalismo é isso em pior. “

Portanto, também se poderá dizer que o nacionalismo exacerbado e xenófobo é a doença infantil do patriotismo e, como doença, deverá estar completamente arredada deste processo; tanto mais que proclama a separação completa e total, quando o que está em causa é a aproximação ou mesmo a união da Ibéria, respeitando todas as diferenças. No fundo, poderão ser instrumentos daquelas forças obscuras a quem o projeto de uma Ibéria a uma só voz não interessa para nada.

Cito de novo Eduardo Lourenço: “Os acontecimentos, não só políticos, mas, mais largamente civilizacionais, que depois da queda do Muro e do despertar do Islão desarrumaram as perspectivas europeias fixadas em Ialta, colocaram a Península não só numa das fronteiras da Europa, mas num dos pontos estratégicos capitais do Ocidente. Era bom que, ambos e o mais sintonizadamente possível, Portugal e Espanha, se dessem conta disso e relativizassem as suas próprias dificuldades internas, em função desse novo lado de “guardiães” ou fronteiros do Mediterrâneo. Há muito que a Espanha tem, em sentido lato, não só uma política mediterrânica como transmediterrânica. Mais atlânticos, é natural que a nossa preocupação seja um pouco diversa ou tenha essa outra componente. Mas como Península o nosso destino é um só e não há razão para o deixarmos definir apenas, nem essencialmente, por aquelas nações que até agora hegemonizaram a política europeia. O nosso lugar não pode ser ocupado por mais ninguém. E se o não ocuparmos não ficará vazio, nem deste lado nem do outro lado do Mediterrâneo. “

Portanto, parece-me absolutamente legítimo e necessário questionarmo-nos sobre quem estará, verdadeiramente, por detrás dos movimentos separatistas ibéricos, manipulando os sentimentos nacionalistas...
Mas também neste campo, Portugal, aportando a sua experiência equilibrada e harmónica das regiões autónomas da Madeira e dos Açores, e a Galiza, com o exemplo do seu nacionalismo exemplar, serão capazes de guiar todas as outras regiões da Península.

Recordo que logo no primeiro número na revista galega NÓS, onde se manifestaram as mais importantes vozes nacionalistas do seu tempo, se pedia aos colaboradores que, acima de qualquer ideologia, colocassem o sentimento da Terra e da Raça.
Leonardo Coimbra frisava que na Galiza não existe “um nacionalismo separatista, de egoísmo que se encerra, mas um nacionalismo de amor concreto, vivido e leal que, para bem servir ao longe, tem de se enriquecer das dádivas do que é mais próximo. ”
E sublinhava que “o nacionalismo galego está no profundo amor do galego pela sua terra, rumorosa como os pinhais, melancólica e doce como o canto da rola, cercada de lamentações saudosas da vaga, inquietada das misteriosas solicitações do atlântico. “

Esta visão inocente e bucólica da política parece completamente desajustada no mundo de hoje, onde os egoísmos e as ambições pessoais se sobrepõem aos interesses nacionais e aos valores autênticos da terra e dos homens, num ritmo verdadeiramente diabólico e hipnotizante... No entanto, o próprio Leonardo Coimbra se encarregou de responder: “No meio dos americanismos, dos tecnicismos modernos, do materialismo mumificado dos burgueses e dessa transformação burguesa que são os socialismos materialistas de hoje, como é bom repousar o olhar pacificado nessa suave paisagem galega, que é o chão da sua terra e a alma dos seus poetas. “

 Quem se atreve a não lhe dar razão?



                   ****


Então, enquanto os governos peninsulares se preocupam primordialmente com a manutenção do poder e os nacionalismos se perdem noutros egoísmos e intolerâncias, comecemos nós, cada um de nós, individualmente, a criar um novo conceito de Ibéria, que depois se poderá espalhar, naturalmente e sem esforço, por toda a parte – ou seja, ao construirmos mentalmente em nós aquela outra Ibéria, muito mais facilmente essa Ibéria existirá.

Fernando Pessoa insistia nesta mesma ideia: “ O que supremamente convém é criar, desde já, a ibericidade. Fazer tender todas as energias das nossas almas para um fim, por detrás de todos os fins imediatos que tenham. Esse fim é a Ibéria. ”

E voltamos a Agostinho da Silva, constatando que “a única região que já é ibérica do futuro é a Galiza”. De facto, a “mestiçagem de culturas” que nela coabitam, fizeram da Galiza um solo fértil para as sementes lusitanas e um “hórreo” privilegiado para guardar os seus frutos, que, presentemente, neste inverno da alma, terão que ser recordados aos portugueses; depois disso, o campo de cultivo deverá alargar-se a toda a grande Ibéria, para que, na nova primavera, se expanda ainda mais, levando a todo o planeta os resultados daquela surpreendente cultura peninsular…

Que de novo, e por muito que custe a acreditar, vai dar “novos mundos ao mundo. “











5. UMA CHAVE MESTRA


           Vejo o passado reviver
           Porque em meu coração
           Tudo é ressurreição,
           Amanhecer...

                  Teixeira de Pascoaes








Num desvario literário, o escritor espanhol Leopoldo Alas, conhecido como “Clarín”, chegou a aventar a hipótese de Portugal, Espanha e América do Sul constituírem “una sola nación intercontinental. “

Nunca ninguém o levou a sério e compreende-se porquê, mas a verdade é que esse espaço existe, não como nação politicamente constituída, mas como espaço privilegiado de realização de ideias novas para o mundo, aparentemente ainda mais utópicas do que a da nação transatlântica.

Ou seja, poderá nascer ali uma nova cultura. E se a cultura é a expressão da identidade e a identidade é o que distingue uma nação, então também esse espaço não andará muito longe da proposta de Clarín...

Refiro-me, evidentemente, a uma “nação da alma”, não da política ou da sociedade; uma nação exclusivamente nesses termos, criada pela Península Ibérica para dar futuro a uma Europa de que também é Cabeça (embora não seja reconhecida como tal pelo resto do Corpo...), mas, sobretudo, para dar futuro ao mundo.

Ainda que noutros moldes, ou com outra partitura, Eduardo Lourenço toca nesta mesma tecla: “Simbolicamente, isso permite uma outra possibilidade de reler tudo o que nos aconteceu desde então e sobretudo esse curioso processo de fascínio e ressentimento em relação à famosa Europa, quando ela se constituiu como Modernidade. Nós fugimos para outro sitio, ou por outra, nós derivámos, passámos a inventar uma outra Europa, uma outra maneira de ser Europa e essa outra maneira de ser Europa está viva. É a América, a América no seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia. Essa América não é o nosso passado. É, julgo eu, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro, no sentido mais empírico do termo. Agora estamos já de algum modo normalizados e felizes em termos europeus daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz em termos de Europa, aquela que não tem mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós inventámos, construímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e em última análise, uma Europa outra, a de um novo mundo que não está só no passado.
Se nós pensarmos que, particularmente, a América Latina é filha direta da Península, nós não podemos ser problematizados a esse título. A esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica fazia com que não sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em relação à outra Europa. Estávamos construindo algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós, e isso não é o nosso passado, isso é o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro está naquilo que inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não conhecia. “

Penso que o nosso futuro está, efetivamente, naquilo que inventámos, mas creio que a questão não será a de trazer à Europa essa outra Europa, mas sim em levar a velha Europa ao encontro da nova, do lado de lá do mar.

E isso poderá suceder transpondo a sua Cabeça – a Península Ibérica, a sua energia, os seus valores, a sua essência – para um outro corpo transcontinental: a América Latina.
Agostinho da Silva chama a atenção de que “convém que se avance para uma ampla relação em todos os campos com as nações que formam a chamada América Latina e todas as outras do globo que têm línguas de comunicação ibéricas, notando-se que a América Latina é na realidade uma outra e potencialmente mais poderosa Península Ibérica...”

Portanto, e reforçando o que dizia anteriormente, haverá que ser constituída uma frente ibérica comum, capaz de reconstruir a Cabeça da Europa. Cuidadosamente, respeitando a diversidade cultural de cada região e fazendo dessa heterogeneidade uma mais valia comum. O impulsionador dessa regeneração deverá ser Portugal, depois dele próprio haver sido desperto do seu torpor pelas energias da Galiza e com quem se deverá manter espiritualmente unido, recuperando o cumprimento do que tradicionalmente se denomina Missão Lusíada.

Essa será a outra e a mais verdadeira restauração de si mesmo, e nada contém de “passadismo”; será antes um “novo amanhecer”, como diz Teixeira de Pascoaes, ou uma ressureição completa e autêntica através da revisitação da Fonte da Vida, redescobrindo os valores que realmente são os nossos para com eles edificar o presente, a pensar no futuro.
Com um enorme respeito e gratidão por tudo que nos foi legado.


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Obedecendo a desígnios só conhecidos dos deuses, mas anunciados por homens como António Vieira e Fernando Pessoa, Portugal foi designado como “pivot” do processo quinto imperial; daí a importância fulcral da Galiza no despertar do nosso país para o retomar renovado da Missão Lusíada.

Como expliquei atrás, esse trabalho envolve, primordialmente, os Povos Ibéricos. Agostinho da Silva também pensa que “só os Povos Ibéricos a toda a volta do mundo, lhe poderão, a ele mundo, dar mundo novo”... e esse mundo novo não será outro senão o Império cultural do Espírito Santo, o Quinto Império.

Creio firmemente que o novo Portugal, desperto e religado à sua missão, não só deverá conduzir os demais Povos Ibéricos à reconstrução da Cabeça, influenciando imediatamente o corpo da Europa como, no que respeita à função ultramarina, deverá também ser ele o primeiro a cruzar o mar. Evidentemente, mantendo sempre o espírito universalista que caracterizou as suas viagens do passado e como um exercício constante de humildade, consciência e serviço, pois só desse modo poderá cumprir a Missão Lusíada.




“Tanto o Poeta Pessoa como o Professor Agostinho sentiram a dificuldade em que se encontra Portugal e a sua falta de saída, deixem-nos dizer, física; para eles, como pensamento ou como vivência, o que está diante é o fim de Portugal, se perder, como pode, a sua linha de mar: a saída seria metafísica e o mar sem fim seria agora o dos domínios do espírito humano, não, como escreveu Sérgio, apenas no intelectual (...), mas naquelas regiões em que todo o pensamento é, pela fusão de sujeito e objeto, inteiramente impossível e em que, portanto, nenhuma viagem terá fim.

Pessoa (...) não insistiu na correspondência física da ideia metafísica. Agostinho (...) acha que a sustentação física viria de uma Confederação dos Povos de Língua Portuguesa. Portugal conservaria o Mar, sem o peso das Terras.

Se surgir de Portugal e, como pensa Professor Agostinho, do Portugal transportado ao Brasil, a tal metafísica nova, a que uniria realmente Oriente e Ocidente, os dois terão estado certos; se ela tiver como base terrestre a Confederação, terá Professor Agostinho acertado mais do que Pessoa. “

Sem querer tomar partido nesta “adivinhação mística” sobre o porvir de Portugal e do Mundo, creio que competirá aos portugueses o transvasar do sonho quinto imperial para a nova Península Ibérica, a transatlântica, começando por anunciá-lo a quem fala a mesma língua, que Fernando Pessoa dizia ser a sua Pátria verdadeira, e onde repousa António Vieira, um outro Aviso desta mesma Mensagem.

Isto é, iniciando essa sua função pelo Brasil, o outro Portugal do lado de lá...


Creio que dessa união entre o Portugal espiritualmente reconstruído pela Galiza e o Brasil, redimido pelo novo Portugal, resultará o novo pólo físico-espiritual do Mundo.
Por isso referia anteriormente “o casamento místico das noivas da Galiza e dos marinheiros de Portugal “ que, segundo Agostinho, estaria “plantado no rumo do outro pólo do Mundo. “ Ou seja, no rumo do referido espaço sul americano, que considero a mais provável base operativa destinada ao surgimento do Quinto Império.

Refira-se que esta união entre Portugal e Brasil não significa qualquer exclusão dos outros países com a mesma língua, mas apenas reflete o cumprimento da função própria de cada um. Portanto, creio que todos os demais terão o seu papel, nomeadamente na expansão da “metafísica nova” pelos dois hemisférios e pelos cinco continentes, porventura através da Confederação dos Povos de Língua Portuguesa.





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Recapitulando ou sublinhando o fundamental: ao reconstruirmos aqui a Cabeça Ibérica, não só estaremos a oferecer à Europa um caminho novo de consciência e realização, como também a criar a possibilidade dessa mesma Cabeça ser transposta para aquela “outra Península Ibérica, mal denominada América Latina “, passando também a nortear um outro Corpo que, desse modo, será preparado para se tornar na “base de sustentação física” do processo Quinto Imperial.

Tenho perfeita consciência do absurdo que soam estas afirmações e do desconcerto que poderão provocar ao serem interpretadas em exclusivo com a mente; mas este relato não começou pelo maior dos absurdos, com a separação do meu coração, tendo ficado metade no outro lado do Pórtico da Glória? .... Sem pretender convencer ninguém, só me resta falar com o coração que comigo ficou, dirigindo-me diretamente ao coração de cada um e deixar que sejam apenas os corações a avaliar tudo entre si, pelos seus próprios critérios. 



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Voltando à questão da “base quinto imperial”, é conhecido que praticamente todas as profecias respetivas lhe atribuem um nome: Portugal. No entanto, a minha interpretação sobre esse “Portugal” é um pouco diferente e, para melhor a explicar, recorro a um símbolo celta que faz parte do folclore da Galiza, onde continua a ser utilizado como talismã: o “triskel “.







                                   













O “triskel” representa o aprendizado iniciático e a eterna evolução, incluindo Passado, Presente e Futuro, assim como o equilíbrio entre Corpo, Mente e Espírito, tendo sido utilizado pelos druidas como o seu símbolo supremo, mágico e sagrado.

É um símbolo constituído por três braços espiralados (o três era o número perfeito da cultura celta) que se unem num ponto central, formando uma hélice e transmitindo a ideia de movimento.

Segundo a minha própria concepção, vejo este triskel como uma chave – a chave dos mistérios ligados à implantação do Quinto Império no mundo – e que, à falta de conhecimento e de melhor designação, terei que dizer que se encontra na mão do Destino. Suponho que muito pouco ou nada se saberá sobre essa "mão" e muito menos sobre o dia e a hora em que fará rodar a chave.

 Nesta perspectiva, faço corresponder um aspecto de Portugal a cada um dos braços do "triskel". Assim, num deles situo o "Portugal" eterno, ou todo aquele potencial que agora jaz abandonado, mas que poderá voltar à superfície. Por isso representa o Passado, mas também o Espírito intemporal que, outrora, conduziu Portugal aos mais altos feitos na História do Mundo.

Num outro braço, coloco a Galiza, ou aquele outro “Portugal” que não é, mas que poderia ser, e que se converteu na guardiã fiel daquele potencial. Representa o Presente, ou a Alma como Mente, recolocando a consciência necessária para o cumprimento da Missão Lusíada, que devidamente inspira e coroa.

Finalmente, no braço que falta, coloco aquele “Portugal” que já foi e que ainda virá a ser, embora de um outro jeito: o Brasil. Desse modo, representa o Futuro, ou o Corpo de manifestação alinhado pela Mente e norteado pelo Espírito. Por isso, acredito que aquele vasto território da “Península Ibérica transatlântica”, detentor de uma alma comum com Portugal e Galiza (que também necessita ser ativada...), será visto, um dia e em termos exclusivamente espirituais, como a Pátria dos novos Lusíadas.

Quando a chave rodar, os três braços iniciarão as suas funções simultaneamente. Isto significa que, ao desencadear-se a reconstrução da Cabeça da Europa, o sangue novo nela empregue vai de imediato correr pelas veias desgastadas do velho Corpo, o continente europeu, permitindo-lhe enfrentar com lucidez todas as tribulações que tiver pela frente; ao mesmo tempo, a ação no outro lado do mundo permitirá a colocação daquela mesma Cabeça (que, na verdade, deverá ser construída em sincronicidade, nos dois lados do oceano) no Brasil, ou seja, propiciará a instalação daquelas mesmas ideias, valores e essências no Corpo Peninsular sul americano, jovem e vigoroso que, desse modo, se ligará, anímica e espiritualmente, à energia do futuro para se constituir, de fato, como a verdadeira “base de sustentação física” do grande Mistério.

Um Mistério que, evidentemente, tanto poderá ocorrer amanhã como daqui a mil anos, mas que, desde já, poderemos enquadrar e incluir de uma forma mais consciente em nós mesmos, explorando com maior profundidade as nossas mentes e corações. Aliás, a ação que, atrás, procurei delinear em traços muito largos e falhos de clareza e objetividade, não respeita somente a nações e continentes, mas, também, ao trabalho de cada um, totalmente a sós consigo.

“Para uns, já veio, para outros está a chegar e para muitos outros só virá daqui a uns milhares de anos... “, são palavras sábias sobre a chegada do Reino de Deus. Penso que não se aplicam totalmente ao advento do Quinto Império porque este, supostamente, vai obedecer a determinados ciclos temporais, o que não sucede, obviamente, com o Reino de Deus. No entanto, penso que será possível adiantar essa chegada através da consciência, se for alcançado e vivenciado o estado de espírito que, desde logo, o fará presente. Para isso, cada um terá que reconhecer e percorrer o seu próprio caminho, isto é, terá que encontrar e fazer rodar a sua própria chave.


E, ao fazê-lo, poderá, justamente, descobrir que o Quinto Império começa sempre, mas sempre, por dentro de si mesmo.
                                                   














6 – POR CAMINHOS DE TERRA COM PÓ DE ESTRELAS

 Não conheço terra de amor, de ternura e humildade mais próxima do calor de um lar de além que essa sagrada terra das minhas peregrinações da alma.                                                                        
                                                                                                                      Leonardo Coimbra







Continuava a descer a montanha.

As minhas mãos agarravam-se sofregamente ao volante, porque a mente não parava de despejar o seu arsenal de razões a contradizer tudo o que havia vivido na véspera, e a estrada sinuosa forçava uma outra atenção que, simultaneamente, era um alívio. Como se tivesse a cabeça debaixo de água e, a espaços, viesse à superfície para respirar.

Naquela noite havia passado por um terramoto irracional que abalara todos os meus alicerces, derrubando os códigos de descrição do mundo em que me apoiava e que, naquele momento, faziam parte dos escombros. E a mente insistia em que tudo havia sido um sonho.

Depois de uma curva mais acentuada deparou-se-me a Ria de Nóia, ao fundo. Surgiu como uma visão gloriosa, quase tão sublime e resplandecente como o Pórtico anterior. As suas águas brilhavam no meio das montanhas douradas pelo sol da manhã, num quadro de uma beleza que cortava a respiração e o meu coração disparou sem controle, cada vez mais acelerado.

E mais forte e mais rápido.

Profundamente comovido, percebi, de súbito, que algo estava errado e que alguma coisa desconhecida e terrivelmente inquietante estaria prestes a suceder. Todo eu tremia e, num repelão, dei uma guinada para a berma e parei o carro. Então, estupefato, constatei que aquelas pancadas tão fortes do coração provinham do exterior, como se ele estivesse fora do meu peito...

Foi um momento de total confusão e desvario.

Até que compreendi, não com a mente, mas com todo o meu corpo, a “des-razão” de tal fato: na noite anterior, o coração partira-se em dois e uma das partes tinha atravessado o portal de névoa, ficando do outro lado do espelho.

Assim de simples, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

 Mas eu já não sabia em que mundo estava. Apesar disso, ou por isso mesmo, assimilava também com espantosa facilidade aquele dado e a informação complementar: a parte do coração que atravessara serviria como referência constante, inspiração ou farol sempre aceso, guiando os meus passos pelos caminhos da vida, até que um dia, pelo meu próprio esforço e vontade, conseguisse alcançar, de novo, o Pórtico da Glória. E nesse momento, voltariam a reunir-se as duas partes do meu coração.

No estado de exaltação transcendente em que me encontrava, não podia fazer mais nada a não ser respirar fundo e seguir adiante, o mais naturalmente possível.... Foi o que fiz, mas, pouco depois, tive que parar na primeira praia que encontrei, para pedir ajuda ao mar.

As ondas sempre me lavaram de problemas e questões complexas e, mais uma vez, limparam-me da tensão. Recapitulei tudo o que me havia sucedido e cheguei a uma primeira conclusão: a experiência da véspera, se não tivesse sido um sonho ou uma alucinação que se prolongava montanha abaixo, somente me dizia respeito a mim e nada tinha a ver com outras supostas “aparições”. Na verdade, não havia surgido nenhum ser com qualquer mensagem dirigida à humanidade, e a única sugestão que me ficou gravada seria voltar, um dia, pelos meus próprios meios, àquele Portal misterioso, a fim de reunir as duas partes do meu coração.

Muito simples, principalmente para quem não tinha a menor ideia de como o realizar...
A minha mente voltara à carga, como um vulcão donde irrompiam, sucessivamente, rios de  argumentos escaldantes. Mas também sentia, mais do que pensar (ou pensando com todo o meu corpo, se assim se pode dizer!), que tudo aquilo que sucedera era verdadeiro, estava certo e fazia o maior dos sentidos.

Olhei as areias incólumes da praia praticamente deserta e divisei ao fundo um pequeno grupo de pessoas que chegavam para aproveitar, desde cedo, aquele dia já quente de agosto. Fiquei longos momentos a observá-las. Todas teriam os seus sonhos, as suas angústias, as suas alegrias, os seus objetivos na vida, as suas ilusões.... Por um momento, senti uma onda avassaladora de nostalgia, os meus olhos encheram-se de lágrimas e chorei convulsivamente, sem saber exatamente porquê, como uma criança.

Mas, na verdade, sabia.

Ao descer aquela vertente da montanha, também tinha descido uma vertente na minha vida e, como se fosse um barco fundeado numa baía tranquila, havia chegado o momento de levantar âncora. A extensa e resistente amarra que sustinha a âncora era composta por laços e sentimentos fortíssimos, que a cingiam a um mundo conhecido, e aqueles que o habitavam quotidianamente não podiam compreender a necessidade surreal da partida.

 Não se pense que ficariam para trás sentimentos e amores; pelo contrário, nenhum deles mudaria ou terminaria, crescendo até em intensidade e fervor, constituindo as únicas pontes ou ligações possíveis entre os mundos que se separavam.

Com as minhas lágrimas, soltei definitivamente as tensões, medos, hesitações e angústias, não somente da noite anterior, mas também todas as outras que havia acumulado ao longo da vida e, muitas, já nem recordava. Havia tristeza e alegria, amor, temor e arrebatamento, consciência e expiação, tudo misturado com nervos e uma profunda catarse, mas acabei por largar tudo.

Tudo.

 Até que, finalmente tranquilo e com uma convicção estranha mas absoluta, que vinha do mais fundo de mim, decidi soltar, também, a última amarra do barco da minha vida.


                                   ****


No momento em que escrevo, passaram-se vários anos sobre aquela noite transmutadora da Galiza. Por isso, posso agora juntar ao simples relato dos acontecimentos, não as explicações que continuam a faltar, mas algumas reflexões e desenvolvimentos complementares, resultantes do trabalho sobre mim ao longo do tempo.

Enganam-se redondamente aqueles que pensam que os caminhos da espiritualidade são uma espécie de vias rápidas, fáceis e seguras; pelo contrário, são perigosas e tortuosas estradas de montanha, em que, amiúde, se nos deparam desvairados camiões de argumentos em sentido contrário, a toda a velocidade.

Um livrinho de Carlos Castaneda intitulado “Viagem a Ixtlan” ajudou-me a enquadrar e a compreender um pouco mais a reviravolta operada na minha vida.
Independentemente da polémica sobre o seu autor, cuja vida pessoal não me interessa para nada, algumas descrições e propostas contidas naquela obra vieram ao encontro do que eu mesmo havia experimentado.

Recordo-me que “D. Juan”, (o suposto xamã que é a figura central do livro), afirmava que o homem comum somente pensa aquilo que lhe ensinaram a pensar, porque foi ensinado a utilizar, em exclusivo, a mente concreta e racional, negando qualquer outra forma de sensibilidade ou de percepção da realidade à sua volta. Mas por detrás dos tapumes do seu mundo conhecido, familiar e doméstico, permanecia o grande Desconhecido, o Mistério insondável, a Força que incita o homem a avançar.... Percorrer aqueles caminhos como um guerreiro impecável seria o maior de todos os desafios, dando pleno sentido à vida.

Eu havia provado o sabor agridoce do Infinito no cimo de uma montanha da Galiza e, portanto, sabia por experiência própria, ou na carne do meu espírito, que aquelas palavras, com todas as diferenças abissais entre os dois casos, eram absolutamente verdadeiras. E havia decidido ir em frente, até porque não pretendia de modo algum passar o resto dos meus dias só com metade do meu coração...

Paulatinamente, também fui percebendo que a única revolução capaz de trazer uma mudança autêntica, completa e duradoura para o mundo, seria a “revolução da consciência”, e que esta só poderia surgir através do indivíduo.
Digamos que foi uma constatação “contra a corrente” das tendências grupais ou coletivas do mundo de hoje, apoiadas por um espiritualismo que só fala na Idade de Aquário com essas mesmas características. No entanto, continuo absolutamente convicto de que a consciência, tal como a revelação, somente poderá surgir de dentro para fora, numa base exclusivamente individual.

Assim sendo, a revolução necessária só poderá apoiar-se nessa base interna, por dentro e no mais fundo de cada ser humano: cada um terá que se enfrentar a si próprio e romper as noções coletivistas do “catálogo político, social, espiritualista e religioso”, adaptado a qualquer zona do mundo e criado para manter o rebanho populacional a salvo e o mais longe possível da temida consciência individual.



                                             ****


Depois de todo este tempo, cheguei à conclusão de que o Pórtico que inopinadamente me surgiu na Galiza representa a consciência necessária para me reconstruir a mim mesmo. Isto é, para me inteirar de questões que até ali me passavam completamente ao lado, como as referentes à Tradição Lusitana, à Missão Lusíada e à instauração do Quinto Império, que agora reconhecia intrinsecamente como minhas, como se fizessem parte do meu caminho há séculos sem fim.

Mas que podia fazer?

 Lembrei-me do poema da Mensagem referente ao Conde D. Henrique, que, igualmente, se questionava: “que farei eu com esta Espada? ” E Fernando Pessoa dá-lhe uma solução extremada e imediata: “Ergueste-a e fez-se. “

Seria assim tão simples?

De qualquer modo, sabia que a resposta teria que vir do meu interior, pois seria nele, ou a partir dele, que lograria erguer a minha própria Espada da consciência. E com ela ajudar a reconstruir a Cabeça Ibérica e, porventura, chegar à Coroa do Império, com a humildade do guerreiro do espirito e ao serviço de um ousado propósito Lusíada que, entretanto, por obra e graça da Galiza, também passara a ser meu.

Para a vida e mais além.

Foi assim que a Galiza se tornou na fonte de inspiração que tanto necessitava e no manancial que me completava de energia. Ao percorrê-la e absorver os seus mistérios, percorro, simultaneamente, roteiros desconhecidos por dentro de mim e, aos poucos, vou adquirindo a capacidade e a força necessária para erguer a Espada e completar a demanda.

Por isso, sempre que a noite estende o seu manto de estrelas sobre o mar e ilumina os campos e as montanhas, e as estrelas e a lua brilham tanto quanto o sol, sei que esse acréscimo de luminosidade e de vibração, provem diretamente da Coroa do Império, do outro lado daquele Pórtico onde ficou o meu coração partido.  Ou quando o sol matutino rompe com luz a folhagem, incendeia a crista das ondas e transmuta em ouro os picos das montanhas, reconheço a resplandecência daquela Coroa, incitando serena, mas vigorosamente, ao refazer da Cabeça onde ela quer assentar.

As noites de Finisterra são especiais, pois ali termina fisicamente o Caminho de Santiago. No entanto, a Via Láctea há muito que despejou uma parte do seu caudal de estrelas sobre o mar, construindo uma ponte que prolonga o Caminho para além do cabo, para além do homem... E é nesse caminho espiritual das estrelas que também sinto circular o meu coração, antecipando-se a mim na travessia.

Sabemos que o espiritual tem um reflexo no plano físico e, sendo assim, encontro sinais daquele caminho etéreo naqueles outros de terra, salpicados de pó de estrelas. E também sigo, apaixonadamente, esses caminhos de conquistadores e peregrinos, impregnados de rezas e esconjuros entrecortados pelo repicar de sinos e que cruzam campos de terra negra e fértil, cultivados com suor e carinho até ao mar. Em todos eles encontro sinais do meu coração partido, e sigo esperançado por entre montanhas ondulantes, perfumadas e alegres, como um raio de sol percorrendo um decote de mulher.


Faço esses caminhos vezes sem conta e sem caminho certo, e quase junto as duas partes do meu coração; oiço o seu palpitar junto com vozes recônditas, em vales perdidos vestidos de brumas e tan fondos/ tan verdes, tan frescos, como bem disse Rosalía de Castro, que os anxeles neles/ dormidos se quedan, / xa em forma de pombas,/ xa em forma de niebras.


Muitas vezes aquelas névoas reconstroem por dentro de mim, mas também quase visível à minha frente, aquele primeiro Pórtico da Glória diáfano e estonteante de beleza e vibração. E sinto claramente o bafo resplandecente da Coroa da Galiza ali tão perto e a proximidade das duas partes do meu coração, como se a sua reunião fosse anunciada e se tornasse mais próxima em cada uma dessas vivencias.

Até que aconteceu.

Claro que, por muito que o desejasse, não estava de todo preparado, pois não conheço preparação alguma para o contato direto com o sobrenatural. Sucedeu, uma vez mais, em pleno verão, num agosto claro e quente, de novo pela alta madrugada e numa noite de chuva de estrelas. Haviam passado doze anos.

Acordei por volta das três horas da manhã e, sem sono, levantei-me silenciosamente, com a ideia de espreitar as estrelas, através da enorme janela que dava para o mar. Não pude distinguir coisa alguma. Uma espessa neblina separava-me do céu, assim como do monte Louro, que deveria estar visível ao fundo e até das ondas em baixo, que somente ouvia rebentar, ritmadamente, contra as rochas.

De súbito, uma luz rasgou as névoas de fora e fê-las translúcidas, precipitando também um clarão pela janela adentro. A minha mente ainda se defendeu com a noção de que seria o projetor rotativo de um barco a entrar na ria, mas logo se reduziu à sua insignificância. Um outro jorro de luz ainda mais potente fez-me fechar os olhos. Não serviu de nada; foi como se os abrisse ainda mais, ou como se todo o meu corpo fossem olhos e sentidos totalmente despertos.

 E, de súbito, ali estava ele, o Pórtico da Glória em todo o seu esplendor sobrenatural e terrivelmente belo, a envolver-me por completo. Não sei como aconteceu ou quanto tempo durou. Dessa vez, o Pórtico não estava à minha frente, mas eu sentia-me dentro dele e, simultaneamente, tudo estava no meu interior... Julguei perceber uma Coroa radiante bem no centro do vórtice, donde provinha a energia, em borbotões sucessivos, cada um mais potente que o outro. Impossível descrever o que se passou e o que senti, pois tudo estava para além da compreensão e do sentimento.  A determinada altura, percebi que tinha os olhos fechados e resolvi abri-los. Tive que fazer um esforço, porque os mantivera cerrados com força durante muito tempo.

Abri lentamente os olhos e, à minha frente, comecei por distinguir o farol do monte Louro, a girar pausadamente a sua luz. Em baixo, as águas da ria ondulavam com suavidade e brilhavam sob uma lua crescente.

Mais uma vez, não queria acreditar. Estaria ainda a viver o resto de um sonho, ou mesmo um episódio extemporâneo de sonambulismo? Teria sido uma alucinação?
A minha mente divagava, mas o meu corpo conhecia a verdade, pois reconhecera imediatamente a mesma força ou energia que havia transformado a minha vida, doze anos antes... Daquela vez, tudo sucedera de forma concisa e particularmente sóbria, sem conotações religiosas e livre da parafernália devocional tantas vezes associada às manifestações do sobrenatural. Ficara apenas uma inspiração que, mais tarde, me conduzira à antiga noção da Ibéria como Cabeça da Europa, aludindo ao trabalho de reconstrução a partir dos valores consignados na Coroa da Galiza. E que também me chamara a atenção para o rosto de Portugal que fitava, por sobre o mar oceano, o “futuro do passado”...

E desta vez?

O meu coração batia apressadamente e percebi que já não precisava de procurar a outra metade. Tudo se havia realizado naquela noite de mistério, e a mesma força que havia separado antes o meu coração voltara a reunir as duas partes. Percebi claramente que assim acontecera e a razão porque acontecera: a etapa da Galiza estava prestes a terminar e somente inteiro poderia avançar para a etapa seguinte daquele Caminho, para mim ainda insondável, que ligaria duas montanhas, como os pilares de uma ponte. E, muito sinceramente, não concebia outro objetivo a não ser atravessá-la e deixar uma direção apontada.

Cumpri a minha missão de anunciador de um dia novo. Falta que a estrada se ache, mas está indicada a sua direção. Deste dia em diante, em toda a Ibéria, transmutação de todos os valores!

Relativamente a estas palavras de Fernando Pessoa, e concordando em absoluto com o apelo à transmutação dos valores, constatei de novo que nada tinha a anunciar ao mundo. Sobre essa questão particular, a minha postura alinhava-se muito mais com a inquietação do poeta do Porto, António Rebordão Navarro:

  Que pode um homem só que só possui
  um lápis, um papel, um coração,
  outra coisa fazer além de um mundo novo?

Na verdade, eu somente possuía o lápis e o papel onde escrevia estas notas, além do coração finalmente completo e a enorme vontade de construir um mundo novo. Mas o mundo renovado teria que ser, forçosamente, o meu mundo interior, pois só esse estaria ao meu alcance; depois de mudar esse mundo, procuraria fazer o que pudesse pelo outro, nem que fosse apenas e só, como referi antes, deixar uma direção apontada...

Sentia essa ânsia, traduzida nesse propósito, mas não atinava em explicá-lo a mim mesmo. Era como se também estivesse ligado a um enigmático Fio de Ariadne, entendido algures, desde a meta do Caminho e que por ele me conduzia, fazendo notar as necessidades prementes de cada etapa, como era o caso da reconstrução da Cabeça da Europa, na Ibéria, mas convidando-me, primeiro que tudo, a conhecer a totalidade do percurso, para dele dar notícia.

Afinal, uma espécie de Novas Descobertas, não só por dentro, mas também por fora, pela face da Terra, abrindo horizontes internos e estabelecendo rotas externas. Portanto, somente sabia que, na sequência do Caminho teria que considerar, daí em diante, a travessia do mar, em direção a sudoeste, seguindo a linha do olhar de Portugal como rosto da Europa...

Que podia eu fazer a não ser confiar no meu coração, repleto dos valores da alma lusa, amorosamente burilados pela Galiza, e procurar seguir em frente, por sobre o Atlântico? ...  Depreendia, logicamente, que não seria nada fácil, mas não encarava, sequer, outra alternativa: mesmo com a mente atónita, aquele era, sem dúvida alguma, o meu caminho do coração.


Senti os dedos da noite a alisarem os meus cabelos revoltos, uma e outra vez, com caricias demoradas que poderiam ser de Mãe ou de Amante, e o seu bafo cálido e, ao mesmo tempo, refrescante, a enxugar o suor que ainda me corria pelo rosto. Lá fora, saíam os primeiros barcos para a faina diária da pesca, como estrelas cadentes que haviam abandonado a velocidade estonteante do firmamento para deslizarem com lentidão e deleite pelas águas da Ria. Todos seguiam para sudoeste, como que sublinhando o rumo que eu próprio deveria tomar. Fazia ainda muito escuro, mas adivinhava um sorriso nos lábios daquela antemanhã, e esse otimismo era contagiante: tudo se descomplicava e se tornava completamente exequível e transparente. Mas continuaria assim quando nascesse o dia e se instalasse uma outra realidade?

Respirei fundo.


E senti-me em paz.