1 de out. de 2019

DEBAIXO DO ARCO ÍRIS




































Desejai apenas o que está dentro de vós. Desejai apenas o que está além de vós. Desejai apenas o que é inatingível. Porque é dentro de vós que está a luz do mundo – a única luz que pode ser derramada sobre o caminho. Se a não podeis ver dentro de vós, é inútil que a procureis em outra parte qualquer.”

                                  Mabel Collins, “A Luz no Caminho” (traduzido por Fernando Pessoa)










                                            
Aquela pequena quinta, nas cercanias de Lisboa, para onde nos mudámos no seguimento natural das vivências ocorridas em Almourol e Sintra, foi uma espécie de batota do Céu a nosso favor, oferecendo-nos o trunfo imbatível da Natureza. Ali decorreram anos profundamente profícuos e ditosos, onde foram surgindo, como fruto do nosso próprio esforço, as primeiras grandes descobertas externas e, sobretudo, internas.

De fato, foi ali que surgiu, em maior profundidade, a noção de uma história oculta de Portugal e dos seus mistérios. Curiosamente, sendo aquela pesquisa totalmente nova, não deixava de ser estranhamente familiar. Aos poucos, fomos traçando um caminho de exploração interna, completamente insuspeito e inatingível por fora, em que as descobertas se sucediam em catadupa; claro que, de cada vez, nos deixavam mais inebriados, como se tivéssemos saboreado um sublime licor espiritual.

Na verdade, vivíamos numa redoma por debaixo do arco-íris, aproveitando esse tempo de bênçãos e de paz para adquirirmos o “músculo” físico e espiritual necessário para construir uma sólida, e, ao mesmo tempo, etérea, base de sustentação para tudo o que acabaria por surgir depois.

E de que não suspeitávamos, sequer.

Na verdade, sempre acreditámos que aquela quinta encantada seria o cenário do final feliz para o nosso caminho desta vida. Mas, como diz a sabedoria popular, “o homem faz planos e Deus ri...” Aquela quintinha mágica não estava destinada a ser o final, mas sim o princípio de tudo; um extraordinário princípio onde decorreram 21 anos da mais intensa e profunda felicidade.

Muito próxima estava a serra do Montejunto, com a sua altura iniciática de 666 metros. Uma lenda afirmava que era oca e que, por dentro, se ligava com a serra de Sintra; outros, diziam que o mar entrava por ela adentro e que se podia ouvir o seu fragor através de inúmeras cavidades espalhadas pelas suas vertentes, a que a sapiência popular havia batizado, precisamente, como “Ouvidos do mar”. Portanto, mesmo estando a uma hora da costa, o mar também era ali uma constante. Até porque os mistérios de Portugal que tanto nos assombravam se ligavam diretamente às suas descobertas marítimas, ou àquele Mar Português que ainda une o nosso país ao seu destino iniciático.

Ao lado da casa estava um enorme pinheiro manso, que foi quem primeiro, para ali, nos chamou. Refira-se que a simbologia tradicional do pinheiro o associa ao pastor Átis, que a deusa Cibele, sua apaixonada, num acesso de ciúme transformou em pinheiro; mas seja apenas uma referência mitológica ou não, dele sempre emanou uma intensa vibração amorosa, serena e suave, que impregnava todo o espaço, como se a divina parelha pagã ali tivesse feito as pazes e gozasse, em plenitude, o seu amor de milénios... E, na verdade, foi sob o seu influxo que o núcleo da família aumentou e se converteu em 7 elementos, comprovando a fertilidade dos terrenos cultivados por dentro e por fora.

 Em pleno campo, a vida foi ganhando cada vez mais sentido e perdendo forma. Passei a dedicar-me também à agricultura e, de cada vez que lavrava a terra, abria sulcos profundos por dentro de mim, que recebiam as outras sementes lançadas. Aos poucos, fui-me pautando pelos ritmos da natureza e desenvolvendo a arte do olhar junto com a arte do sentir.

Explicando melhor: o olhar comum é condicionado e limitado pelos parâmetros impostos pelo sistema mental-social, onde assenta o nosso mundo conhecido. São esses critérios definidores que nos fazem ver o mundo e a vida exatamente do modo como sempre nos ensinaram a ver o mundo e a vida, e não como realmente os poderíamos ver pelos nossos próprios olhos.

Passar desse “olhar” pré-definido para o “ver”, livre de empecilhos e abarcando horizontes sem fim, é deixar de pensar somente aquilo que nos foi ensinado a pensar; é despejarmo-nos dos conceitos impostos por outrem, de Aristóteles para cá, provocando um amontoado de ideias, critérios, interpretações, conceitos e preconceitos, que nos ocupam todo o espaço da visão; trata-se, afinal, de criar o vazio interior necessário para se poderem vislumbrar caminhos novos sobre novos mundos, ambos completamente insuspeitos, até aí.

E Portugal e os seus mistérios sempre presentes, como algo que só se poderia alcançar por dentro, mas de que nos sentíamos cada vez mais perto.

Foi quando me debrucei sobre a obra de Fernando Pessoa, para estudar a adaptação da “Mensagem” ao cinema, que senti um estrépito interior, como se tivesse rebentado um dique por dentro de mim; “avassalador” seria um termo suave para descrever o caudal que então se precipitou. E logo aquele fluxo de memórias e valores arrasou com o que restava do meu antigo “armazém de dados”, isto é, com a parte que ainda subsistia dos critérios exclusivos da mente para descrever o mundo e se manter no controle da minha vida.

Esta outra "arte do olhar", que só pode surgir com a limpeza daquele velho armazém de dados, implica a abertura de processos criativos internos, que também funcionam por imagens, surgidas a par do sentimento mais profundo. Poderemos, portanto, estar a falar de um certo tipo de cinema – não propriamente de películas, mas de um cinema da alma, íntimo, abstrato, reservado, mas que, no entanto, encerra a mais espetacular das aventuras a que um ser humano pode aspirar.

 Ao ficarem à vista os tais caminhos novos, percebi imediatamente que as corridas desenfreadas e a dedicação exclusiva a que o cinema e a televisão me obrigavam, apesar da paixão com que sempre o fazia, não me conduziriam por nenhum deles; e nada me pareceu tão importante como percorrer aqueles caminhos e tentar chegar ao mistério que deles emanava.

Foi assim que deixei de vez a vida conturbada de Lisboa para rebrotar em pleno campo, naquela casa térrea e simples, com os meus discos e os meus livros, como diz a canção eterna de Elis Regina. E onde também comecei a escrever estas minhas filosofices rurais...

Por isso, quando via o sol a subir no horizonte, as gotas de orvalho a provocarem pequenos arco-íris pelo chão, as estrelas a entrarem, desavergonhadamente, pela janela do meu quarto, ou quando passava a mão pelas carumas, ou pela terra virgem, ou por um conjunto de espigas ondulantes, sentia percorrer-me o corpo aquele mesmo arrepio de quando tocava a pele da mulher amada. E sabia conhecer a mensagem que o arrepio me trazia.

Arrepios desse e doutro tipo, sem nunca serem comuns, eram habituais naquele lugar; muitos dos acontecimentos que os provocaram continuam, até hoje, inexplicáveis, como o que sucedeu logo no princípio da nossa estadia, numa noite escura de inverno, quando voltávamos para casa após um dia de trabalho...

O carro percorria o último troço de um caminho de terra, atravessando o pinhal vizinho e, depois da última curva, esperava-nos um susto monumental: um relâmpago rasgou a escuridão e incendiou tudo em redor, como se o raio tivesse caído bem à frente do carro. Travei a fundo, o carro foi abaixo e ali ficámos, totalmente paralisados por fora e por dentro, com os corações a quererem saltar do peito.

...


Aos poucos, recompusemo-nos a custo e percebemos que não havia raio nem incêndio algum, mas que a luz fortíssima que se acendera no breu e que não se apagara, provinha de uma fonte por sobre a copa das arvores, como se fosse um holofote gigantesco. A nossa casa estava a uns bons 150 metros e essa fonte desconhecida situava-se bem por cima dela, fazendo dia claro a toda a volta. O silêncio era total, apenas cortado pelos corações que continuavam a galope.

... 


Não sei quanto tempo permanecemos ali imobilizados nem o que nos fez avançar; certamente que também pesou a inconsciência da juventude, aliada à curiosidade, que acabou por vencer o medo...

A casa continuava intensamente iluminada, e conduzi o carro, devagar, ao seu encontro. Mas assim que chegámos mais perto, a fonte da luz elevou-se e, tomando uma velocidade estonteante, desapareceu no céu, por detrás de uns montes próximos, em direção a leste.

Nunca soubemos o que foi aquilo, mas que aconteceu, aconteceu...

Claro, o mais fácil seria, agora, apontar para um OVNI, completando, ademais, o rol de eventos bizarros à nossa volta. Ou então... uma vez que, na altura, trabalhávamos em cinema: quem sabe se aquela luz não terá sido a dos projetores do filme transcendente que já antes se havia anunciado e que, com a emoção do momento, não recordámos nem ouvimos gritar “Ação”...?

E ação se fez, através da vivência de muitas outras cenas que encheram os nossos corações do sentido mais profundo do maravilhoso e do fantástico, umas vezes com mais consciência, outras menos, e que evidentemente, incluiu, também, um quotidiano revelador.

Foi desse modo que se foi realizando o filme das nossas vidas, a par da mensagem pessoana e de muitas outras que íamos absorvendo e desenvolvendo, com a admiração crescente pelo projeto espiritual que tinha Portugal como um dos seus vectores fundamentais: o Quinto Império. Estudá-lo naquele cenário maravilhoso foi sempre um enorme privilégio, e eu tinha consciência disso.

Na verdade, o sentimento que nutria por aquele lugar e que ele, lugar ou espaço vivo, com todos os Seres que o habitavam, dedicava, igualmente, a mim e a toda a família, era algo que demonstrava, em continuidade, o mais puro e genuíno Amor – aquele que não espera uma troca, mas que se dá, ou se entrega, simplesmente, sem qualquer sentido de permuta.

Foi sempre assim, naquele local abençoado.

Por isso, quando o Destino forçou um giro inesperado nas nossas vidas e nos fez mudar de Portugal para a Galiza, aquela quintinha mágica nunca esboçou qualquer esforço para nos reter; pelo contrário, revelou-se como o mais generoso e formidável cais de partida que alguma vez poderia imaginar: não só nos concedeu o impulso necessário para a saída, como nos recordou, de imediato, toda a preparação que nos havia oferecido ao longo dos anos para podermos percorrer, com outra capacidade e estrutura interna, os novos caminhos.

Relembrou que o Portugal espiritual que ali descobrimos, em tudo transcendia o seu espaço geográfico, e que a sua energia peculiar não tinha fronteiras nem quaisquer limitações físicas, podendo fazer-se sentir em qualquer outra parte do mundo. E sublinhou que essa seria uma das chaves da instauração do Império cultural e espiritual que germinaria por todos os cantos da Terra, de acordo com o universalismo lusitano.

Claro que, para nós, família que a habitámos por tanto tempo, aquela quintinha será sempre a imagem daquilo que absorvemos do mistério português: a taça com o conteúdo. Mas creio que a essência que, então, nos foi oferecida permanecerá conosco para sempre, porque a bebemos, com a consciência possível, até à última gota. Ou seja, a alma daquele espaço, o seu poder e a sua energia, continuarão a fazer parte do trabalho espiritual das nossas vidas, onde quer que estejemos.

 Foi assim, confortado por esses pensamentos e levando no coração tudo aquilo que não podia levar nas malas, que deixei Portugal e parti, com a minha admirável e corajosa família, para uma Galiza igualmente misteriosa e mágica.



E nada foi deixado para trás.