4 de jun. de 2010

QUE ÂNSIA DISTANTE, PERTO, CHORA?...




É um facto que Portugal se encontra numa situação extremamente crítica.

Poderão apontar-se inúmeras razões e atribuirem-se todas as culpas à conjuntura internacional; porém, deixando de lado as inúmeras justificações externas possíveis, vou debruçar-me sobre uma só causa interna, impossível de ser considerada por uma análise positivista mas que, a meu ver, está na origem de tudo.

Resume-se no seguinte: Portugal perdeu a sua identidade profunda e o seu projecto oculto, que era a sua razão de ser; isto é, Portugal perdeu a sua Alma.

Refira-se, desde já, que não defendo nenhum ponto de vista moralista ou religioso, tal como o apresentam as igrejas do mundo; tento, antes, partir das premissas neutras da chamada Tradição primordial.

O que é a Tradição primordial? Talvez se possa dizer que expressa um conjunto de valores e de regras sagradas, definindo um determinado Plano arquétipal inscrito na Alma da nação.

Para dar cumprimento externo a esse Plano, foi levado Afonso Henriques a fundar Portugal e, mais tarde, o Mestre de Avis chamado a confirmar a independência e a abrir um período de ouro, em que foram promovidas as Descobertas. Muitos outros homens ilustres da nossa História foram agentes do referido Plano e porta-vozes inspirados dos seus valores, como Camões e António Vieira e, mais recentemente, Fernando Pessoa. A esse conjunto de valores por eles apresentado poderemos chamar também de Portugalidade.

A perda desse Plano ou da Alma que o inscrevia implica, assim, uma morte psíquica e espiritual. Não querer reconhecer a gravidade da questão, nem querer saber das suas causas (sobretudo aquelas mais próximas, que deram o golpe definitivo) torna tudo ainda pior, porque significa um vaguear às cegas pelo limbo, sem qualquer esperança ou hipótese de renascimento.

Para mim, a única saída possível começa pela compreensão das causas que determinaram este estado terrível de vazio por dentro - ausência da Alma - e por fora - ausência dos valores primordiais e crise a todos os níveis.

Não ignoro que estas palavras, bem como tudo que envolva a Portugalidade, possam ser confundidas ou conotadas de imediato, por quem não compreende ou combate os valores em questão, com "saudosismo reaccionário"... Mas enquanto imperarem estes chavões, provindos de um pseudo-progressismo que utiliza o estilo do mais puro conservadorismo para defender a sua própria cristalização ( expressando, afinal, o mais rígido e doentio dos reaccionarismos...), não se mudam mentalidades e a nação continuará cada vez mais longe da sua Alma.

Vale a pena recordar aqui uma parábola contada pelo grande místico e sábio indiano Râmakrishna:
Um dia, quatro cegos cruzaram-se com um elefante. Um deles tocou-lhe na perna e disse:
- "O elefante é como um pilar!"
O segundo cego, apalpou a tromba e logo declarou:
- "O elefante é como uma mangueira!"
O terceiro, passou as mãos pela barriga do bicho e convictamente afirmou:
- "O elefante é como um tonel!"
O quarto cego percorreu com a mão uma das orelhas grandes e redondas do animal e proclamou:
- "O elefante é como uma ciranda!"

Então, como cada um deles havia tido uma percepção diferente, puseram-se a discutir sobre o aspecto do elefante.
Um homem que passava foi atraído pelo calor da discussão e perguntou o motivo da disputa. Os quatro cegos, depois de tudo explicarem, pediram ao recém chegado que dissesse quem tinha razão. Calmamente, o homem sentenciou:
- "Nenhum de vós soube definir o elefante... O elefante não é como um pilar, as suas pernas é que são como pilares; não é como uma mangueira, a sua tromba é que parece uma mangueira; não é como um tonel, a sua barriga é que é como um tonel; não é como uma ciranda, as suas orelhas é que são como cirandas... Mas o elefante é o conjunto de tudo isso!"

Esta história assinala exemplarmente o perigo das classificações e das definições apressadas, sem a mínima ideia da matéria relativa ao conjunto em questão... A falta de visão deixa espaço aberto para a utilização de outros critérios, necessariamente obscuros e incompletos, que facilmente desembocam em sectarismos extremistas que, por sua vez, também de modo fácil e directo, levam à génese de um qualquer fundamentalismo - precisamente o oposto da Consciência.

A Consciência é um estado interior de visão alargada, a que se acede pela luz da Alma. Ora essa luz tanto ilumina e anima um projecto individual como o projecto colectivo de um povo ou de uma nação. Neste último caso, os seus reflexos externos são os valores da respectiva Tradição primordial.

No Portugal sem Alma em que vivemos agora, essa Tradição continua a não ser vista na sua totalidade mas, no entanto, é cada vez mais julgada e ostracizada por muitos cegos...

Para alterar este triste estado haverá, portanto, que tentar entender o seu significado, começando por anular a ideia de que tudo o que diga respeito à Portugalidade não passa de um amontoado de velharias sem sentido e de perigoso saudosismo político...

Recordo a nossa História: sempre se apoiou nas suas raízes mais profundas mas sempre nos fez erguer a cabeça do chão e voltá-la para diante, para o grande Mistério do Futuro. Daí que, a haver qualquer tipo de saudosismo, não foi nem será nunca do Passado, porque os portugueses autênticos sempre tiveram saudades do Futuro...

É certo que, nos anos cinquenta, o Estado Novo de Salazar se serviu do esplendor do nosso passado histórico para criar uma onda de nacionalismo retrógrado a seu favor; mas a verdade é que esse movimento vivia de fachadas e, desse modo, sempre se ficou pelas aparências dos haveres da nossa Tradição; nunca chegou, nem poderia chegar, aos verdadeiros valores, à essência... e, sendo assim, tudo aquilo era falso, pois não existia um vínculo à Tradição, fiel-depositária das chaves-mestras da Portugalidade.

Este tipo de nacionalismo é um fenómeno superficial, que vive na babujem do povo, tentando activar os seus aspectos emocionais mais primários e todas as consequentes cristalizações mentais. Ao contrário do que apregoa, nada tem a ver com os valores ou com a identidade da nação, que ignora por completo. Vive de interesses personalísticos de poder e de uma premente necessidade de afirmação e de protagonismo, situando-se ao nível dos complexos patológicos por resolver ou mal resolvidos. Portanto, nada tem a ver com a Consciência ligada à luz da Alma; ao contrário, essa Consciência encontra-se nas antípodas do referido fenómeno.

Pós revolução de Abril de 1974, os sucessivos governantes deste país continuaram a ignorar a Tradição, ainda que alguns se ufanassem das suas ligações à Maçonaria que, por princípio, deveria defender e promover a mesma Tradição ( afinal aquela que, verdadeiramente, assinala o caminho para a maior de todas as Revoluções!...) Mas dessa Maçonaria, apenas restou o nome, pois rapidamente se transformou no clube social e político da moda e numa agência de emprego.

No seu afã de se demarcarem do estigma do nacionalismo anterior, aqueles novos líderes colocaram tudo no mesmo saco e confundiram, ou fizeram deliberadamente confundir, História com "reacção"e a dádiva de novos mundos ao mundo com "imperialismo fascista"..., preferindo inventar um estado postiço e tremendamente morno para o país, sem qualquer base sólida interna a que, curiosamente, chamaram de "progressismo".

É claro que a Portugalidade não tem a ver com nada disto, e a atitude reactiva dos novos poderes, que hoje em dia se mantém, foi e continua a ser tão grave, como o havia sido a postura do Estado Novo: ambas posições assentam na ignorância ou no desprezo pela Tradição e ambas contribuíram para o seu ocaso, acabando por promover uma ideia artificial de um país que, sem um projecto ligado a uma interioridade autêntica e profunda, rapidamente resvalou de algumas boas intenções para o deserto em que se encontra, vergastado continuamente pelos ventos cortantes do oportunismo e da demagogia.

E para o vazio mais desesperançado...

Tenho para mim que a perda dessa esperança (até aí sempre renovada) foi o golpe definitivo; a Alma acabou por se desprender do corpo exausto da nação e um nevoeiro, cada vez mais cerrado, espalhou-se sobre Portugal inteiro...

Mas para chegar a hora do renascimento não é preciso morrer primeiro?

Então, para tentar reverter esta situação desesperada e apontar, desde já, ao renascimento da nação, teremos, primeiro, de perceber que, em termos absolutos, aquilo que consideramos como dividido entre passado, presente e futuro não existe, porque tudo se funde no eterno Agora... Mas para montar o "puzzle" desse Agora não poderemos deixar de fora nenhuma das suas peças constituintes: as do passado, as do presente e as do futuro... Deste modo, sem exclusão alguma, olharemos para o desenho à nossa frente como o Todo que realmente é; de outro modo, deixaríamos escapar o seu significado essencial.

Ou seja, para sairmos do limbo a que estamos condenados, será preciso enfrentar, sem medo e sem complexos, a nossa História e perceber qual o conjunto de significados intemporais que ela encerra; é nela que se inscrevem os traços já cumpridos do Plano originalmente inscrito na Alma da nação e que permitem decifrar o que falta...

Esse Plano encontra-se também condensado e projectado no mais fundo da Alma de cada português. A pequenina chispa está lá e brilha, mesmo sem o sabermos. Por isso, se nos virarmos para dentro e ali soubermos reconstituir o "puzzle" ou o mapa da Tradição, à luz da nossa própria Alma, poderemos chegar à mesma percepção de outrora, sobre a identidade, a missão e a felicidade de Portugal.

Ou seja, uma vez que já não existe a grande Alma primordial, o processo inverteu-se, sendo agora necessário o esforço individual de cada um, a sós consigo, para reconstruir um pedaço da Alma colectiva perdida. Será o acender de uma tímida luz na escuridão e no nevoeiro, mas a uma luz acesa se seguirá outra e mais outra e assim por diante, até ser atingido um determinado quantum... que fará, um dia, Portugal ganhar uma Alma nova e renascer.

Re-iluminado desse modo, poderá então cumprir o seu destino no Quinto Império Espiritual, tornando-se na própria "Luz das Nações", como escreveu Fernando Pessoa.

Parece uma meta inalcansável, sobretudo quando o desalento actual nos faz sentir abandonados e completamente perdidos no meio dos destroços do país e das nossas vidas... Para começar a tornar-se mais possível, saibamos reconhecer que a retoma da economia é muito importante, mas muito mais importante ainda será a retoma da Consciência.

E saibamos depois (por experiência interna feita...) que o que foi profetizado se cumprirá, mesmo que os governantes do Portugal de agora, ainda mais cegos pelo nevoeiro, só se agarrem, teimosamente, à tromba ou ao rabo do elefante!...

Que ânsia distante, perto, chora?...