11 de dez. de 2010

TAL COMO HÁ DOIS MIL ANOS ( uma reflexão políticamente incorrecta sobre o Natal )




José nem queria acreditar: depois de uma jornada daquelas, com a mulher exausta e prestes a dar à luz, não tinham lugar na hospedaria! A noite caíra entretanto e só lhes restava procurar abrigo na gruta ali próxima, onde os pastores guardavam o gado.

Ouvem-se buzinadelas e a campainha da porta toca repetidamente. É a família que se reune, trocando os votos tradicionais entre beijos, abraços e exclamações elogiosas pelo brilho luxuoso da casa engalanada. Ao fundo, a mesa posta com a toalha e o serviço das grandes ocasiões, pronta para servir requintadas iguarias.

Na hospedaria, a algazarra subia de tom. Judeus vindos dos quatro cantos da província, por causa do censo romano, aproveitavam a ocasião para fechar negócios e festejar reencontros. Esse fundo barulhento, canalizado pela noite, repercutia-se nas paredes da gruta, mas José não ouvia nada; a sua atenção ía toda para Maria, que não pudera esperar mais tempo e banhada em suor e dor se esforçava, com valentia, para fazer nascer a criança. José ainda gritara por ajuda, mas só lhe respondera o eco da sua voz, perdendo-se contra o ressoar incessante da hospedaria. Provávelmente, estariam a servir a ceia, a avaliar pelos brados de aprovação e pelas cantorias dispersas, fomentadas pelo vinho.

Puxados por mãos ansiosas e entre gritos de entusiasmo, rompem-se as fitas e rasgam-se os papéis. A excitação, ateada pela ansiedade mal contida, atinge o auge com o desembrulhar dos presentes. O ambiente lembra mais uma feira do que a evocação de algo transcendente. No fim, multiplicam-se os risos, já entrecortados por alguns bocejos, soltam-se rolhas e, por entre renovadas exclamações de prazer, é servida a ceia.

Na gruta, aquecida apenas pelo calor dos pais e pelos bafos do burro em que haviam viajado e ainda de um boi, ali antes recolhido, o recém-nascido chorava de vida. Lágrimas de alegria corriam também pelos rostos, finalmente serenos, dos pais. A noite ía alta e o novo rumor que os envolvia, precedido por uma estranha claridade, já não tinha nada que ver com a proximidade da hospedaria, onde as luzes já se haviam apagado.

Sopram-se as últimas velas e o fumo vai adensar ainda mais a atmosfera moldada pelos múltiplos cigarros e charutos acesos ao longo da noite. Voltam a vestir-se sobretudos e cachecóis. A necessidade de levar os mais pequenos ao colo e os sacos com os presentes amontoados, dificultam a saída. Beijos agradecidos e recomendações de prudência ao volante encerram mais uma noite de Natal. No dia seguinte, já se sabe que a cabeça, o fígado e o estômago vão acusar os excessos da véspera, mas tudo isso faz parte da quadra festiva...



Mais uma vez, optámos por ignorar a existência da gruta e o seu simbolismo, que aponta a via do recolhimento na caverna mais íntima do nosso ser; dizem os textos iniciáticos que será sómente ali que poderá nascer um Menino de Luz em cada um de nós... Trata-se de um processo individual, simples, natural e profundo, interno e directo, sem necessidade de nenhuma instituição eclesiástica nem de qualquer tipo de intermediário, tal como sugere a gruta original... Mas por uma questão de educação e de formatação social, aliadas ao comodismo e à distração ( o próprio estatuto da quadra inclina para manifestações de uma vaga espiritualidade sazonal, totalmente gratas ao ego e que iludem outros caminhos), acabamos por não querer saber de mais nada. Deste modo, ano após ano, repetimos, aliviadamente, o comportamento comum de sempre; ou seja, continuamos como cúmplices passivos das armadilhas da nossa própria mente, que arranja toda a espécie de desculpas e de alibis para que passemos a noite num cenário menos complicado e mais racionalmente tradicional!...

Bem vistas as coisas, continuamos clientes fiéis e permanentes daquela famosa hospedaria onde a outra Família não teve lugar! Porque, afinal de contas, as paredes da hospedaria são as mesmas das nossas mentes, projectando a agradável sensação de segurança de um mundo familiar e doméstico, sem sobressaltos ou mistérios descabidos que o ponham em causa... Na verdade, é na hospedaria que, de forma consciente ou inconsciente, passamos, não só as festas, mas as nossas vidas inteiras.

E assim decorreram dois mil anos!

Mas, após uma estadia tão prolongada, o que fazer quando nos apresentarem a conta?!...

4 de jun. de 2010

QUE ÂNSIA DISTANTE, PERTO, CHORA?...




É um facto que Portugal se encontra numa situação extremamente crítica.

Poderão apontar-se inúmeras razões e atribuirem-se todas as culpas à conjuntura internacional; porém, deixando de lado as inúmeras justificações externas possíveis, vou debruçar-me sobre uma só causa interna, impossível de ser considerada por uma análise positivista mas que, a meu ver, está na origem de tudo.

Resume-se no seguinte: Portugal perdeu a sua identidade profunda e o seu projecto oculto, que era a sua razão de ser; isto é, Portugal perdeu a sua Alma.

Refira-se, desde já, que não defendo nenhum ponto de vista moralista ou religioso, tal como o apresentam as igrejas do mundo; tento, antes, partir das premissas neutras da chamada Tradição primordial.

O que é a Tradição primordial? Talvez se possa dizer que expressa um conjunto de valores e de regras sagradas, definindo um determinado Plano arquétipal inscrito na Alma da nação.

Para dar cumprimento externo a esse Plano, foi levado Afonso Henriques a fundar Portugal e, mais tarde, o Mestre de Avis chamado a confirmar a independência e a abrir um período de ouro, em que foram promovidas as Descobertas. Muitos outros homens ilustres da nossa História foram agentes do referido Plano e porta-vozes inspirados dos seus valores, como Camões e António Vieira e, mais recentemente, Fernando Pessoa. A esse conjunto de valores por eles apresentado poderemos chamar também de Portugalidade.

A perda desse Plano ou da Alma que o inscrevia implica, assim, uma morte psíquica e espiritual. Não querer reconhecer a gravidade da questão, nem querer saber das suas causas (sobretudo aquelas mais próximas, que deram o golpe definitivo) torna tudo ainda pior, porque significa um vaguear às cegas pelo limbo, sem qualquer esperança ou hipótese de renascimento.

Para mim, a única saída possível começa pela compreensão das causas que determinaram este estado terrível de vazio por dentro - ausência da Alma - e por fora - ausência dos valores primordiais e crise a todos os níveis.

Não ignoro que estas palavras, bem como tudo que envolva a Portugalidade, possam ser confundidas ou conotadas de imediato, por quem não compreende ou combate os valores em questão, com "saudosismo reaccionário"... Mas enquanto imperarem estes chavões, provindos de um pseudo-progressismo que utiliza o estilo do mais puro conservadorismo para defender a sua própria cristalização ( expressando, afinal, o mais rígido e doentio dos reaccionarismos...), não se mudam mentalidades e a nação continuará cada vez mais longe da sua Alma.

Vale a pena recordar aqui uma parábola contada pelo grande místico e sábio indiano Râmakrishna:
Um dia, quatro cegos cruzaram-se com um elefante. Um deles tocou-lhe na perna e disse:
- "O elefante é como um pilar!"
O segundo cego, apalpou a tromba e logo declarou:
- "O elefante é como uma mangueira!"
O terceiro, passou as mãos pela barriga do bicho e convictamente afirmou:
- "O elefante é como um tonel!"
O quarto cego percorreu com a mão uma das orelhas grandes e redondas do animal e proclamou:
- "O elefante é como uma ciranda!"

Então, como cada um deles havia tido uma percepção diferente, puseram-se a discutir sobre o aspecto do elefante.
Um homem que passava foi atraído pelo calor da discussão e perguntou o motivo da disputa. Os quatro cegos, depois de tudo explicarem, pediram ao recém chegado que dissesse quem tinha razão. Calmamente, o homem sentenciou:
- "Nenhum de vós soube definir o elefante... O elefante não é como um pilar, as suas pernas é que são como pilares; não é como uma mangueira, a sua tromba é que parece uma mangueira; não é como um tonel, a sua barriga é que é como um tonel; não é como uma ciranda, as suas orelhas é que são como cirandas... Mas o elefante é o conjunto de tudo isso!"

Esta história assinala exemplarmente o perigo das classificações e das definições apressadas, sem a mínima ideia da matéria relativa ao conjunto em questão... A falta de visão deixa espaço aberto para a utilização de outros critérios, necessariamente obscuros e incompletos, que facilmente desembocam em sectarismos extremistas que, por sua vez, também de modo fácil e directo, levam à génese de um qualquer fundamentalismo - precisamente o oposto da Consciência.

A Consciência é um estado interior de visão alargada, a que se acede pela luz da Alma. Ora essa luz tanto ilumina e anima um projecto individual como o projecto colectivo de um povo ou de uma nação. Neste último caso, os seus reflexos externos são os valores da respectiva Tradição primordial.

No Portugal sem Alma em que vivemos agora, essa Tradição continua a não ser vista na sua totalidade mas, no entanto, é cada vez mais julgada e ostracizada por muitos cegos...

Para alterar este triste estado haverá, portanto, que tentar entender o seu significado, começando por anular a ideia de que tudo o que diga respeito à Portugalidade não passa de um amontoado de velharias sem sentido e de perigoso saudosismo político...

Recordo a nossa História: sempre se apoiou nas suas raízes mais profundas mas sempre nos fez erguer a cabeça do chão e voltá-la para diante, para o grande Mistério do Futuro. Daí que, a haver qualquer tipo de saudosismo, não foi nem será nunca do Passado, porque os portugueses autênticos sempre tiveram saudades do Futuro...

É certo que, nos anos cinquenta, o Estado Novo de Salazar se serviu do esplendor do nosso passado histórico para criar uma onda de nacionalismo retrógrado a seu favor; mas a verdade é que esse movimento vivia de fachadas e, desse modo, sempre se ficou pelas aparências dos haveres da nossa Tradição; nunca chegou, nem poderia chegar, aos verdadeiros valores, à essência... e, sendo assim, tudo aquilo era falso, pois não existia um vínculo à Tradição, fiel-depositária das chaves-mestras da Portugalidade.

Este tipo de nacionalismo é um fenómeno superficial, que vive na babujem do povo, tentando activar os seus aspectos emocionais mais primários e todas as consequentes cristalizações mentais. Ao contrário do que apregoa, nada tem a ver com os valores ou com a identidade da nação, que ignora por completo. Vive de interesses personalísticos de poder e de uma premente necessidade de afirmação e de protagonismo, situando-se ao nível dos complexos patológicos por resolver ou mal resolvidos. Portanto, nada tem a ver com a Consciência ligada à luz da Alma; ao contrário, essa Consciência encontra-se nas antípodas do referido fenómeno.

Pós revolução de Abril de 1974, os sucessivos governantes deste país continuaram a ignorar a Tradição, ainda que alguns se ufanassem das suas ligações à Maçonaria que, por princípio, deveria defender e promover a mesma Tradição ( afinal aquela que, verdadeiramente, assinala o caminho para a maior de todas as Revoluções!...) Mas dessa Maçonaria, apenas restou o nome, pois rapidamente se transformou no clube social e político da moda e numa agência de emprego.

No seu afã de se demarcarem do estigma do nacionalismo anterior, aqueles novos líderes colocaram tudo no mesmo saco e confundiram, ou fizeram deliberadamente confundir, História com "reacção"e a dádiva de novos mundos ao mundo com "imperialismo fascista"..., preferindo inventar um estado postiço e tremendamente morno para o país, sem qualquer base sólida interna a que, curiosamente, chamaram de "progressismo".

É claro que a Portugalidade não tem a ver com nada disto, e a atitude reactiva dos novos poderes, que hoje em dia se mantém, foi e continua a ser tão grave, como o havia sido a postura do Estado Novo: ambas posições assentam na ignorância ou no desprezo pela Tradição e ambas contribuíram para o seu ocaso, acabando por promover uma ideia artificial de um país que, sem um projecto ligado a uma interioridade autêntica e profunda, rapidamente resvalou de algumas boas intenções para o deserto em que se encontra, vergastado continuamente pelos ventos cortantes do oportunismo e da demagogia.

E para o vazio mais desesperançado...

Tenho para mim que a perda dessa esperança (até aí sempre renovada) foi o golpe definitivo; a Alma acabou por se desprender do corpo exausto da nação e um nevoeiro, cada vez mais cerrado, espalhou-se sobre Portugal inteiro...

Mas para chegar a hora do renascimento não é preciso morrer primeiro?

Então, para tentar reverter esta situação desesperada e apontar, desde já, ao renascimento da nação, teremos, primeiro, de perceber que, em termos absolutos, aquilo que consideramos como dividido entre passado, presente e futuro não existe, porque tudo se funde no eterno Agora... Mas para montar o "puzzle" desse Agora não poderemos deixar de fora nenhuma das suas peças constituintes: as do passado, as do presente e as do futuro... Deste modo, sem exclusão alguma, olharemos para o desenho à nossa frente como o Todo que realmente é; de outro modo, deixaríamos escapar o seu significado essencial.

Ou seja, para sairmos do limbo a que estamos condenados, será preciso enfrentar, sem medo e sem complexos, a nossa História e perceber qual o conjunto de significados intemporais que ela encerra; é nela que se inscrevem os traços já cumpridos do Plano originalmente inscrito na Alma da nação e que permitem decifrar o que falta...

Esse Plano encontra-se também condensado e projectado no mais fundo da Alma de cada português. A pequenina chispa está lá e brilha, mesmo sem o sabermos. Por isso, se nos virarmos para dentro e ali soubermos reconstituir o "puzzle" ou o mapa da Tradição, à luz da nossa própria Alma, poderemos chegar à mesma percepção de outrora, sobre a identidade, a missão e a felicidade de Portugal.

Ou seja, uma vez que já não existe a grande Alma primordial, o processo inverteu-se, sendo agora necessário o esforço individual de cada um, a sós consigo, para reconstruir um pedaço da Alma colectiva perdida. Será o acender de uma tímida luz na escuridão e no nevoeiro, mas a uma luz acesa se seguirá outra e mais outra e assim por diante, até ser atingido um determinado quantum... que fará, um dia, Portugal ganhar uma Alma nova e renascer.

Re-iluminado desse modo, poderá então cumprir o seu destino no Quinto Império Espiritual, tornando-se na própria "Luz das Nações", como escreveu Fernando Pessoa.

Parece uma meta inalcansável, sobretudo quando o desalento actual nos faz sentir abandonados e completamente perdidos no meio dos destroços do país e das nossas vidas... Para começar a tornar-se mais possível, saibamos reconhecer que a retoma da economia é muito importante, mas muito mais importante ainda será a retoma da Consciência.

E saibamos depois (por experiência interna feita...) que o que foi profetizado se cumprirá, mesmo que os governantes do Portugal de agora, ainda mais cegos pelo nevoeiro, só se agarrem, teimosamente, à tromba ou ao rabo do elefante!...

Que ânsia distante, perto, chora?...

3 de mar. de 2010

ROMPER O CONTROLE OU COMO DO NADA SE FEZ A MENSAGEM


 "A Arte é uma emoção interior que dá conta de um Mistério. Um Mistério total que se eleva, magnífico, por cima de toda a expressão artística, que não pode ser escrava da representação social racional. As forças, as vibrações, as ondas, as energias, são apreendidas de uma forma totalmente distinta daquela das ideias, que são uma invenção humana."
                                                                                                   Carlos Castaneda
Remover formatação da selecção



A “Mensagem” é um pequeno livro de poemas de Fernando Pessoa que creio conter, nos “entre-versos”, uma mensagem propriamente dita sobre a missão e o futuro de Portugal e do mundo.

A ideia de filmar aqueles “entre-versos” como uma espécie de retrato de grupo da Tradição Lusíada, mágica e espiritual, tentando desvelar o propósito neles contido, afigurava-se, à-priori, como uma tarefa complicadíssima. Acrescente-se que o cinema é uma arte em que, para além do talento, os meios de produção são determinantes na qualidade do produto final; isto é, não se pode pensar em fazer um filme (ainda por cima de longa-metragem e, para mais, em Portugal) sem a verba adequada, que garanta o aparato técnico indispensável, bem como os próprios técnicos, actores, estúdios, guarda-roupa, etc.. Ora o projecto desta “Mensagem” não teve qualquer subsídio do estado português, nem tampouco interessou nenhuma das instituições culturais que, normalmente, apoiam o cinema nacional.

 Portanto, com este cenário à partida, a tarefa passava de complicadíssima à categoria da mais absoluta impossibilidade. No entanto, no outono de 1986 foi rodada a primeira cena da “Mensagem” e, dois anos depois, o filme estava concluído. Como foi possível?

A única resposta é que a situação limite em que me encontrava, provocada pela completa falta de condições, contrapondo-se à grande vontade de seguir em frente, forçou um fenómeno inusitado: ao invés de desistir do filme, como seria racionalmente evidente, desisti do critério que dizia ser impossível.



 O facto é que a “Mensagem” foi depois estreada no cinema S.Luiz, em Lisboa, no dia 13 de Junho de 1988, data que corresponderia ao 100º aniversário de Fernando Pessoa.

Olhando para trás, reconheço agora aquele critério de impossibilidade como pertencendo a um extenso catálogo de normas e directivas que preenchem a vida do homem de hoje, expressando o domínio absoluto daquilo que conhecemos como a "razão".

Apoiando-se no que poderíamos chamar de “lobby de Aristóteles” (o filósofo grego que definiu o homem como um ser racional e social), a razão há muito que subiu ao poder, determinando uma obediência cega e imediata às suas normas.

Por isso, rápidamente se estabeleceu que somente são de confiança os parâmetros racionais utilizados na descrição do mundo; isto é, aceitou-se o tal catálogo de critérios e funcionalidades como a única expressão válida da vida – da vida racionalmente correcta, claro está. Resultado: o homem de hoje só pensa do modo e da forma com que a razão o deixa pensar, utilizando aqueles mesmos critérios para observar o mundo à sua volta, através do olhar viciado que a mesma razão formatou.

Mas como não haveria de ser assim se, desde a mais tenra infância, esse homem é educado e instruído para viver na “sociedade do catálogo"?... Diz ela que há que aprender todos os códigos, regras e convenções para que a sociedade se mantenha coesa e em pleno funcionamento, fortalecendo cada vez mais o domínio da razão; ou seja, como em qualquer outra ditadura, a ordem social é conseguida à custa de um perfeito controle sobre os seus membros.

Ora a grande questão é precisamente essa: o controle.

Por muito que custe a entender (porque somente se pensa como se foi ensinado a pensar...), a ditadura da razão encontra-se por detrás de todos os poderes do mundo, sejam políticos, sociais ou mesmo religiosos ( sim, religiosos também, porque é a razão que, sob o manto espesso dos dogmas por si criados, trata de ocultar a Verdade primordial que, de outra forma, a colocaria seriamente em causa...)

A razão tornou-se, de facto, no poder dos poderes, contando com o orgulho indefectível da própria inteligência do homem para o transformar no guardião do sistema, sem quaisquer custos adicionais... Só que aquilo que chamamos  "inteligência" foi descrita pelos critérios da razão, que a ela se colou, ignorando e escamoteando todas as outras formas de percepção do mundo e da vida.

Esclareça-se, desde já, que considero a razão como um instrumento imprescindível na vida e na evolução do ser humano. Mas torna-se fundamental que a razão seja colocada no devido lugar e na função de "instrumento", não passando nunca à condição de instrumentalizadora ou de manipuladora da consciência, não permitindo qualquer sombra ou contestação ao seu domínio; por isso, nega totalmente o acesso às outras formas de percepção, afirmando, descaradamente, que não existem.

Mas Fernando Pessoa diz-nos que existem. E que funcionam.

Creio que para se entender a "Mensagem" como o anúncio de um "Império Espiritual", é indispensável conhecer o universo interno do seu autor, que misteriosamente confessa ao único amor da sua vida: "o meu destino pertence a outra Lei, cuja existência a Ophelinha nem sabe."


Numa nota biográfica escrita em 1935, ano da sua morte, Fernando Pessoa define-se a si mesmo como "Cristão Gnóstico e, portanto, oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma." Desde cedo que vinha revelando uma forte apetência por um saber transcendente, em busca de uma outra realidade ou verdade oculta. Data de 1906 uma nota íntima que proclama o seu "grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro", que o impele a percorrer um itinerário de consciência, ditado pelo Espírito.

Em 1915, ao traduzir para o português livros teosóficos (como "A Voz do Silêncio" de Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica) é atraído por esse movimento essencialmente gnóstico, escrevendo então que "o carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de
força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumem as obras teosóficas, perturbaram-me muito."

Aprofunda depois o estudo e vivência da Gnose, chegando ao dos Rosa-Cruzes e passando pela Cabala, Astrologia, Alquimia, Geometria Sagrada, Magia, Mitologia, Simbologia, Misticismo, Profecia, Hermetismo..., como partes
componentes do que chama "Tradição Secreta do Cristianismo" da qual se afirma devotadamente "fiel".

Conhecendo este pano de fundo interior, poderemos entender muito melhor a ânsia de Fernando Pessoa pelas Novas Descobertas, como intuição do divino, bem como a génese e o alcance da "Mensagem". E também como esse alcance se choca com a razão...

De facto, todas as referidas disciplinas iniciáticas que ocuparam a interioridade de Fernando Pessoa, referem a constituição séptupla do homem, isto é, a existência de outros "corpos de energia", invisíveis, correspondentes a planos diferentes, que rodeiam o corpo visível do ser humano.

É preciso dizer que a ciência oficial mais avançada está a ir, cada vez mais, ao encontro desta concepção ancestral, que nunca deixou de ser considerada no oriente; num nível mais vulgar, ela também já foi absorvida e adoptada pelo ocidente, ainda que de forma superficial, pois a noção de "aura", de "chackras", de boa ou má "vibração", de alto ou baixo "astral", etc., fazem parte das conversas quotidianas deste lado do mundo.

A referida Tradição ensina que, para além do corpo físico denso, se seguem, de forma cada vez mais subtil, o etérico (fonte da vitalidade), o astral (onde se situam as emoções) e o mental, dividido em duas partes: o mental concreto, que é o plano da razão e que encerra o quaternário anterior da "personalidade humana”, e o mental abstracto, que abre as portas da "alma"; os orientais chamam a este plano de manas superior, ligando o homem à tríade que constitui a sua "individualidade espiritual", composta por mais dois "corpos energéticos": o búdico ou da intuição e o àtmico ou crístico.

Portanto, segundo a constituição oculta do ser humano, a razão situa-se bem distante do plano final... Por isso, como já referi, haverá que ser colocada no seu devido lugar e, dali, em vez de obstaculizar, deverá exercer a sua função de instrumento precioso na jornada de consciência do homem, ajudando-o a organizar e a sistematizar o caminho espiritual, que vai muito para além da mente concreta...

No filme, o acesso  àqueles horizontes novos, espirituais, onde também se encontram os registos do passado, é dado pela janela do quarto, abrindo-se sobre cenas da História de Portugal; simboliza a abertura da visão espiritual, a partir do olho interno, que a mesma Tradição revela estar situado no centro da testa de todo o ser humano e ligado à glândula pineal.




Portanto, quando Fernando Pessoa incita às Novas Descobertas, está a referir-se ao desbravar corajoso de novos planos ou níveis de consciência, individuais e colectivos. São mundos imensos e desconhecidos, como o eram, de um outro modo e num outro plano, os mundos que os navegadores portugueses ousaram descobrir no passado, não fazendo caso dos mapas que indicavam que, de certo ponto em diante, o mundo acabava e só havia dragões...

Actualmente,os mapas mentais forjados pela razão também avisam que, para além dela, só há dragões... Dragões ou Adamastores, agora denominados de "demência", "insanidade", "estupidez", "irracionalismo" etc., para que infundam um pavor correspondente.

Curiosamente, quando o filme "Mensagem" estreou no cinema, houve logo um crítico que o classificou como uma obra "irracional"... Devo dizer que tomei isso como o maior dos elogios pois, no sentido aqui desenvolvido,
irracional não é qualquer insuficiência da mente mas a sua ultrapassagem "supra-racional" consciente, rumo aos planos mais elevados do ser.

Neste mesmo sentido também será irracional todo o pensamento profético de Fernando Pessoa ou do padre António Vieira, que primeiro falou do "Quinto Império"; e não consta que Fernando Pessoa, António Vieira ou muitos outros expoentes da cultura portuguesa que aderiram à corrente "Quinto Imperial" e ousaram romper o controle da razão, sejam doidos varridos, alucinados pela droga, mentecaptos ou simplesmente idiotas...

Esta luta do homem pela consciência e pela verdadeira liberdade, em toda a sua extensão, também se encontra muitíssimo bem descrita nos livros de Carlos Castaneda, que Deepak Chopra considerou como um dos maiores pensadores do século XX. Neles, o autor relata a sua iniciação por intermédio de um Mestre a que chama de "D. Juan" e que o ajudou a tornar-se num "Guerreiro do Espírito".




"D. Juan" diz que quando o homem se enfrenta com cenários inabituais, "o medo do conhecimento é natural; todos o experimentamos sem poder fazer nada. Mas por mais temível que seja a aprendizagem, é muito mais terrível a ideia de um homem sem conhecimento."

E ainda : "Os nossos semelhantes (os homens comuns, dominados pela razão) são verdadeiros magos negros. E quem quer que esteja com eles torna-se também num mago negro. Pensa um momento: podes desviar-te do caminho que esses teus semelhantes traçaram para ti? Enquanto estiveres com eles, as tuas acções e pensamentos permanecem absolutamente rígidas, fixas nos seus termos. Isso é escravatura. O guerreiro, ao contrário, está livre de tudo isso. A liberdade é cara, mas o preço não é impossível de pagar. Deste modo, deves temer os teus captores, os teus amos; não desperdices o teu tempo e o teu poder com medo da liberdade".

A conquista consciente dessa liberdade, na sua vertente global, planetária, é, pois, a mesma proposta que Fernando Pessoa nos deixou com as Novas Descobertas: descobertas de mundos internos, espirituais, que darão uma outra dimensão e oportunidade ao homem de hoje e ao seu mundo moderno, que não deixa de ser vazio, medíocre e limitado, ainda que tecnologicamente muito desenvolvido.

Por isso, apesar do controle cerrado da razão, há cada vez mais pessoas que sentem um apelo da alma que não sabem definir, porque nenhuma das vias formais do pensamento ocidental se constitui como um caminho de libertação. De modo que esse forte apelo interno vai desembocar num vazio doloroso e terrível; no entanto, poderá ser essa a condição necessária para que nasça alguma coisa verdadeiramente nova.

Sucedeu uma situação semelhante com a produção do filme "Mensagem": provocado pelas circunstâncias prévias, surgiu o tal vazio desolador que forçou um mergulho no abismo; mas de súbito tornou-se claro que não havia abismo nenhum e que o caminho não terminava ali...

Parece simples e é muito simples.

Mas chegar a essa simplicidade é que é complicado, porque as cabeças estão a atafulhar de conceitos, de definições, de métodos, de critérios; em suma, de processos racionalizados pertencentes ao tal catálogo da mente concreta.

Quer isto dizer que as mentes humanas se encontram completamente condicionadas e auto-controladas pela ideia que fazem de si próprias e que para elas é a realidade, não percebendo que se auto-encerraram num campo de concentração, cujos guardas são os próprios prisioneiros...

Romper esse controlo, sair dessa "matrix", é o combate que todo o ser humano deveria travar em si e por si mesmo, em vez de se envolver em esgotantes e inúteis lutas externas, que nada têm a ver com ele.


                                                    ***


De forma simbólica (e independentemente do produto final), o modo como foi feito o filme "Mensagem" também correspondeu a uma tentativa para romper as regras do catálogo homólogo que regula o cinema.



Beneficiando de um generoso suporte familiar, começámos por utilizar como estúdio um velho celeiro em Azambuja, onde construímos os cenários com a madeira de caixotes oferecidos por uma fábrica da zona. A RTP cedeu a película, o laboratório e pouco mais. Os actores e os técnicos, todos profissionais credenciados, acreditaram no projecto e trabalharam duramente, com "cachets" meramente simbólicos ou mesmo sem eles. Tivemos, depois, alguns apoios pontuais e, sobretudo, logísticos, das Câmaras Municipais de Azambuja, Tomar, Lisboa, Batalha e Peniche e somente no final da rodagem se conseguiu uma pequena verba do Instituto Português de Cinema para os acabamentos e a tiragem de cópias.

Enfim, a verdade (e digo isto sem miserabilismos nem lamentações inúteis) é que a falta de condições foi sempre uma constante; começámos sem sabermos como iríamos terminar, vivendo substancialmente de cedências, favores e disponibilidades que originaram, no entanto, paragens de meses entre cenas; mas, em determinado momento, o "nada" inicial havia-se transformado num filme acabado.



De acordo com o sentido do discurso anterior, o desesperante vazio inicial deu lugar a um outro vazio já não doloroso, mas profundamente transformador. Suponho que um vazio como aquele a que apelam os Mestres Zen, quando se referem ao despejar da mente, isto é, deixando que a mente actue com toda a espontaneidade, sem recorrer ao banco de dados impostos e programados pela razão. Desse modo, a mente poderá actuar por si mesma, sem esforço e sem vícios, tal como os olhos naturalmente vêem e os ouvidos naturalmente ouvem...

Encontro este mesmo apelo ao maravilhoso vazio (que, afinal, contém o universo inteiro) na obra do heterónimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro que, como um autêntico Mestre Zen, recusa todas as deambulações programadas pelo pensamento, fazendo estremecer os conceitos mentais convencionais. Diz Caeiro que "pensar é estar doente dos olhos", porque quem souber utilizar os olhos não precisa de se sujeitar aos filtros dessas interpretações mentais .

De certo modo, foi um pouco assim que fomos ter ao velho celeiro de Azambuja, e o processo ali desenvolvido, que deu à luz a "Mensagem", acabou por ser a ilustração perfeita de um aforismo Zen.

 Aquele que diz que, verdadeiramente, tudo começa quando acaba...