10 de dez. de 2011

O LUME DE ASTORGA ("Prisciliano Ressuscitado" - Capítulo 6)





















       "Pelos anos 440, os fogos maniqueus e priscilianistas que incubavam na Galiza, avivavam o lume em Astorga."

Jacques Fontaine, "História da Igreja"

As labaredas de Astorga, que ardem sem serem vistas, resultam da presença  de uma força telúrica, especialmente actuante nalgumas zonas da catedral de Santa Maria, e que poderá inspirar quem com ela se alinha; mas a maior parte dos visitantes disso não dá conta, porque a sua própria racionalidade comprometida se encarrega de lhes dizer que tais coisas não existem...

No entanto, a própria Ciência se interessou pelo caso, a ponto de uma Associação de Estudos Geobilógicos, de âmbito internacional (GEA) , haver promovido umas jornadas de investigação do fenómeno, que decorreram no ano de 1995, em plena catedral.

Esta catedral gótica de Santa Maria de Astorga assenta sobre as bases de uma outra catedral românica que, por sua vez, poderá ter sido elevada sobre outras construções anteriores. Outrora, terá existido ali, ou em alguma outra zona da povoação romana inicial, uma pequena igreja que, no século IV, foi sede episcopal dos bispos priscilianistas Simpósio e Dictinio.

Como se viu, o priscilianismo privilegia a Natureza e, sendo um gnosticismo, valoriza, acima de tudo, a experiência interna, o contacto directo de cada um com o seu interior, ou com o interior do corpo maior da Natureza. Por isso, o lume e o priscilianismo passaram a confundir-se um com o outro e, no rematar do mesmo século, a própria Astorga se converteu num ícone da heresia.

 A Igreja bem tentou restabelecer a ortodoxia e extinguir o lume, mas como se apaga um fogo do espírito?... A verdade é que, ainda hoje, permanece aceso e ilumina uma das mensagens mais contundentes transmitidas por uma catedral gótica.


ASTORGA

A cidade bi-milenar de Astorga situa-se no norte da Ibéria, em pleno Caminho de Santiago e pertence, actualmente, à província espanhola de Castilla y León. Originalmente, fazia parte da província romana da Gallaecia e os seus fundadores, no século I a.C., deram-lhe o nome de Astúrica Augusta, posteriormente descrita por Plinio como "magnífica". Não longe da cidade, ergue-se o maciço do Teleno, um monte que os astures, seus primeiros habitantes conhecidos, consideravam sagrado, bem como os romanos, que lhe chamaram Mars Tilenus e donde extraíam ouro.

Astorga é ainda capital de uma nebulosa região histórico-cultural denominada Maragateria. Os estudiosos têm debatido a origem dos Maragatos, com inúmeras interpretações mas, ao certo,ainda ninguém sabe donde vieram e como se fixaram nesta região, que acabaram por tomar como sua.

Ao longo dos séculos, e para além dos notáveis bispos priscilianistas atrás citados, cruzaram as muralhas de Astorga figuras tão díspares da história do mundo como o conde Henrique de Borgonha, pai do primeiro rei de Portugal, bem como Napoleão Bonaparte e ainda, presumivelmente, Pôncio Pilatos.


PILATOS

A figura enigmática de Pôncio Pilatos, descrita pelo Antigo Testamento, surge igualmente citada pelos cronistas Flavio Josefo e Filo de Alexandria, bem como pelo historiador romano Cornelio Tácito.

Em 1961, foi descoberta em Israel uma lápide que corrobora de um outro modo a existência histórica de Pôncio Pilatos como prefeito da Judeia. De difícil leitura, pelo estado deteriorado em que se encontra, pode perceber-se, no entanto, que pertencia a um templo edificado em honra de "Tibério e dedicado por Pôncio Pilatos, prefeito da Judeia, ao povo de Cesareia".

Por outro lado, alguns investigadores modernos, como o P. Garcia Cordero, citado por Esteban Celada, asseguram que o pai de Pôncio Pilatos era um general romano que esteve deslocado ao serviço do império em Astúrica Augusta; ou melhor, sediado num  campo fortificado, ocupado pelas legiões romanas que lutavam nas guerras cantábrico-astúricas, e que acabou por dar origem à cidade. Segundo eles, à data do nascimento de Pilatos, seu pai encontrava-se ali mesmo, na futura Astorga.






















 Segundo os defensores dessa teoria, os altos cargos militares romanos que ficavam longe de casa por largas temporadas, podiam levar as mulheres consigo. Portanto, não se trataria de uma simples suposição que, no ano do nascimento de Pôncio Pilatos, seu pai se encontrasse em Astúrica Augusta e, muito provavelmente, com a sua mulher...

Claro que nada disto constitui prova indubitável, do ponto de vista histórico e cientifico, de que Pôncio Pilatos tenha nascido em Astorga, mas admite e aponta para que essa seja uma inesperada possibilidade.

Como é do conhecimento histórico, Pôncio Pilatos, considerado justo e piedoso por uns e cruel e sanguinário por outros, ocupou durante dez anos (desde 26 ao 36 d.C.) o cargo de Praefectus Judeorum (Prefeito da Judéia), sujeito à jurisdição e à autoridade de Lúcio Vitélio, governador da província romana da Síria.

Muito se tem conjecturado sobre o seu papel no julgamento de Jesus mas, ao certo, nada se sabe. Partindo do princípio de que as Escrituras cristãs relatam a verdade, então Pilatos foi o responsável por uma outra decisão fundamental, ocorrida na sequência do martírio: a pedido de Nicodemus e de José de Arimatéia, (discípulos secretos de Jesus, curiosamente com uma boa relação com o Prefeito romano), autorizou que o corpo do Mestre fosse retirado da cruz antes do tempo legalmente previsto; isto é, que fosse descido no final da mesma tarde em que foi crucificado, em vez de continuar pendente no madeiro durante os três dias fixados pela lei.

Esta permissão para a retirada do corpo foi vital para o Mistério que ali decorria e, como tal, deveria ficar registada como a decisão mais importante de Pilatos, em vez da sua discutível e fraca imagem a lavar as mãos no julgamento... Se tal episódio foi verdadeiro, então Pôncio Pilatos terá cumprido um papel importantíssimo no processo de Jesus, mesmo que com pouca ou nenhuma consci~encia dos factos.

Anos mais tarde, Pôncio Pilatos foi acusado, perante Lúcio Vitélio, de um massacre de samaritanos ocorrido no monte Garazim, no ano 35. O governador da Síria destituiu-o do cargo e enviou-o de volta para Roma, a fim de dar contas do seu mandato.

O imperador de então já não era Tibério, amigo e protector de Pilatos, mas Calígula, o que equivalia à certeza de uma condenação. Não existem dados precisos sobre o que se passou, mas alguns autores presumem que Pilatos acabou por ser exilado para a Gália (a actual França), onde terá terminado os seus dias.

No entanto, outros admitem que, face ao risco de uma condenação mais pesada, por parte de Calígula (que, inclusive, poderia ser a pena de morte), Pôncio Pilatos tenha fugido durante a viagem para Roma e optado por se refugiar na Península Ibérica, mais concretamente em Astúrica Augusta.

 Aliás, se realmente lá houvesse nascido e, porventura, ainda ali vivessem os seus pais, não faria mais do que voltar para casa...


HENRIQUE

É um nome marcante na História de Portugal. Assim se chamava o Infante de Sagres, responsável pelo envio das naus portuguesas pelos mares fora, como lápis de Deus a desenharem um novo mapa da Terra. E, nos primórdios de todo esse processo, também foi o nome daquele nobre da Borgonha chegado à Ibéria para governar um território mágico que esteve na origem de Portugal, tendo sido pai do primeiro rei Afonso Henriques (ou filho de Henrique).

Pois este Henrique, que foi Conde de Portucale, chegou a ser, igualmente, Senhor de Astorga... O que significa que o respectivo lume esteve presente e activo nos primórdios da formação de Portugal, podendo ter acalentado as primeiras ideias independentistas entre pai e filho, ainda que somente concretizadas, mais tarde, pelo jovem Afonso Henriques.

D.Henrique (quarto filho de Henrique de Borgonha, bisneto de Roberto I de França, sobrinho da rainha Constança de Leão e sobrinho-neto de santo Hugo, abade de Cluny), veio para a Península Ibérica no século XI, com seu primo Raimundo, para servir o rei de Leão e Castela, Afonso VI, na reconquista da Galiza aos mouros Almorávidas. Em Fevereiro de 1095, D. Henrique já se casara com D. Teresa, filha do monarca leonês que, reconhecido, lhe concedera, também, a posse do Condado Portucalense (futuro reino independente de Portugal). Mais tarde, e fruto da política de alianças com os herdeiros desavindos de D. Afonso VI, foram também parar-lhe às mãos os domínios de Astorga.


Um facto menos conhecido relativo ao Conde D. Henrique é que foi precisamente em Astorga que terminou os seus dias,pois ali morreu a 24 de Abril de 1112. Como pai do primeiro rei lusitano e patriarca da nação, o seu túmulo encontra-se, actualmente, na Sé de Braga, em Portugal.

Fernando Pessoa dedicou ao Conde D. Henrique o quinto poema da Mensagem:

"Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"
Ergueste-a, e fez-se."


NAPOLEÃO

Quando Napoleão Bonaparte entrou em Astorga ( que, com escassos recursos defensivos, acabou por capitular), ia em perseguição do exército inglês do general Moore, em retirada para a Corunha. Era o dia 1 de Janeiro de 1809.

Não se sabe quanto tempo Napoleão pretendia ficar em Astorga porque, logo após a conquista, ali recebeu a notícia de que a Aústria se preparava para a guerra, alterando-lhe os planos e obrigando-o a regressar a Paris. Partiu no dia 3, depois de entregar o comando daquele exército ao general Soult.

Porventura as duas noites que Napoleão passou em Astorga não terão sido suficientes para reconhecer e sentir a influência do lume que ali continuava a brilhar; ou então, já não havia fogo que valesse a quem havia voltado as costas à sua verdadeira missão, confundindo as chispas superficiais da vaidade mundana e do poder temporal com o verdadeiro lume do espírito.

Segundo relata a Tradição, Napoleão havia sido iniciado no Egipto, aquando da sua estadia entre 1798 e 1801, onde comandou uma campanha militar que se converteu numa expedição científica, abrindo as portas do ocidente à egiptologia.

Nessa iniciação, ter-lhe-á sido recordada, e finalmente entregue, a missão para a qual havia nascido: levar os ideais mais nobres da revolução francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - a todos os povos europeus, sujeitos à opressão e à tirania de coroas absolutistas ultrapassadas. É claro que quando Napoleão colocou, ele próprio, a coroa de imperador na sua cabeça, comprometeu todo o processo, precipitando o seu colapso e o falhanço daqueles outros objectivos - ainda que muitos altos ideais tivessem perdurado e influído, depois, nas leis fundamentais de muitos países.

Por isso as chamas de Astorga viram Napoleão partir e ficaram a arder sozinhas; que longe se estava da cumplicidade e da sintonia com os bispos priscilianistas Simpósio e Dictinio!...















SIMPÓSIO

Era bispo de Astorga quando Prisciliano irrompeu na Galiza, defendendo os valores do cristianismo primitivo contra uma Igreja que perdera a magia e fora corrompida pelo poder. Simpósio aderiu àquela mensagem, que cada vez mais se entranhava na alma do povo e da terra e, unindo o fogo interior do priscilianismo ao lume inspirador que brotava na sua própria cidade, fez de Astorga um farol da heresia.

A sua posição face à ortodoxia da Igreja foi claramente assumida no ano 380, em pleno concílio de Saragoça, que se reunira exclusivamente para condenar Prisciliano. Em sinal de protesto, logo no primeiro dia abandonou os trabalhos.

Passados cinco anos, a execução impiedosa de Prisciliano em Tréveris, por uma Igreja cada vez mais controladora e, a partir daí, sanguinária, tê-lo-á feito repensar a sua posição pública. Simpósio adoptou, então, uma política de compromisso, ou de co-habitação ambígua com a hierarquia da Igreja, ocultando as suas crenças e valores internos (de forma moralmente legítima, segundo o pensamento expresso pelo seu filho Dictinio) e passando a alinhar-se, externamente, com a ortodoxia.

Pactando esse alinhamento com o todo poderoso Ambrósio, patriarca de Milão, garantiu Simpósio a sua continuidade como bispo de Astorga. Do acordo fazia parte a renúncia às leituras e citações dos escritos apócrifos, tão caros aos priscilianistas, bem como o abandono das celebrações relativas aos mártires de Tréveris (que, apesar de tudo, Simpósio continuou a chamar de "mártires"...) e ainda a garantia de que o mesmo Simpósio jamais ordenaria bispo o seu filho Dictinio, que,na altura, era presbítero.

No entanto, o povo e o clero da Galiza, que continuavam profundamente tocados pelo lume priscilianista e participavam activamente na vida das suas comunidades religiosas, não quiseram saber de acordos palacianos e impuseram a eleição de Dictinio. Por isso, Simpósio, "obrigado pelo povo", consagrou o seu filho como o novo bispo de Astorga, passando ele mesmo para a Sé de Ourense. Mais ainda: declarando-se "pressionado pela maioria das gentes de toda a Galiza", nomeou também vários outros bispos priscilianistas para as Sés vacantes, como foi o caso de Paterno, para Braga, e de Isonio, não se sabe ao certo para onde.

 O que se sabe sim, ao certo, é que o pacto de Milão, que Simpósio estabelecera com Ambrósio, fora, escrupulosamente, atirado às malvas!

A reacção da hierarquia da Igreja não se fez esperar e, sob o comando à distância do mesmo Ambrósio e do novo papa Siricio, convocou Simpósio de Astorga e os seus para responderem em capítulo conciliar, na cidade de Toledo.


DICTINIO

Ainda jovem, deslocara-se a Tréveris, a mando de seu pai, para resgatar os corpos dos mártires, trazendo-os de volta à Galiza. Mais tarde, já como bispo de Astorga, o inteligente, activo e brilhante Dictinio, veio a tornar-se no grande herdeiro espiritual de Prisciliano.

Foi ainda o primeiro autor galego de que há memória, pois escreveu a "Libra"("Balança"), como um tratado de moral priscilianista que fez furor no seu tempo mas do qual, infelizmente, não restou qualquer exemplar. Sabemos da sua existência e do forte impacto que causou pelas referências totalmente negativas que lhe dedicou santo Agostinho na sua obra "Contra Mendatium" (Contra a Mentira), escrita precisamente para refutar o bispo de Astorga.

Como se disse atrás,  Agostinho refere que os priscilianistas juravam a inviolabilidade dos segredos do grupo, utilizavam santo e senha para se reconhecerem e consideravam lícito mentir para proteger a sua existência.

Mas porque teriam os priscilianistas adoptado esse comportamento?... Não seria porque o seu amado líder e os discípulos mais próximos haviam sido decapitados, os seus bens confiscados, e outros bispos e clérigos, que lhes eram fiéis, perseguidos e torturados?... Não seria porque Dictinio e os seus viviam em perigo constante, ao pertencerem a uma igreja que abençoava com as mãos sujas de sangue e que, de um momento para o outro, também lhes podia cortar a cabeça?... Foram estas razões que santo Agostinho se esqueceu de mencionar no seu "Contra Mendatium"!

Mas se santo Agostinho se tivesse realmente preocupado em escrever um tratado sobre a mentira, teria que começar por referir as fraudes, embustes e falsificações cometidas pela Igreja do seu tempo, como a truncagem e a alteração deliberada dos textos sagrados, levada a cabo por Irineu e outros santos (hoje em dia absolutamente comprovada), com o único propósito de justificar e aumentar o poder da Instituição.

O profundo secretismo dos priscilianistas, imposto pelo próprio Prisciliano, praticado por Simpósio e, finalmente, desenvolvido e sistematizado por Dictinio, vinha da mesma linha do mitraismo, que lhe era tão afim, e das outras religiões de Mistérios da antiguidade, cujos iniciados eram sujeitos a juramentos exclusivos; um secretismo idêntico foi adoptado pelo judaísmo e continua a ser utilizado por todas as associações iniciáticas, maçónicas ou políticas do nosso tempo.

Uma conhecida canção portuguesa aflora e ilustra, do ponto de vista sentimental, a razão desta prática sem idade, ao afirmar que "contigo aprendi uma grande lição: não se ama alguém que não ouve a mesma canção"...

Por isso, a ética proposta por Dictinio baseava-se no princípio hermético de que a verdade só devia revelar-se a quem de antemão a aceitava, para que ficasse salvaguardada uma harmonia de base e uma pré-sintonia com a mesma "canção", reduzindo ao mínimo os riscos de fissura no corpo comum. É o que significa também a conhecida expressão ocultista: "quando o discípulo estiver preparado (ou a vibrar em sintonia com a energia em causa), surge o Mestre (ou a revelação da verdade)".

Por outro lado, Dictinio tomava como máxima a expressão "jura perjura secretum tradere noli" ("jura, comete perjúrio, não traias o segredo") que, continuando no domínio do mais puro hermetismo, era também uma regra básica de sobrevivência e de vida em clandestinidade. Tudo isto, porque a lição brutal da morte de Prisciliano não havia sido esquecida, motivando o reforço e o desenvolvimento de práticas antigas.

Creio ter sido com este espírito que Dictinio e seu pai Simpósio se apresentaram no concílio de Toledo onde, sem qualquer rebuço de moral social, abjuraram das suas convicções priscilianistas.

TOLEDO

Um guerreiro do espírito tem que agir segundo uma estratégia e, por vezes, o seu verdadeiro martírio consiste em representar o papel contrário... Quanto a mim, foi isto que sucedeu em Toledo.

O concílio ali reunido procurava recuperar para a ortodoxia de Roma a herética Igreja galega; como afirma Juliana Cabrera, os acusadores estavam, sobretudo, interessados em Dictinio, "a sua cabeça mais perigosa, ou o seu pastor (...), ganhando assim uma boa base de apoio para, depois, poder perseguir e eliminar mais facilmente o resto do clero galego que seguia fiel a Prisciliano."

Dado o clima fortemente priscilianista que se vivia, não somente na Galiza mas em toda a Ibéria, os bispos ortodoxos não tiveram tarefa fácil em Toledo. Como descreve Xosé Chao Rego, "um grupo de clérigos, antes de serem interrogados, manifestaram-se contra o concílio. A tal protesto clamoroso, juntaram-se quatro bispos, um deles Herenas, junto com Acario, Donato e Emílio, que se negaram a rubricar o anátema contra Prisciliano e os seus discípulos, por simples honradez, pois haviam sido eleitos por um povo priscilianista e se renegassem a Prisciliano perderiam o apoio do clero e de todos os fiéis. Um clérigo do bispo Herenas, sem que ninguém lhe perguntasse, proclamou que Prisciliano era católico e um santo mártir, vítima da má fé dos bispos. A sentença do concílio não se fez esperar: Herenas foi deposto, com todos os seus seguidores."

Mas Dictinio e Simpósio, funcionando como um bloco, não podiam ser depostos. A sua função mal havia começado e havia ainda muito para fazer! Por isso, honrando acima de tudo o profundo secretismo iniciático com que se haviam comprometido (muito mais do que o sentido vulgarizado da honra, ligada à sua imagem externa e aos parâmetros da moral social comum), ter-se-ão sujeitado ao martírio de abjurar as suas próprias convicções.

Se Dictinio tivesse sido desterrado ou se transformasse em mais um mártir, não teria podido organizar a rede subterrânea que preservou o priscilianismo e o fez atravessar todas as épocas seguintes, até aos nossos dias.

Passado o concílio de Toledo, tudo indicava que a hierarquia da Igreja não teria mais dificuldades em Astorga. Pura ilusão. Alguns anos depois, a ortodoxia da Igreja envia para Astorga um novo bispo, de nome Toribio, que logo constata que aquele foco não só continuava activo, como o meio era totalmente priscilianista. Numa carta dirigida aos bispos Ceponio e Hidácio de Chaves, Toribio dá-lhes conta de que, em Astorga, "certas tradições, condenadas havia tempo pela Igreja, e que julgara já abolidas, estão totalmente vigentes"...

Esta carta evidencia e comprova o verdadeiro trabalho oculto de Dictinio, antes e pós-concílio, e também que o lume de Astorga não havia parado de crepitar!


CHAMAS

A catedral de Astorga dos nossos dias nada tem a ver com a igreja do século IV dos veneráveis bispos Simpósio e Dictinio. Tal como se disse no início e sucedeu com inúmeras catedrais, foi sucessivamente construída sobre ruínas anteriores. A primeira pedra da catedral actual foi colocada em 1457, sobre as fundações de um templo do século XV que, por sua vez, estava assente sobre uma construção romana.




Portanto, datando do século XV, mas assentando em fundações muito mais antigas, a actual catedral de Astorga levou quatro séculos a ser terminada; isto quer dizer que a mensagem priscilianista que ela contém, não só estava bem viva no século XV, como foi preservada e continuada, sem alterações, por aqueles que a terminaram entre os séculos XIX e XX; e também significa que o priscilianismo não desapareceu entre os séculos VI e VII, como pretende a Igreja, mas que, de uma forma ou de outra, secretamente activo, perdurou até à actualidade.


De facto, por várias vezes a Igreja cantou vitória sobre o priscilianismo mas, depois, sempre irrompeu, algures na Ibéria e, sobretudo, na Galiza, um foco mais do incêndio que julgavam definitivamente extinto.

Por exemplo, no ano 561(ou 563), foi convocado o I Concílio de Braga, presidido por Martinho de Dume, para pôr um fim contundente à interminável querela do priscilianismo. Dez anos volvidos (em 572) realizou-se o II Concílio, sob a mesma santa presidência, tendo Martinho declarado, peremptoriamente, que não existiam já problemas na unidade da fé na Galiza. Mas, pelo sim pelo não, voltou a expor e a condenar uma longa série de erros priscilianistas, repetindo o que haviam feito os concílios anteriores... E, no ano 683, no IV concílio de Toledo, não foi que que o clericato galego voltou a ser acusado de infecção priscilianista?... Inclusive, como consta das respectivas actas, alguns dos seus membros foram perseguidos e acusados pelo inacreditável "pecado" de não cortarem o cabelo!...

Será que o facto da Igreja associar o priscilianismo com o uso de cabelos compridos denota algum tipo de ligação desta corrente com a dinastia merovíngia, ou os chamados Reis Divinos (supostos descendentes da linhagem de Jesus), que se caracterizavam por usarem longas cabeleiras? Na verdade, aquela dinastia reinava na Gália, sobre os Francos, na data do referido concílio e constituía também um sério problema para a igreja de Roma... Historicamente, ninguém estabeleceu qualquer ligação e admito que não exista nada mais do que a coincidência do grande incómodo que ambas as questões pendentes causavam à Igreja; no entanto, aqui fica a referência.

De então para cá, desapareceram todas as referências públicas à corrente priscilianista. Mas no ano de 813, o bispo Teodomiro, exuberante, comunicou a toda a cristandade a descoberta, na Galiza, do túmulo de Santiago! E um novo ciclo começa, com a mais que provável e genial transmutação de Prisciliano em Santiago...


MENSAGEM

Considero a catedral de Astorga a evidência mais significativa da actividade subterrânea da corrente priscilianista que, através da arte e da simbologia, ali deixou gravada uma mensagem extremamente crítica para a Instituição católica.

















No caso de Astorga, nem sequer se utilizaram complexos símbolos esotéricos. Tudo o que ali ficou, deslumbrantemente gravado na pedra (e refiro-me agora, mais concretamente, à fachada principal, enquadrando a grande porta de acesso ao templo), são cenas do Novo Testamento, da mais estrita e pura canonicidade... Simplesmente, o critério da escolha e a associação entre elas, permite que surja uma outra e inquietante leitura, introduzindo no visitante, conhecedor da decifração, o verdadeiro espírito daquele lugar.

Encimando o portal, encontra-se um arco trilobulado, tendo no centro uma grande e impressionante representação da descida do corpo de Jesus do madeiro; portanto, a referência maior ali expressa é ao Messias incompreendido, julgado e condenado à morte pelo poder religioso do seu tempo...






















Em volta dessa dramática cena central, encontram-se quatro outras magníficas representações da vida de Jesus, que sintetizam os motivos que o levaram à cruz. Curiosamente, todas elas decorrem frente a um elemento comum: um templo convencional, que surge sempre colocado como parte do fundo. Fica, então, claro que as cenas reproduzidas decorreram fora do templo, isto é, à revelia do poder religioso constituído.

Em cima e do lado esquerdo (de quem entra na catedral), os mestres canteiros reproduziram uma cena do evangelho de Marcos: Jesus cura o cego Bartimeu.











Do outro lado, mais um milagre e igualmente uma cura: a do hidrópico, retirada do evangelho de Lucas (esclareça-se que a hidropisia é uma doença que provoca a acumulação de líquido ceroso no tecido celular, ou numa cavidade do corpo, especialmente no abdómen, sendo popularmente conhecida como "barriga de água").








Cenas estranhas e até um pouco rebuscadas para ladearem a descida da cruz...

Ou talvez não, se existir, de facto, uma outra leitura: o cego Bartimeu, clamando pelo contacto com Jesus, representa todos os que não vêem e querem ver, ganhando finalmente a visão pela força da sua atitude directa ou da sua vontade, associada à fé... Uma atitude gnóstico-priscilianista, que se situa na posição oposta àqueles que vêem e não querem ver, tornando-se nos piores cegos!

Quanto ao hidrópico, Jesus cura-o num dia de sábado, contra as normas instituídas, enquanto que outros (os que se regem por essas normas e permanecem dentro do templo) tornam-se incuráveis pelos seus preceitos rígidos, "inchados" pela suas interpretações autoritárias e com as barrigas cada vez mais dilatadas pelo seu acomodamento ao poder, tal como o denunciava Prisciliano.

Portanto, estas duas cenas ladeiam a descida do corpo de Jesus da cruz, porque foram os cegos de espírito e os hidrópicos do poder que O condenaram! E que igualmente condenaram Prisciliano...

As duas cenas que, em baixo, ladeiam a porta principal da catedral são, também, altamente significativas e extremamente emotivas, pela força e beleza dos quadros. Do lado direito de quem entra, a cena de Jesus com a mulher adúltera. A presença de mulheres em torno de Jesus foi uma constante; durante a Sua vida, sempre as amou, defendeu, e permitiu que o acompanhassem mas, tal atitude não teve seguimento numa igreja misógina que, inclusive, perseguiu e condenou quem seguiu o exemplo do Mestre. Isto é, Prisciliano...















Ainda por cima, a cena refere-se a um suposto delito sexual, referenciando de imediato um tema delicado para a Igreja e pelo qual Prisciliano também foi condenado. Jesus salvou a mulher da morte por apedrejamento, porque todos que a acusavam se reconheceram pecadores; no caso de Prisciliano, não houve salvação possível, certamente porque os tais cegos e hidrópicos que o levaram à morte se encontravam livres de pecado...















Do outro lado, figura a cena mais dura e impressionante que já vi na entrada de uma catedral: Jesus, de chicote na mão, expulsa os vendilhões do templo. A referência à acção de Prisciliano que, à sua maneira, também enfrentou aqueles que faziam da igreja um comércio indecoroso de almas, é mais do que evidente. Os vendilhões do seu tempo eram a própria Instituição católica romana e ao confrontá-la, em nome dos valores do cristianismo primitivo, Prisciliano acabou executado, como sucedeu com Jesus.

Portanto, o que conta a fachada de Astorga, para além da vida e morte de Jesus, é a condenação e a execução de Prisciliano pela própria Instituição romana. Mas depois da morte vem a ressurreição e é, sobretudo, para dar conta da ressurreição priscilianista, que foi escrito o livro de pedra de Astorga. Essa é a sua primeira mensagem.

Na catedral, o mistério da Ressurreição encontra-se retratado de uma ponta a outra, pois é o tema do vitral da rosácea que encima a fachada principal, do mesmo modo que ilustra, no lado oposto, um outro ponto muito especial: a porta do sacrário. Refira-se ainda que, para Prisciliano e para a Gnose, a Ressurreição pode e deve ocorrer em vida, depois da morte do "eu" personalístico, pois ela respeita, mais do que a ressurreição do corpo, a uma ressurreição da consciência.

E foi a consciência de um cristianismo priscilianista que ali se inscreveu e perdurou até aos nossos dias!


GNOSE

A catedral de Astorga, dedicada a Santa Maria, reflecte aindauma especial devoção pelo Sagrado Feminino, ou não se tratasse de um centro priscilianista. Nela existem oito representações da Virgem, nas suas várias tónicas. Quanto a mim, a mais interessante é a Senhora da Majestade, trazendo Jesus no colo e estendendo a mão direita para oferecer, a quem a contempla, uma maçã... Uma maçã, repito, tal como Eva fez com Adão e que a Igreja sempre considerou uma oferta demoníaca, mas que agora reproduz protagonizada pela Virgem, que assim é assumida como a nova Eva...

Mas o que significa verdadeiramente esse gesto ? Na linguagem simbólica, a maçã representa o conhecimento e a liberdade; ora o conhecimento e a liberdade são sinónimos da gnose e, portanto, é a gnose mesmo, tão cara a Prisciliano e pela qual foi condenado, que a Virgem da Majestade oferece com a sua mão estendida...

A capela com a Senhora da Majestade é uma das duas que ladeiam o altar-mor. Do outro lado, surge-nos um santo algo inesperado nesta catedral: S. Jerónimo. Mas se pesquisarmos a sua vida percebemos imediatamente a razão desta presença.

Jerónimo foi contemporâneo de Prisciliano e secretário pessoal do papa Dâmaso; nessa condição, lidou, muito de perto, com a questão da heresia e, quando Prisciliano se deslocou a Roma, foi o único que colocou o seu prestígio em favor do heresiarca, no sentido de lhe ser concedida uma audiência papal que, face ao poder da oposição reaccionária, acabou por não ser possível.

Quando morreu o papa Dâmaso, Jerónimo teve que deixar o cargo de secretário, pois o novo papa Siricio não o reconduziu. Aliás, a maioria do clero romano, de tendência anti-ascética, considerava Jerónimo como "persona non grata", acusando-o de "vira-casacas", de ter relações de vária ordem com mulheres, e mesmo de feitiçaria, apontando-o como herege e maniqueu (curiosamente, o mesmo rol de acusações que levaram o asceta galego à morte...) Sentindo o perigo, Jerónimo deixou Roma e emigrou para a Palestina.






















  O pensamento de Jerónimo mostra-se um tanto flutuante, como dizem os seus adversários. Cerca de oito anos depois da execução de Tréveris, afigura-se neutral, ao incluir Prisciliano no seu catálogo de ilustres autores cristãos e acrescentando que alguns o acusaram de heresia gnóstica e que outros o defenderam. Chega, inclusive (e com genuína admiração!), a apelidar Prisciliano de "Zoroastris magi studiosissimum"... Mas, posteriormente, devido à influência de Paulo Orósio e a novas perseguições aos priscilianistas, altera a sua posição, passando a hostilizar a heresia.

Penso que a presença de Jerónimo na catedral do priscilianismo se deve também à analogia de muitas passagens da sua incompreendida vida de asceta com a do próprio Prisciliano, passando pelas acusações comuns, que, a um, custaram a vida e, a outro, o exílio voluntário para a salvar.

Mas há um facto fundamental que justifica e determina, por si só, aquela presença: quando Dictinio, bispo priscilianista de Astorga, escreveu a "Libra", que tanto enfureceu santo Agostinho, houve um outro membro da Igreja que também pegou na pluma, mas para se colocar ao lado de Dictinio e defender a sua postura hermética: foi Jerónimo!...

Claro que a outra figura masculina em destaque nesta catedral de mulheres, é a do apóstolo Santiago. Nem poderia deixar de ser, pois, por tudo o que já se disse noutros capítulos, Santiago constitui a referência mais directa a Prisciliano. Em Astorga, para que não restem dúvidas de que é Prisciliano quem se encontra referenciado pela figura de Santiago, colocaram a sua capela ao lado da de Teresa de Ávila, representando, obviamente, a cidade onde foi bispo!... E, logo a seguir, vem a capela de Maria Madalena, símbolo maior da Gnose, que caracterizou toda a doutrina pela qual Prisciliano deu a vida.

Mais evidente, impossível!...

Também não deixa de ser muito curioso que a relíquia guardada na catedral de Astorga seja de S. Brás, um bispo que, antes do cristianismo se tornar em religião romana, teve o mesmo fim de Prisciliano: foi degolado.

Conta-se que S.Brás, conduzido pelos soldados a caminho do local do julgamento, ainda socorreu uma criança prestes a morrer sufocada com uma espinha na garganta; pouco depois, a sua própria garganta era atravessada pela lâmina do carrasco. Por isso, segundo a Igreja, S. Brás passou a ser o protector de todos os males da garganta, sendo, igualmente, patrono e advogado dos conflitos de consciência.

Ou seja, se existe um local especialmente apropriado para a acção de S. Brás é a catedral de Astorga, onde, como se viu, mora um priscilianismo iluminado pelo lume, que continua a ser uma espinha atravessada na garganta da Igreja.

E que, um dia, bem precisará de um bom advogado de conflitos de consciência...


MISTERIO

Mas o caldeirão de pedra de Astorga não se limita a relatar um passado, pois nele continuam a ferver energias íntrisecamente redentoras, que abrem caminhos de futuro!

Segundo leio a mensagem da catedral, esse futuro terá a ver com uma outra figura masculina que se encontra defronte da capela da Madalena (isto é, da Gnose...), do outro lado da nave: S.Lourenço!

Nascido na Ibéria do século III, provavelmente naquela que hoje é a cidade de Huesca, o diácono Lourenço acabou preso pelo imperador Valeriano I e martirizado numa grelha que, depois, se tornou no seu símbolo. Era o fiel depositário dos bens da Igreja primitiva; uma tradição atribui-lhe a posse do cálice da última ceia, isto é do Graal que, depois da sua morte, terá circulado por vários pontos da Península Ibérica.

A figura de S.Lourenço (ou Lorenzo, no seu nome original em língua espanhola), é a expressão exotérica, ou seja, externa e vulgarizada, de um grande Mistério iniciático por detrás do mesmo nome. Diz a Tradição, que nele se encontra envolvido Christian Rosenkreuz , ligado à fundação oculta da Fraternidade Rosa-Cruz, no século XIV. Ora é sabido que os Rosa-Cruzes assumem trabalhar com as energias vitais do próprio Cristo universal, visando a criação de um Homem Novo para um Mundo Novo.

Mas esse Mistério torna-se ainda mais presente e significativo através de uma outra representação de S. Lourenço, agora pictórica e que quase passa despercebida, porque pertence à parte inferior do retábulo hispano-flamengo de S. Miguel. Nessa pintura, S. Lourenço, vestido de dourado, surge numa forma nada comum, porque é mostrado com um livro aberto nas mãos e tendo a seu lado, nada menos do que Santiago, vestido de verde e vermelho!















O que representa esta pintura do século XVI? A primeira resposta óbvia é que se trata da representação dos santos da devoção de quem encomendou o retábulo. Desconhecemos a sua intenção ou a do autor, mas constatamos, face ao extraordinário simbolismo presente (por "acaso" ou deliberadamente) que se trata de uma obra de alto teor iniciático, onde as componentes podem ser lidas de várias maneiras...

Não existindo qualquer relação conhecida entre Santiago e S. Lourenço, que nem sequer viveram na mesma época, a obra só poderá referir-se a algo simbólico e intemporal, certamente relacionado com as páginas do livro de que os dois estão pendentes.

De acordo com a Tradição e o Simbolismo, S. Lourenço e Santiago poderão, também, representar as expressões humanizadas das duas Colunas laterais da Divindade imanifestada, referenciada  pelo pilar dourado central, pintado entre os dois, e de que se não vê o cimo.

Por isso, faz sentido dizer que a expressão deste "Santiago" se relaciona com  o acesso a um novo estado de consciência e, portanto, com a etapa da Transformação do ser humano, obtida através de um neo-priscilianismo libertador da ignorância, do medo e da culpa, insistindo no auto-conhecimento e mostrando que o homem pode aceder à divindade de forma directa, sem necessidade alguma de instituições e intermediários.

Por seu lado, "S. Lourenço" terá a ver com a iniciação no Mistério Rosa-Cruz, referente à etapa da Superação, só possível de ser acedida e cumprida depois de realizada a Transformação anterior.

Portanto, naquela pintura que passa, vulgarmente, despercebida, poderá estar figurado o anúncio de um novo ciclo da História, com a indicação dos seus dois patronos e, como tal, do método a seguir...

Claro que haverão, certamente, muitas outras leituras,significados e interpretações mas, como dizia Fernando Pessoa, "falta que a estrada se ache, mas fica apontada a sua direcção"... De qualquer modo, e independentemente do que S. Lourenço e Santiago ali simbolizem, a cena representada indica que terão que se reunir e completar, para cumprir o que está escrito...

Ou seja, aquela belíssima e ignorada pintura poderá encerrar uma profecia igualmente desconhecida, assim  como o enunciado das condições para a sua realização. E essa poderá ser, afinal, a outra e derradeira mensagem do lume herético de Astorga.

Que volta a avivar a rede de fogos priscilianistas ao longo do Caminho!







23 de set. de 2011

O PÁSSARO SOLITÁRIO ("Prisciliano Ressuscitado" - Capítulo 4)




















"As condições de um pássaro solitário são cinco:

Primeiro, que voe ao ponto mais alto;
Segundo, que não anseie por companhia, nem a da sua própria espécie;
Terceiro, que dirija o seu bico para os céus;

Quarto, que não tenha uma cor definida;  
Quinto, que tenha um canto muito suave."

S. Juan de la Cruz, "Dichos de Luz y Amor"



Tenho para mim que Prisciliano terminou os seus dias na terra como um pássaro solitário.

E assim o creio, independentemente  do número dos seus seguidores, que eram cada vez mais numerosos e dedicados, ou de estar rodeado, até ao fim, pelos discípulos, alguns dos quais o acompanharam, inclusive, no cadafalso. Refiro-me ao isolamento de Prisciliano no sentido mais profundo das palavras de S. João da Cruz, que expressam a solidão nos Mistérios do Conhecimento.

Quando a Igreja Católica, no século IV, cortou a cabeça de Prisciliano, libertou-o por completo dos últimos resíduos da forma humana, permitindo que as suas asas iniciáticas se abrissem e se alongassem pelo espaço, magníficas e portentosas...

E que, assim, transportassem a sua mensagem até aos nossos dias.

Toda a vida externa de Prisciliano foi a antítese do isolamento e da solidão. Proveniente de uma família nobre e influente, que lhe permitiu a formação adequada para enquadrar e desenvolver o seu extraordinário carisma, granjeou, desde cedo, inúmeros admiradores e um número crescente de seguidores - assim como de inimigos -, em todas as camadas sociais e religiosas do seu tempo.

Amado ou odiado, Prisciliano não passava despercebido e, assim sendo, dificilmente se poderia isolar. Mesmo quando se retirava para os montes e bosques da Galiza ou da Lusitânia, que amava mais do que os salões ou as igrejas, também não o fazia em solitário, porque era seguido pelos seus discípulos e, porventura, por uma mulher, sua companheira de vida, que alguns autores identificam como Prócula.

No entanto, apesar do incessante caudal humano à sua volta, ou para além dele, creio reconhecer em Prisciliano o pássaro solitário descrito por S. João da Cruz. Isto porque a solidão em causa respeita unicamente à alma e nada tem a ver com o universo de fora, por mais povoado que seja.

Dizem os Tratados respectivos que, quando o ser humano inicia um caminho interior, em busca do espírito, deixa para trás a sua vida ordinária, comum e trivial, como a da maior parte dos seus semelhantes. Não importa se essa vida era boa ou má em termos de riqueza ou posição social, porque aquilo que vai abandonar, para sempre, é a sua própria descrição ou concepção do mundo, isto é, os seus códigos existenciais, com todas as referências que o faziam sentir-se seguro e estável, porque acompanhado dos seus iguais.

Para substituir aquela descrição socialmente imposta por uma outra mais verdadeira, a partir da sua própria experiência interna, só lhe resta aventurar-se na solidão lancinante do desconhecido, onde se encontra o espírito.

Esse caminho de descoberta espiritual não é um passeio pelo "jardim das delícias", repleto de paz e amor virtuais, e com música new age" de fundo, como pretendem alguns, mas sim um percurso extremamente duro e solitário; certamente que também aterrador, em múltiplas ocasiões, uma vez que, por diante, se encontra o desconhecido absoluto.  Para se obter uma pálida noção de quão assustador poderá ser esse confronto, basta ler algumas passagens da Bíblia relatando o terror paralizante que envolveu inúmeras personagens conhecidas, desde Moisés a S.Paulo, quando se viram face a face com o Mistério...

Portanto, ousar entrar e prosseguir no caminho do espírito, exige preparação, determinação e bravura! É um facto que a consciência almejada não chega nunca como uma oferta de bandeja; é preciso lutar e trabalhar muito para a alcançar. Por isso, noutras abordagens desta questão, como a do xamã Juan Matus, descrita por Carlos Castaneda, aqueles que ousam empreender esse caminho são chamados, muito apropriadamente, de "guerreiros do espírito".

Fernando Pessoa, seguramente um outro pássaro solitário, conhecia muito bem as agruras daquele caminho, a avaliar por esta descrição: "Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer, que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impôr-me uma existência superior, me vai dando um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próximo alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma..."

Por sua vez, o referido Juan Matus acrescenta o seguinte: "Um guerreiro já não pode chorar, e a sua única expressão de angústia é um estremecimento que lhe chega desde o mais profundo do universo. É como se uma das emanações da Águia ( nome simbólico do poder que governa os destinos dos seres viventes) estivesse feita de pura angústia e, quando golpeia o guerreiro, o seu estremecimento é infinito."

Apesar destas descrições concludentes, não queria deixar passar a ideia de que o caminho do espírito é algo demasiado grave e pesado, angustiante e perigoso... Na verdade, acredito que é muito mais angustiante e perigoso do que alguma vez poderia descrevê-lo, mas isso não significa que o guerreiro-caminhante o percorra de ânimo triste ou esmagado pelo medo; essa atitude crispada e contraída vai tornar dolorosamente rígido e inútil cada passo... Pelo contrário, fazendo da impecabilidade a única arma, como  assinala o personagem Juan Matus, o guerreiro liberta-se do peso de todas as importâncias e de todos os conceitos, incluindo os do êxito ou do fracasso, de vitória ou de derrota, e dedica-se, somente, a deixar fluir o seu espírito livre e claro. E enquanto luta ou caminha, não se esquece nunca de rir de si mesmo...

Derrubando ou desmontando as armadilhas emocionais e mentais, entramos no mais puro Zen (e, no meu entender, Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Alberto Caeiro, bem como Juan Matus, seja ele quem for, são, também, autênticos mestres Zen...), prescrevendo o humor como expressão do amor, tornando o riso (sobretudo quando é de si próprio) no traço que sublinha a impecabilidade e transforma o guerreiro-caminhante num ser livre, leve e fluido. Desse modo, se poderá equilibrar e temperar a angústia e o pavor do caminho e, vencidos os fantasmas aterrorizantes, desfrutar com a alegria mais pura das descobertas espirituais.

Asseguram as escrituras sagradas que os caminhos espirituais restituem ao ser humano a identidade e o conduzem à sua verdadeira morada intemporal. Ou seja, será como um regresso a casa, depois da descida aos infernos, isto é, aos planos mais densos e inferiores da matéria. Por isso, abrir passo nesses planos é uma luta incessante, tremenda e solitária, marcada por sucessivas iniciações.

Imagino que Prisciliano terá sido iniciado em muitos mistérios do Caminho.

Como gnóstico, sabia que esses mistérios começavam pela tomada de consciência de si próprio, ou pelo conhecimento do seu Eu essencial, como chave da iluminação. De facto, como amplamente assinalado no capítulo anterior, os gnósticos não aceitavam uma descrição do mundo e da vida proveniente da tradição religiosa, ou da sociedade em que viviam, excepto enquanto medidas provisórias ("testemunhos meramente humanos", no dizer de Heráclito, isto é, testemunhos em segunda mão...), até descobrirem, por si e em si mesmos, o caminho da verdade espiritual.

Perseguir essa senda de descoberta é, na verdade, uma tarefa árdua e essencialmente solitária. Mas, recordemos as palavras de Jesus no Evangelho de Tomé ( um dos apócrifos preferidos de Prisciliano), em que reconhece e louva aquela mesma solidão: "Abençoados sejam os solitários e os escolhidos, pois eles descobrirão o Reino; dele provêm, e a ele regressarão."

Por isso, quando o ser humano iluminado pela luz de dentro inicia aquele percurso de regresso, torna-se progressivamente mais sábio, porque mais consciente do processo em que está envolvido e, também, extraordinariamente mais forte.

No caso de Prisciliano, penso, inclusive, que só poderá ter sido a força interior, proveniente do seu reencontro com o espírito, que o levou à tremenda insanidade social de, sozinho, desafiar o poderio brutal dos dominadores romanos - isto é, da Igreja Católica, que com o Império já se confundia.

Tal atitude, lembra-me a de um outro pássaro solitário do nosso tempo (apesar de ser, também, um homem de multidões), chamado Mohandas Gandhi, o Mahatma da Índia. De facto, ambos lutaram sozinhos e de mãos nuas, empunhando apenas a arma da sua profunda convicção, contra um Império colossal.

Priciliano, no século IV, enfrentou o Império romano; Gandhi, no século XX, teve que se haver com o Império inglês. O resultado foi diferente, obviamente determinado pela época respectiva (e pela existência, ou não, dos media): Gandhi venceu os britânicos e obteve a independência da Índia; Prisciliano foi executado pelos romanos.

Mas o facto de Prisciliano ter sido morto significa que perdeu o combate?... A verdade é que a sua causa, ao invés de se desfazer, antes se fortaleceu e se imortalizou com o martírio, sendo retomada por Dictinio e outros discípulos, que se encarregaram de a fazer atravessar as épocas. Por isso, em pleno século XXI, um número cada vez maior de pessoas se identifica com o seu pensamento e assume, para si, a luta de Prisciliano.

Ao contrário de Gandhi, Prisciliano não tinha qualquer hipótese de derrubar o Império enquanto estivesse vivo. Mas ao iniciar o seu voo espiritual mais profundo, no cadafalso de Tréveris, adquiriu a força suficiente para vencer o confronto, não importa quanto tempo depois...

Ou seja, o confronto físico directo, do passado, transformou-se numa luta de egrégoras, travada invisivelmente, ao seu próprio nível, mas com reflexos evidentes no plano físico. A egrégora de Prisciliano encontra-se, agora, por detrás de todos os guerreiros-caminhantes que lutam para se libertarem do jugo romano, abrindo caminho a uma nova humanidade e a um novo ciclo da História do Mundo - e a verdade é que não é preciso ser mago ou adivinho para se intuir que o império da Instituição romana tem os dias contados.

Deste modo, o pássaro galego, tornado universal, aguarda a sua hora, nesse outro plano das asas, onde não existe ódio nem espírito de vingança, mas apenas a vontade de cumprir uma Lei que não é deste mundo, mas que regula este mundo. O seu canto suave é um chamamento contínuo para a liberdade, que ressoa aos ouvidos de quem o pode ouvir.

É certo que este chamamento ecoa por toda a Terra, mas torna-se especialmente audível nos montes e rias da Galiza, que já haviam escutado Prisciliano e transmitido a sua mensagem primordial. Os grandes carvalhos baloiçam suavemente com esse canto e com o vento que o transporta, e as ribeiras de águas cristalinas acrescentam-lhe a sua própria voz. As estrelas juntam-se ao coro, servindo-se do firmamento por cima do Caminho como caixa de ressonância, incitando os peregrinos a acertarem o passo por aquele imenso clamor de liberdade - é um canto que responde a todas as ânsias profundas de realização plena do ser humano, deixando antever uma mudança redentora e renovadora da face da Terra.

O Caminho de Compostela é o mote para um percurso interno e, por isso, com maior ou menor dificuldade, poderá sempre ser acedido e percorrido por dentro de cada um, independentemente da situação geográfica externa. No entanto, a Galiza de Prisciliano, ao facilitar um alinhamento que conduz à percepção, e onde, mais nitidamente, se pode ouvir o seu canto de liberdade, constitui-se como uma importante mais-valia para se entenderem e cumprirem todas as propostas do Caminho.

Por isso, com a Compostela das suas vidas à vista, seja ela qual for, todos aqueles que percorrem o Caminho como guerreiros são, agora, Prisciliano!



19 de jul. de 2011

PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO DE PRISCILIANO DE COMPOSTELA ("Prisciliano Ressuscitado" - Capítulo 5)




"Sou um ignorante, no campo da ciência; e, no campo teológico, um herético. Prefiro Platão a Aristóteles e Orígenes a Santo Agostinho, e o galego Prisciliano ao São Tiago de Compostela”
Teixeira de Pascoaes

"Nada ou quase nada se conhecendo a seu respeito, posso imaginar para ele e lho atribuir tudo quanto a mim me apeteceria ser e proclamar."
Agostinho da Silva





Chamaram-lhe o “Messias Galego” mas, contrariando o que dita o conhecido provérbio, Prisciliano conseguiu ser profeta na sua terra...

E assim permanece, resistindo a dezasseis séculos de ignorância, adulteração, censura, escárnio e ao mais completo ostracismo a que a Igreja Católica o relegou; porque, para um número cada vez maior de peregrinos esclarecidos, Prisciliano apresenta-se como a grande figura tutelar daquele percurso iniciático, mundialmente conhecido como o Caminho de Santiago.

Viveu no longínquo século IV, como membro de uma igreja cristã em franca ebulição devido às mudanças subsequentes à conversão do imperador Constantino; chegou a ser bispo de Ávila mas, no ano de 385, foi condenado à morte e decapitado, a mando da mesma Igreja de que fazia parte.

Prisciliano tornou-se, assim, na primeira vítima mortal de uma Igreja Católica que passou de perseguida a perseguidora, e com tal sanha o fez que levou Amniano Marcelino (historiador romano do século IV) a comentar: "nenhuma besta feroz é tão encarniçada pelo homem como o são a maior parte dos cristãos, uns contra os outros."

Para se entender esta aberrante contradição de princípios que veio abrir a porta às execuções "em nome de Deus", ainda em voga noutros credos fundamentalistas, é necessário compreender que, quando Constantino admitiu no Império a fé cristã, a cúpula da Igreja converteu-se, por sua vez, ao poder imperial...

Tão terrivelmente simples quanto isto!

A pureza da Obra original de Jesus foi-se diluindo em novos interesses e acabou substituída pelos tiques e vícios da Instituição nascente, sedenta de poder.

Ou, dito de outra maneira: a Igreja de Deus transformou-se na Igreja de César.

O grande objectivo da hierarquia eclesiástica de então era o de impor o dogma acerca das origens do cristianismo e, simultâneamente, definir os parâmetros da doutrina cristã, como religião oficialmente aprovada. Dela decorria que a Instituição se proclamava a si mesma como única e exclusiva intermediária do homem com Deus... Ora essa condição de privilégio da Igreja conferia de imediato aos líderes católicos um poder acima de todos os poderes temporais do mundo; e, quem se opusesse, teria que enfrentar não só a ira divina como a força brutal do império romano.

Prisciliano tentou contrariar o rumo da Instituição nascente, empenhando-se em fazer reviver os ensinamentos do cristianismo primitivo. Mas a cúpula da Igreja não estava interessada em recuperar uma Obra que punha em causa a sua própria interpretação e condução do processo.

Portanto, tudo acabou por decorrer de acordo com aquele conhecido drama-padrão em três actos: no primeiro, o Avatar ou Mensageiro Divino entrega aos discípulos a sua Obra, contendo um conjunto de ensinamentos para a humanidade. No segundo, os longínquos discípulos dos discípulos criam uma Instituição para guardar e transmitir a Obra recebida, mas essa Instituição rapidamente se cristaliza e perde o vínculo com a divindade, apresentando-se, no entanto, como a expressão única e verdadeira da Obra em questão. Finalmente, no terceiro acto, a Instituição, já totalmente vazia de conteúdo, acaba por se desmoronar e, dos seus escombros, volta a nascer a Obra.

No tempo de Prisciliano, o mensageiro Jesus já havia entregue a Obra e o drama encontrava-se no início do segundo acto, de longe o mais extenso, a ponto de, ainda hoje, estar em cena...

De facto, para a hierarquia da Igreja, a teimosia do bispo de Ávila em se alinhar com a Obra primordial e não com versão redefinida em Niceia, era a verdadeira "heresia"... E, na verdade, a posição de Prisciliano representava um perigo muito maior para os objectivos da Instituição do que qualquer outra heresia forânea.

Por isso, Prisciliano, o Messias galego, tornou-se no primeiro mártir do novo circo romano.


NÉVOA

Muito pouco se conhece, ao certo, sobre a figura histórico-filosófica de Prisciliano, devido à escassez de fontes coevas. As poucas que existem são essencialmente críticas do heresiarca, como as que constam na "Crónica” ou “História Sacra", de Sulpício Severo, ou as referências de Próspero. Faltam, portanto, as fontes do lado priscilianista para que, do confronto de ambas as facções possa resultar uma visão mais ampla e justa do fenómeno. A hipótese mais provável para essa falta é que a Igreja as tenha destruído, na tentativa de apagar da História um episódio em que utilizou métodos muito pouco cristãos... Outra possibilidade é a dos próprios priscilianistas não terem registado a sua versão dos factos e a sua doutrina, ou de o terem feito somente de modo parcial e oculto, devido ao clima de suspeição e de terror em que viviam, perseguidos pela Instituição romana.

Portanto, falar de Prisciliano e da sua comunidade é tarefa difícil e deve ser levada a cabo com todo o cuidado, evitando as efabulações e resistindo às comparações com o nosso tempo. Contudo, permito-me defender uma teoria que ultrapassa os factos para ir ao encontro das causas, sabendo que, nesses outros domínios, não existem documentos manuscritos nem provas de carbono…


                                                          * * *

Embora não hajam registos fiáveis (alguns estudiosos inclinam-se para a Bética, no sul da Ibéria, e outros para a Lusitânia), a opinião mais consensual é a de Prisciliano ter nascido no ano de 340 na aldeia de Iria Flavia, que se encontra hoje ligada à vila de Padrón, numa Galiza (actual província da Espanha) que, na altura, pertencia à província romana da Gallecia. Esta província incorporava ainda partes actuais de Portugal, Leão e Astúrias.

Esse local do nascimento do heresiarca é precisamente o mesmo onde, como conta a tradição compostelana, aportou a barca de pedra com o corpo do apóstolo Santiago. Como adiante se verá, qualquer semelhança da história de Prisciliano com a lenda de Santiago não parece ser, de forma alguma, pura coincidência.

A povoação romana de Iria Flavia havia sido fundada sob os auspícios do Sagrado Feminino, possivelmente conotada com a deusa Ísis, uma das expressões da Grande Mãe pagã.

Sintomaticamente, seria ali erguido, ainda que muito mais tarde, o primeiro templo da Península Ibérica dedicado ao culto da Virgem Maria. Note-se que foi também num outro lugar contendo o nome de “Iria” (mais precisamente, na “Cova da Iria”, em Portugal), que uma misteriosa Senhora "vestida de Luz" apareceu, milagrosamente, aos pastorinhos de Fátima...

Se Prisciliano nasceu em Iria Flavia, o culto ali existente da Mãe divina poderá ter marcado a sua conduta para com as mulheres, a ponto de, mais tarde, desobedecer às normas religiosas e permitir a sua intervenção nas cerimónias litúrgicas!... Neste aspecto, adiantou-se em vários séculos a uma Instituição católica misógina, que, inclusive, terá tardado em reconhecer que as mulheres tinham alma.


FORMAÇÃO

O cronista Sulpício Severo traça assim o perfil de Prisciliano : "nascido de família nobre e abastada, de régio carácter, inquieto, eloquente, erudito, exercitado na dissertação e no debate. Homem dotado para o êxito, se não tivesse corrompido o seu talento com tendências erradas. Muitas qualidades espirituais e físicas se podiam distinguir na sua pessoa: podia velar por muito tempo e aguentar a fome e a sede, não desejava mais do que o essencial e era sumamente parco nos seus gastos. Mas com estas qualidades misturava grande orgulho da sua falsa e profana ciência, posto que desde a adolescência exercera as artes mágicas".

Refira-se que Prisciliano nunca desmentiu ter recebido ensinamentos alheios aos canónicos cristãos, o que muito contribuiu para fortalecer a convicção dos seus contactos heréticos com a magia.

Como aristocrata de posses, frequentou, na sua juventude, a universidade de Burdigala (hoje em dia, Bordéus, no sul de França). Ali conheceu Delphidius, um brilhante professor de retórica, descendente de druidas, que tomou o nome de Elpídio quando se converteu, tardiamente, ao cristianismo ou, melhor dizendo, a um “druidismo cristão”, mais de acordo com as suas convicções. Delphidius era casado com Eucrocia, uma druidesa que também se converteu, tomando o nome de Ágape –  possivelmente em homenagem àquela outra Ágape que esteve na origem da igreja gnóstica dos Agapetas.

 É referida por alguns autores uma suposta relação amorosa de Prisciliano com a filha de ambos, Prócula. Aliás, a sua mãe Eucrocia viria a ser julgada em Tréveris, juntamente com Prisciliano, acusada de bruxaria por ter provocado um aborto a Prócula, supostamente grávida do heresiarca.

Foram Delphidius e Eucrocia que introduziram Prisciliano num cristianismo ascético, mágico e gnóstico, igualmente próximo a convicções celtas e a ensinamentos alexandrinos.

O cronista Sulpício Severo, provavelmente influenciado pelo bispo Itácio, principal adversário de Prisciliano, atribui aquela influência gnóstica e maniqueia, bem como os conhecimentos de magia, astronomia e demais "malefícios", a um tal Marcos, um egípcio natural de Mênfis e educado em Alexandria, discípulo de Basilides. No entanto, o bispo  Irineu de Lyon, ao escrever o seu famoso "Adversus haereses" ("Contra as heresias"), situa no século I a chegada daquele personagem misterioso à Península Ibérica. Seria impossível, portanto, qualquer contacto entre Marcos e Prisciliano. A única hipótese de ligação consiste na possibilidade de Marcos haver fundado uma escola que tivesse perdurado no tempo e influenciado Delphidius e Eucrócia, mestres directos de Prisciliano.

Seja como for, mestres e discípulo tornaram-se grandes amigos e fundaram uma comunidade espiritual nos arredores de Bordéus, em plena natureza, para o estudo e desenvolvimento pragmático dos valores muito pouco ortodoxos que defendiam.

Saliente-se que a natureza representou sempre um papel fundamental na obra de Prisciliano, que nela se refugiou inúmeras vezes com os seus seguidores, utilizando florestas, grutas, campos ou montanhas como verdadeiros templos; neles andavam descalços, não como sacrifício, mas para melhor se harmonizarem com as energias telúricas. Organizavam reuniões litúrgicas, frequentemente nocturnas, em que a dança ritualística era uma componente importante; e também ali passavam, jejuando, o tempo da quaresma, longe das igrejas tradicionais.

 É claro que aquela tendência libertária (precursora do movimento monacal), eivada de heterodoxia e independente da Igreja, foi imediata e duramente combatida. Por isso, a comunidade de Bordéus foi desfeita pelas autoridades e Prisciliano teve que retornar à sua Galiza natal. Mas as sementes da doutrina estavam lançadas e começavam a germinar dentro de si.

De acordo com a acusação que, mais tarde, lhe fariam, Prisciliano terá estudado com especial atenção os valores orientais do maniqueísmo dualista – isto é, a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, o Espírito e a Matéria, cujo campo de batalha é o interior do ser humano e onde, através de um ascetismo rigoroso, se podem aniquilar os elementos trevosos e libertar os luminosos. Mas não ficou por aí; em sintonia com a essência da Obra de Jesus, que ele amava acima de tudo, desenvolveu uma espiritualidade muito própria, profunda e introspectiva, num perfeito alinhamento com a natureza terrena e com os poderes do cosmos, na busca de um outro polo, para além dos já conhecidos como Bem e Mal... Digamos que nela se reflectia uma mescla rebelde e muito "galega" do cristianismo gnóstico dos primeiros tempos, misturando-se com a religiosidade celta, devotada à natureza e repleta de conceitos astrológicos, de misticismo e de magia.

 E de ânsias incontidas de liberdade...

Apesar da Instituição haver proibido a leitura dos escritos Apócrifos, Prisciliano confessava-se abertamente com leitor atento e entusiasta dos Actos de João, do Evangelho de André e, sobretudo, do Evangelho de Tomé, a quem considerava como irmão gémeo de Jesus; e não só lia e interpretava os textos “fora da lei”, como aconselhava aos outros a sua leitura e defendia a sua inclusão no cânone, não se cansando de exaltar a extraordinária importância que eles detinham.

 Pertencem ao Evangelho excluído de Tomé estas palavras de Jesus:
"Eu vos darei o que nenhum olho viu
 E nenhum ouvido escutou
 E nenhuma mão tocou
 E que não surgiu na mente humana..."

Era precisamente aquela dádiva divina "não surgida na mente humana" que Prisciliano mais buscava... E tê-la-á encontrado porque, rapidamente, se converteu no líder inspirado e carismático de um movimento religioso dentro da própria Igreja romana; um movimento que visava modificar, de dentro para fora, isto é, no seio da própria Igreja, uma Instituição eclesiástica que cada vez mais se afastava da Obra de Jesus.


PROPOSTAS

Pelo ano de 379, o ainda leigo Prisciliano voltou à Galiza e ali começou a pregar a sua doutrina com um sucesso extraordinário, que logo se estendeu à vizinha Lusitânia. A sua eloquência e cultura, fortemente inspiradas e, sobretudo, o sentido de Verdade que emanava do seu discurso e do seu exemplo, cativavam as populações e atraíam para a sua corrente renovadora elementos de todas as condições sociais, incluindo inúmeros membros da Igreja.

Sulpício Severo assim o descreve:" Prisciliano empreendeu a sua doutrina perniciosa e, pela persuasão e habilidade para a lisonja, atraiu à sua comunidade a muitos nobres e a numerosa gente do povo.(...) Pouco a pouco, a epidemia desta perfídia invadiu a maior parte da Hispania; inclusive, alguns bispos depravados, entre eles Instâncio e Salviano, admitiram a Prisciliano, não somente pelo consenso mas, muito mais do que isso, sob uma espécie de conjura."

Ensinando uma doutrina gnóstica como pano de fundo, visando o conhecimento de Deus através do autoconhecimento, as propostas de Prisciliano defendiam, por fora, a pobreza voluntária, a abstinência do álcool e da carne, o exercício da esmola, o igualitarismo no culto, a abolição da escravatura e a equiparação de ambos os sexos.

 Recomendando o celibato, Prisciliano não proibia, no entanto, o casamento de clérigos e monges, reconhecendo que a sexualidade consciente também era um valor que podia ser sacralizado.Afinal, o eterno jogo dos princípios masculino e feminino –  yang e yin – existe para que se alcance a Unidade...

 É nessa linha de pensamento que Prisciliano, escandalizando os seus contemporâneos, abriu as portas dos templos às mulheres, como participantes integrais e activas na liturgia. Também utilizou o baile como parte dessa liturgia e ousou afirmar que as almas humanas são, em essência, da mesma substância que Deus e que podem transmigrar-se, abrindo a porta ao conceito gnóstico da reencarnação.

As sementes deste regresso às origens do cristianismo (de tal modo vanguardistas que a Igreja de hoje ainda resiste a algumas delas, nomeadamente à questão das mulheres sacerdotisas e ao casamento dos membros do clero) germinaram primeiro nas comunidades da Galiza e da Lusitânia, porque eram as zonas da Península Ibérica menos romanizadas e, portanto, as que melhor haviam guardado a cultura celta; mas, na verdade, toda a Hispania se rendia e abria, paulatinamente, ao movimento renovador.

A reacção da Instituição Católica romana não se fez esperar. Muitos dos seus bispos estavam instalados numa confortável secularização e temiam pela sua carreira sacerdotal, no caso de triunfar o ascetismo priscilianista. Outros, apenas seguiam ordeira e devotadamente as normas da Instituição. Por isso, o bispo Higino de Córdova (que, mais tarde, se converteria num importante seguidor de Prisciliano), ao deparar com aquela "doutrina perniciosa"em pleno crescimento, enviou uma carta denunciadora ao bispo Hidácio de Emmerita Augusta, capital e sede metropolitana da Lusitânia (a actual Mérida, cidade espanhola da Estremadura).

Entretanto, um outro bispo, Itácio de Ossonoba (a cidade de Faro, no Algarve, em Portugal), alarmado pela extensão dos acontecimentos, logo tratou de relacionar a doutrina de Prisciliano com o que havia lido no "Adversus Haereses" sobre Marcos, o “tenebroso” mago egípcio hermético e maniqueísta… Inventando ligações e laços ocultos com Prisciliano, escreveu um exaltado "Commonitorium" sobre os erros do galego, a quem nunca mais deixou de perseguir, tornando-se no seu arqui-inimigo.

 Itácio encontrou pleno apoio no bispo metropolitano Hidácio que, a partir daí, sempre o acompanhou nas acusações ao heresiarca. Foram estes dois bispos cúmplices os principais autores das diversas fases da trama que levou Prisciliano à morte.

O cronista Sulpício Severo, num laivo de justiça, não hesita em criticar o "afã de vencer, maior do que era oportuno" dos dois bispos acusadores, referindo por diversas vezes a vida pouco recomendável de Hidácio. Quanto ao outro grande adversário de Prisciliano, define-o claramente deste modo: "Itácio nada tinha de valioso, nada de santo; era imprudente, loquaz, desavergonhado, charlatão e escravo do ventre e da gula..." 

O próprio Prisciliano remata contundentemente o perfil do bispo de Faro, ao increpá-lo no seu "Liber Apologeticus": "Itácio, eu conheço as tuas obras e sei que não és frio nem quente. Agradaria ao Céu que o fosses mas, por morno, o Senhor te vomitará da Sua boca!..."


SARAGOÇA

A estratégia para eliminar Prisciliano iniciou-se no ano de 380, com a convocação de um concílio em Saragoça. Curiosamente, o mesmo lugar onde a lenda conta que o apóstolo Santiago se havia encontrado, três séculos antes, com a mãe de Jesus, dando origem ao culto da Virgem do Pilar. Mas, desta vez, o objectivo não era propriamente apostólico.

Foi o papa Dâmaso (um outro galego nascido em Braga, actual cidade portuguesa do Minho) quem decidiu autorizar tal concílio, atendendo às razões do bispo metropolita Hidácio, que referia a ameaça de um cisma na Hispania. No entanto, o papa recomendava uma postura conciliadora entre todos os bispos e decretava a impossibilidade de alguém vir a ser condenado sem ser ouvido anteriormente. Ou seja, Hidácio ficava, logo à partida, com um campo de manobra muito reduzido.

O concílio de Saragoça começou com um fracasso, pois ali somente compareceram doze bispos, entre hispanos e aquitanos. Nenhum bispo galego respondeu à chamada, excepto Simpósio de Astorga que, no entanto, se foi embora no primeiro dia, ao perceber que o único fim daquela reunião era condenar Prisciliano. Os bispos lusitanos Instâncio, de Salamanca, e Salviano, de Cória, também primaram pela ausência, tal como Higino, de Córdova, que havia denunciado Prisciliano mas que, logo após, se convertera num dos seus apoiantes. Prisciliano, alvo principal do concílio, também se recusou a comparecer.

Os bispos reunidos em Saragoça acabaram por redigir oito cânones contra os faltosos, suspeitos de heresia, nas pessoas dos leigos Prisciliano e Elpídio, junto com os bispos católicos Instâncio e Salviano. No entanto, devido às expressas instruções do papa para que se não realizassem condenações “in absentia”, o sínodo terminou apenas com uma reprovação teórica e abstracta da heresia, desautorizando muitas das suas práticas e postulados e excomungando quem os seguisse, mas guardando um forçado silêncio sobre os priscilianistas.

Mesmo assim, ao serem conhecidas as decisões de Saragoça, Prisciliano resolveu passar à acção e escreveu uma carta ao papa Dâmaso, em sua defesa.

 Referiu Prisciliano que "no concílio de Cesaraugusta (Saragoça), nenhum de nós foi tido por réu, nenhum de nós foi acusado e nenhum de nós foi condenado, nem ao nosso nome, propósito ou vida foi feita alguma objecção; ninguém teve necessidade de se apresentar, nem sequer houve convocação. Não sei que cominatório foi ali aportado por Hidácio, como assinalando regras de actuação na vida; nenhum de nós foi censurado nelas, graças, sobretudo, a uma carta tua que prevaleceu contra os ímprobos, na qual ordenavas que, conforme aos preceitos evangélicos, não se emitisse sentença contra os ausentes sem haverem sido ouvidos"...

Sem deixar de criticar o mau exemplo e as atitudes persecutórias de Hidácio, Prisciliano apelou ao entendimento e à paz entre todas as igrejas da Hispania, terminando a carta deste modo: "lutemos para que, sob o nome dos criminosos, não fiquem nos vossos dias, como vós sabeis que seria terrível, as igrejas católicas vazias de sacerdotes e os sacerdotes vazios de igrejas."

Para além desta carta ao papa, escreveu ainda o "Liber Apologeticus ou Professio Fidei", que enviou a todos os bispos peninsulares. Prisciliano não só saíra incólume do primeiro grande confronto com a Instituição, como a sua posição havia ficado ainda mais reforçada.


ÁVILA

Um ano depois, em 381, ficou vaga a sede episcopal de Abila (a actual Ávila, cidade espanhola de Castela e Leão) e os bispos lusitanos Instâncio e Salviano, que queriam consolidar a sua posição perante as acusações persistentes de Hidácio e Itácio, conseguiram elevar Prisciliano à posição de bispo daquele importante episcopado.

A nomeação de Prisciliano caiu como uma bomba no seio da hierarquia conservadora da Igreja!
 Ávila deixava de ser um bastião da ortodoxia e Hidácio havia sido ultrapassado no seu próprio terreno... Certamente atónito e enfurecido, reuniu-se com Itácio para conjurar uma resposta, que passou, inclusive, pelos tribunais civis mas, como escreveu Sulpício Severo, "os juízes seculares pouco adiantaram aos seus torpes propósitos de que os hereges fossem expulsos das cidades"...

Desesperados e conscientes da inutilidade de convocar um novo concílio, Hidácio e Itácio resolveram então avistar-se directamente com o imperador Graciano. E perante o detentor do poder maior do império, acusaram Prisciliano de ser maniqueísta, pedindo a sua expulsão imediata, junto com a dos bispos heréticos que o apoiavam.

                                        * * *

O maniqueísmo dualista, de que já falámos antes, era uma religião nova que havia sido introduzida no império persa – um forte rival de Roma – pelo profeta Mani, nascido na Mesopotâmia em 215 ou 216. Depois de uma sanguinária perseguição, que levou à morte do seu iniciador, o maniqueísmo não cessou de crescer por todo o oriente. No próprio século III, ganhou inúmeros adeptos no império romano e começou a agregar elementos cristãos, que lhe deram o aspecto de heresia – refira-se que Santo Agostinho começou por ser um seguidor confesso de Mani!...

 Devido à sua origem e porque havia atraído tantos cristãos, o poder de Roma considerava o maniqueísmo como uma heresia muito perigosa, receando, inclusive, intromissões políticas sob a capa da doutrina.

Ou seja, não era preciso mais nada para fazer agir Graciano.

Mas, segundo a lei vigente, o poder imperial não podia julgar um bispo sem haver antes uma condenação pela jurisdição eclesiástica e Prisciliano fora consagrado bispo de Ávila... No entanto, Hidácio e Itácio socorreram-se da condenação teórica do sínodo de Saragoça e, como relata Sulpício Severo, "depois de muitas e vergonhosas discussões, conseguiram obter de Graciano, então imperador, um rescrito, no qual se mandava que todos os hereges abandonassem não somente as igrejas e cidades, mas que fossem expulsos de todas as suas terras".


VIAGEM

Prisciliano reagiu, decidindo justificar-se pessoalmente perante o papa Dâmaso e pedir a sua proteção. Para isso, encetou uma longa viagem a Roma acompanhado pelos bispos Instâncio e Salviano. A caminho de Itália passaram pela Aquitânia, onde Prisciliano retomou o contacto com Prócula e sua mãe Eucrócia, já viúva de Elpídio, que passaram a fazer parte da comitiva.

Chegaram a Roma quando Dâmaso se encontrava em plena luta política para obter a primazia da sede romana. Fortemente pressionado pelos sectores mais reaccionários da Igreja, o papa acabou por não receber a comitiva. Prisciliano optou por se dirigir a Milão, sede episcopal do influente Ambrósio, mas este tampouco ousou recebê-lo. Desistiu, então, da via hierárquica e voltou-se, tal como o haviam feito os seus acusadores, para o palácio imperial de Graciano.

Começou por ganhar o favor de Macedónio, que ocupava o cargo de "magister officiorum" do imperador e a quem Itácio acusou, mais tarde, de ter sido subornado por Prisciliano. Macedónio introduziu o bispo de Ávila junto do próprio Graciano, a quem Prisciliano teve ensejo de explicar detalhadamente o seu pensamento e toda a questão que o envolvia. O imperador mostrou-se sensível às razões de Prisciliano e reconheceu a intriga dos bispos Hidácio e Itácio. De imediato derrogou a sua ordem anterior, reconfirmando Prisciliano como bispo de Ávila e devolvendo todos os episcopados aos priscilianistas.

Tratou-se de uma grande vitória de Prisciliano sobre aos seus detractores, sobretudo face a Hidácio e Itácio, que perdiam inexoravelmente toda a credibilidade e poder – pelo menos, enquanto Graciano fosse o imperador romano do Ocidente.

A repercussão foi tal que Itácio, acusado de “perturbador da Igreja”, teve que sair da Hispania e refugiar-se em Tréveris (a cidade de Trier, na actual Alemanha).


VENTOS

Então, sob o aplauso entusiasta da sua Galiza natal e da Lusitânia que o havia adoptado, Prisciliano voltou a entrar em Ávila como bispo consagrado daquela cidade. Tinha trinta e três anos.

Foi em Ávila que pegou na pluma e, entre outros, escreveu os "Canônes sobre as Epístolas do Apóstolo Paulo". Acendia-se um irradiante farol gnóstico na cidade que, onze séculos depois, haveria de acolher Santa Teresa e S. João da Cruz.

Em muitos dos seus escritos, Prisciliano defende abertamente as suas ideias, tal como no "Liber de Fide et Apocryphis"em que propõe a canonicidade de textos apócrifos, recomendando a sua leitura e advogando o princípio do livre exame dos textos evangélicos, bem como a superação do literatismo na interpretação das escrituras; porém, no "Liber Apollogeticus" e outros, a sua doutrina parece, estranhamente, alinhar-se com a ortodoxia reinante. Seriam estes, meros “textos de descarga" para defesa da sua posição e camuflando assim outras intenções, como aventam alguns investigadores?...

Penso que a resposta a esta contradição é dada através das estrofes do "Hino a Jesus Cristo" (que alguns atribuem ao próprio Prisciliano e outros dizem ser mais antigo, mas que foi utilizado pelos priscilianistas):
"Sou luz para ti, que me vês.
Sou porta para ti, que a ela bates.
Tu vês o que faço. Não o menciones.
A palavra enganou a todos, mas eu não fui completamente enganado."

Os  últimos versos referem-se, explicitamente, a uma acção camuflada pela "palavra", que poderá ser tão enganadora como os referidos textos apologéticos de Prisciliano…

                                                    * * *

Os ares de mudança faziam abanar a Igreja da Hispania, fortemente sacudida pela ofensiva apostólica de fé iluminada, de consciência e de santidade, lançada pelo bispo de Ávila. O extravasar da onda renovadora para além dos Pirenéus parecia inevitável mas, de súbito, os ventos mudaram...

De facto, no ano de 383 deu-se uma inesperada reviravolta político-militar no império romano do Ocidente: o ambicioso Magno Máximo sublevou-se na Gália e assassinou o imperador Graciano. E, como se não bastasse, ainda foi assentar arraiais em Tréveris, onde se encontrava o bispo Itácio! Resultado: não passou muito tempo até que o “desavergonhado, charlatão e escravo do ventre e da gula” Itácio conseguisse transmitir ao novo imperador as suas acusações venenosas contra Prisciliano e a sua “seita degenerada” que agitava a Península Ibérica…

Depois do golpe militar, Máximo precisava que a Igreja o reconhecesse como imperador do Ocidente, facilitando a sua posição perante Teodósio, imperador do Oriente, que o tinha por usurpador. Por outro lado, a Igreja também precisava daquele braço imperial para eliminar os numerosos movimentos dissidentes que a afligiam. Estabeleceu-se, assim, uma aliança tácita, entre os dois poderes, que levou o novo imperador a adoptar uma postura anti-priscilianista.

Ciente de que a condenação de um bispo pelo poder imperial teria que ser precedida por igual condenação por parte da Igreja, Máximo ordenou a convocação de um sínodo em Bordéus, baluarte dos contra-reformistas, com o intuito explícito de corrigir a heterodoxia do cristianismo ibérico.


ARREPIO

Imagino que Prisciliano, ao receber a convocatória para o sínodo de Bordéus, tenha sentido um estranho arrepio a atravessar-lhe o corpo…

A nova situação política do império emergia de forma favorável aos seus inimigos, que jamais haviam desistido de o perseguir; no entanto, ele também vencera confrontos difíceis no passado e a própria estrutura eclesiástica a que, apesar de tudo, pertencia, há muito que não detinha registos de condenações internas, envolvendo violência física por conflitos ideológico-teológicos...

 Por isso, aquela possível reacção de Prisciliano, não corresponderia nunca a um reflexo de medo, ou de falta de confiança em si próprio; o seu corpo teria estremecido porque soube, primeiro do que a mente, que tinha chegado a hora da sua própria “paixão”.

"Toda a paixão que vale, tem que ser voluntária, tem que ser desejada e posta em prece, por mais que no momento a carne se mostre, de novo, mais fraca do que o espírito; mais ainda: para além de todo o sofrimento, para além de toda a lágrima de sangue e de toda a chaga de fogo, tem que ser alegre, esplendorosa de amor da vida e do futuro, e decidida e séria e grave, como no sacrifício do monge ou do soldado. Não o puderam, por vários motivos, meditar antes os irmãos perseguidos; nós, porém, temos tempo; e não podemos admitir que fique desaprendido o seu legado." São palavras de Agostinho da Silva que traduzem, à perfeição, o presumível estado de alma de Prisciliano. Um Prisciliano maduro, que terá tido tempo suficiente para meditar e perceber a mensagem que o seu corpo lhe transmitia. Talvez por isso, ao invés de se esquivar ou procurar, de algum modo, evitar o desfecho que se adivinhava, dirigiu-se, resolutamente, com os seus apóstolos para Bordéus.


CONSPIRAÇÃO

Mais uma vez pelas bocas de Itácio e Hidácio, surgiram as acusações mais díspares, juntando-se à da heresia, mas todas se desfizeram de encontro à prodigiosa e inspirada oratória de Prisciliano. Por isso, o sínodo terminou num impasse e, portanto, sem a requerida sentença condenatória desejada pelo imperador Máximo e pelos bispos acusadores.

Para o “fracasso” de Bordéus, certamente que também contribuiu a influência do bispo Martinho de Tours que, ao longo do concílio, defendeu os priscilianistas. Esta atitude do futuro S. Martinho, não só em Bordéus como, depois, no julgamento de Tréveris, enfureceu sobremaneira Itácio.

Sulpício Severo não poupa o bispo de Faro: "A sua estupidez tinha ido ao ponto de acusar de delito, como companheiros ou discípulos (de Prisciliano), todos os homens simples que gostavam de ler ou praticavam jejuns. Inclusivamente, o miserável, atreveu-se a difamar publicamente, como herético, o respeitável bispo Martinho, em tudo comparável com os apóstolos. Tudo isto, porque Martinho, então em Tréveris, não cessava de repreender duramente a Itácio, para que desistisse da acusação."

De facto, esta nova acusação de Itácio decorria já no tribunal civil de Tréveris porque, mal terminado o sínodo de Bordéus, Prisciliano e os seus acompanhantes foram presos pelas forças de Máximo e ali conduzidos, a fim de responderem num outro tribunal, sob o foro secular.

 O porquê de tal situação, não se sabe; o que se sabe é que, face ao código da época tratava-se de uma detenção ilegal, pois não poderia seguir-se um juízo civil sem ter existido uma condenação no sínodo anterior.

Alguns autores dizem que foi o próprio Prisciliano quem requisitou a justiça de Máximo, após o sínodo de Bordéus. Tal suposição não me parece consistente e choca com o facto da surpreendente ordem de prisão dada aos priscilianistas; logo, parece ser um argumento inventado pelos seus detractores para justificar uma farsa montada de muito alto.

Mas no seguimento da linha especulativa sobre a convocatória para Bordéus, também considero que possa ter sido essa a opção de Prisciliano, escolhendo um enfrentamento definitivo com aquele que, sobre ele, detinha o poder de vida ou de morte.

 Se assim foi, acredito que não se tratava de uma desmesurada confiança nas suas possibilidades, como aventam alguns, mas da decisão, irracionalmente mística, de beber até ao fim o Cálice do seu destino.

Digamos que, desse modo, o Messias Galego se dirigiu ao seu próprio Jardim das Oliveiras...


PAIXÃO

No tribunal imperial, Itácio e Hidácio pertenciam, claro está, ao grupo de bispos-juízes e, pela primeira vez, podiam vencer. Mas essa vitória anunciada não podia ser posta em causa pela eloquência inspirada de Prisciliano, que os havia suplantado em todos os outros confrontos; para anular esse inconveniente, nada melhor do que obter uma confissão do próprio réu – e como seria impossível obtê-la de outro modo, não hesitaram em recorrer à tortura.

Note-se que a aplicação da tortura era uma prática vulgar naquele tempo de domínio imperial romano; a novidade é que, pela primeira vez, foi patrocinada pela Igreja Católica!...

Sob os efeitos brutais da tortura qualquer um concorda com os carrascos, e foi assim que Prisciliano acabou por confessar algumas infracções graves ao código vigente da Igreja. Mas o mais curioso, ou tristemente irónico, é que a sua confissão, apesar do modo como foi arrancada, soa a verdadeira - verdadeira, porque os supostos delitos eram, todos eles, a expressão de uma espiritualidade viva, fluida e activa, em confronto com o modelo monolítico da Igreja, mais rígido do que a morte.

Seriam crimes as acções confessadas? Do ponto de vista da cegueira, sim. Mas os verdadeiros criminosos não seriam os acusadores?...

De qualquer modo, o processo estava ganho por eles, pelos torturadores, restando a mera formalidade cénica do tribunal. No entanto, no foro da Consciência de cada um, o processo não está encerrado e as acusações podem, ainda, ser rebatidas.


ACUSAÇÕES

A heresia encabeçava a lista, mais propriamente a acusação de Prisciliano ter ligações com o maniqueísmo, ou encarnar e difundir um sincretismo gnóstico que se chocava abertamente com a nova doutrina católica romana. Já se falou de tudo isto em capítulos anteriores. Quanto às novas acusações, a mais  grave de todas, porque poderia conduzir, por si só, à pena de morte, era a de bruxaria.

A condenação de um bispo católico por “maleficium” (bruxaria) implicava a confiscação de todos os seus bens pelo estado, sem afectar o património eclesiástico. Ora sendo Prisciliano oriundo de uma família abastada, bem como alguns dos seus discípulos hispânicos, tal condenação interessava sobremaneira à Igreja e ao imperador...

Por bruxaria, os bispos acusadores referiam-se, nomeadamente, ao facto de Prisciliano consagrar os campos ao Sol e á Lua, a fim de se obterem boas colheitas.

                                                 * * *

Devo dizer que, ao longo da minha infância, passada numa vila ribatejana, em Portugal, assisti muitas vezes a uma missa campestre, durante a qual se consagravam as colheitas e se benziam as manadas de gado. Não me lembro, contudo, que tenha sido preso e decapitado o padre católico que a celebrava, o que teria tornado a cerimónia ainda mais inesquecível!...

É famosa a capela de S. Mamede de Janas, próxima de Sintra, em Portugal, onde, ainda hoje, se pratica o rito da benção do gado e dos frutos da terra... E, com toda a certeza, o mesmo culto se celebrou, ou celebra ainda, em muitas outras localidades ibéricas, assim como, certamente, por essa Europa fora.

Ou seja, como já antes referido, a Igreja viu-se impossibilitada de eliminar muitos rituais pagãos ancestrais, por estarem demasiado arraigados na memória colectiva dos povos, e decidiu cristianizá-los, isto é, institucionalizar a sua prática, conferindo-lhes um cunho católico e, sobretudo, transpondo-os para debaixo da sua autoridade.

Por outras palavras: esta prática de "bruxaria", que levou Prisciliano ao cadafalso, acabou por ser admitida e exercida, até aos nossos dias, pela mesma Igreja que tão implacavelmente a perseguiu nos seus primeiros tempos de poder!...

                                                   * * *
                              
Mas para aprofundar um pouco mais a questão tão desconhecida da bruxaria, da magia ou, se quiserem, dos "milagres" – que nada têm de sobrenatural porque derivam de um determinado estado natural, apoiado por leis igualmente naturais…-, recorro de novo ao xamã citado por Carlos Castaneda: "a feitiçaria é a capacidade de se perceber algo que a percepção comum não consegue". E logo acrescenta: "não existe bruxaria, nem mal, nem diabo. Existe apenas percepção."

 Ou seja, como também sublinha, "A feitiçaria é um estado de consciência."

Segundo aquele ensinamento, o homem tem ao seu dispor um poder incalculável que invariavelmente desperdiça, porque lhe falta a energia necessária para o manobrar; ao gastar tudo que tem para resolver as questões comuns, do seu quotidiano comum, não lhe sobra energia alguma que lhe permita aceder às outras faixas de percepção. Nem sequer para saber que aquele poder existe...

Os magos ou feiticeiros aprendem a economizar a energia necessária para sintonizar e manipular campos de energia normalmente inacessíveis, penetrando em mundos insuspeitos para a mente racional. Por isso, pode dizer-se que a magia ou feitiçaria é um estado de consciência e, sendo assim, insisto, nada tem de sobrenatural; pelo contrário, consiste na habilidade de entender e de utilizar as leis da natureza, em toda a sua extensão e poder.

Claro que a utilização do poder proveniente daqueles campos de energia pode ter dois sentidos e é isso que distingue os magos brancos dos negros.

Os magos brancos empregam esse poder para percorrerem “caminhos de Liberdade”, tal como o fez Prisciliano, servindo de exemplo e de farol aos outros homens e contribuindo para a sua própria libertação individual e colectiva.

Os magos negros utilizam o poder para reforçarem o seu domínio sobre os demais, manipulando totalmente as suas acções e pensamentos. Servem-se do medo, da culpa e da ignorância para impor os seus dogmas e manter um estado de escravidão e de obscurantismo.

Foram eles que perseguiram Prisciliano, antes e depois de morto, tudo fazendo para destruir a idoneidade e a credibilidade da sua memória. Não puderam apagar por completo a sua figura da História, mas conseguiram que fosse vista com desconfiança. E esquecida.

Por tudo isso, são eles os bruxos perigosos, que deveremos pôr seriamente em causa, em vez de nos assustarmos com o grito de liberdade de Prisciliano!...

Que, apesar de tudo, ainda hoje ecoa; mas que, ainda hoje, procuram abafar.

                                                * * *

Outra das graves acusações que pendiam sobre Prisciliano era a de rezar em promiscua nudez com mulheres, chegando, inclusive, à prática sexual no final das cerimónias litúrgicas.

Abordemos primeiro a questão da nudez: será que os púdicos juízes católicos do século IV se tinham esquecido das Escrituras que haviam aprovado em Nicéia?

Um dos textos canónicos, conta-nos que o rei David se despia para louvar a Deus tendo, inclusive, dançado completamente nu em torno da Arca da Aliança!... Tanto assim, que a sua esposa Mical saiu ao seu encontro e o censurou com estas palavras: "Que bela figura fez hoje o rei de Israel, dando-se em espectáculo às servas dos seus vassalos e descobrindo-se sem pudor!..." Ao que David respondeu: "Foi diante do Senhor que dancei, do Senhor que me escolheu para chefe do Seu povo de Israel."

O texto acrescenta que a censura de Mical a David foi duramente punida por Deus, que a tornou estéril... Do mesmo modo, a condenação de Prisciliano não terá levado a Instituição à mais desoladora esterilidade espiritual?...

Adão e Eva viviam nus no Paraíso e só se cobriram com roupas depois de terem sido expulsos, isto é, depois de terem perdido o contacto directo com a divindade... Isto significa que, na tradição bíblica, a nudez do corpo representa o retorno ao estado primordial, ou a manifestação plena e total do espírito no corpo, sem quaisquer véus a encobri-la.

Alguns gnósticos despiam-se para rezar porque faziam da nudez o símbolo da sua depuração face aos Mistérios divinos, abolindo toda a separabilidade representada pelas vestes. Ou seja, essa nudez ritualística simbolizava a nudez da alma, despindo a veste do corpo para retornar à sua origem divina...

O próprio S. Francisco de Assis, uma das figuras mais veneradas da história da Igreja, não pediu para morrer e ser sepultado, completamente nu?...

Sendo assim, a atitude de Prisciliano reflectia um alinhamento interior da mais elevada espiritualidade e não o reflexo de uma provocação lasciva ou de uma degradação sensual e materialista. Mas os bispos acusadores de Tréveris apegaram-se, exclusivamente, a esta última hipótese porque era, seguramente, a única que conheciam pela prática das suas próprias vidas.

                                                  * * *
                
"A humanidade é infeliz porque fez do trabalho um sacrifício e do sexo um pecado", disse com toda a frontalidade Henrique José de Souza.

Não tenho dúvidas de que a responsabilidade maior por esta infelicidade deriva da Igreja Católica e dos seus dirigentes, que instilaram a repulsa pelo sexo, fazendo dele um terrível pecado... Os excessos de hoje são uma reacção a todos esses séculos de opressão e de culpa; infelizmente, são tão obscuros como a repressão do passado, porque em ambos os casos está ausente o factor da consciência...

Prisciliano, agindo de acordo com práticas gnósticas esclarecidas (que aquela máxima moderna, afinal, sintetiza), abriu as portas do Templo às mulheres, desobedecendo com valentia às normas vigentes da igreja, que o proibia taxativamente.

Mas, tal como se referiu antes (veja-se o capítulo 3), o próprio Jesus viajava acompanhado de um grupo de mulheres, sendo que uma delas, segundo o evangelho de Tomé, partilhava a sua cama; e S. Paulo fazia o mesmo com a sua companheira Tecla…

Também ali se falava de que os Mistérios Internos do gnosticismo introduziam uma figura feminina representando um outro aspecto da divindade, que apelidavam de "Sofia" (que, em grego, língua em que foram escritos os evangelhos, significa "Sabedoria").

Não deixa de ser significativo que a palavra "filósofo", utilizada pela primeira vez por Pitágoras, queira dizer, literalmente, "amante de Sofia", e ainda que S. Paulo, na epístola aos Colossenses, assinale que é em Cristo "que estão escondidos os tesouros da Sabedoria (ou de Sofia, no original) e da ciência divina (a Gnose) ".

Para os gnósticos, Sofia era a companheira do Cristo e também a alma do mundo, ou o reflexo de Deus infundido na matéria.

Estes dois pólos da divindade separavam-se para actuarem na matéria do mundo mas, na verdade, constituíam Um só, e esse regresso à Unidade podia ser simbolizado, em termos humanos, pela relação sexual; não em pretensos ritos orgiásticos, tão ignorante e difamatoriamente referidos pela Igreja, mas numa sexualidade sagrada e consciente, vivida através da relação harmónica e complementar entre o homem e a mulher.

O evangelho de Filipe, descrevendo um processo de iniciação, diz-nos que o mesmo culminava na câmara nupcial da união mística, uma vez que "o sacrário é a câmara nupcial e a redenção tem lugar na câmara nupcial".

Para não deixar dúvidas de que o mistério em causa é espiritual mas que se inicia no plano físico, Filipe acrescenta que "a mulher se une com o esposo na câmara nupcial."

Claro que esse encontro de núpcias representa, sobretudo, a reunião das partes separadas do andrógino, bem como da alma com o espírito. Mas essa reunião só se torna completa em todos os planos com a união consciente e sagrada dos corpos físicos.

Continua Filipe: " a câmara nupcial é o Santo dos Santos. O baptismo traz consigo a ressurreição e a redenção, que depois se realizam na câmara nupcial." E como que para acentuar o carácter inicialmente físico do processo (o físico não é mais que o espírito densificado, enquanto que o espírito é o físico subtilizado...), o mesmo evangelho dá-nos conta do afecto especial de Jesus por uma determinada figura feminina: "três mulheres sempre caminhavam com o Senhor: sua mãe Maria, sua irmã e Maria Madalena, que era chamada sua companheira. Sua irmã, sua mãe e sua companheira eram, cada uma, Maria."

Outra passagem ainda é mais explícita: "a companheira do Salvador é Maria Madalena. Ele amava Maria mais que todos os discípulos e a beijava muitas vezes na boca. Os demais lhe disseram: "Porque a amas mais do que a nós?" O Salvador respondeu: "Porque não vos amo como a amo?"

Mas não são apenas os escritos apócrifos a referirem esta questão. No evangelho canónico de Mateus, é o mesmo Jesus a afirmar claramente que "alcançar o reino dos Céus será como uma donzela sair ao encontro do esposo"...

Para os gnósticos cristãos, Sofia, como contraparte do Cristo, representava a encarnação do Eu divino na Terra e, por isso, como psique humana incompleta, era retratada num estado decaído, perdida no mundo, em busca da sabedoria ou da sua verdadeira identidade. De tanto e tão desesperadamente procurar o amor de um mítico esposo, torna-se prostituta (recorde-se que na versão da Igreja, é também assim que surge a figura de Maria Madalena, salva da degradação por Jesus, como Daemon ou Espírito). Sofia apela, então, a Deus Pai e Ele responde, enviando-lhe como noivo o Seu Filho primogénito. Quando os dois se encontram e reconhecem, envolvem-se numa intensa relação amorosa, a todos os níveis, para voltarem a ser Um.

Este mito é uma alegoria da condição humana que, para ser salva da escuridão e da ignorância em que vive, tem que se casar com o Espírito ou Eu Superior que, por sua vez, vem em socorro da sua própria expressão na Terra. Por isso, o Mistério do “casamento sagrado”, simbolizando a Unidade alcançada (que poderia ter uma componente sexual, para se realizar em todos os planos) correspondia a uma elevadíssima iniciação gnóstica.

Deste modo, Prisciliano admitia o sexo ritualístico, assim como a sexualidade vivida saudavelmente no casamento ainda que, recorde-se, prescrevesse o celibato. Ou melhor, prescrevesse a castidade; porque, note-se bem, castidade e abstinência não são a mesma coisa – é possível ser-se abstinente pela lei da natureza, como sucede com certos idosos libidinosos que, desse modo forçado, não são castos, como também se pode ser casto sem ser abstinente, como é o caso de muitos iniciados.

A Igreja nunca foi abrangente no que respeita à sexualidade, matéria com que sempre manteve uma relação difícil e perigosa, não hesitando em associar a mulher ao demónio e espalhando o terror associado ao sexo. Por isso, o número das suas vítimas psíquicas que, por medo, ignorância ou cego seguidismo se autoimolaram (e muitas ainda continuam a fazê-lo!...) excede em muitos milhões o das suas vítimas físicas, que, já de si, era impressionante!...

Prisciliano foi uma das vítimas físicas, mas não uma das psíquicas, pois o seu pensamento sempre voou mais alto e a salvo de todas as castrações mentais. Disso dá conta este poema de Jesús Munárriz intitulado "Tras haber holgado con Prócula, Prisciliano medita":

"-Llaman a esto pecado los fanáticos.
A esta explosión que lenta se alabea,
a este sentir con cada poro, vibrar en cada vello,
a este ser piel,
a esta dulzura derramada en carne viva,
a este glotón enjambre de alegría,
a estos nervios sabiéndose universo gozoso,
al corazón alardeando de su mejor humor,
al milagroso encaje en la sonrisa,
a la satisfacción ardiendo en ojos,
a la felicidad
llaman pecado.

Pero es dios quien se ama en nuestros cuerpos
- nuestros cuerpos dispuestos para el éxtasis
por Su sabiduría -
y su goce es el nuestro. Amemos, Prócula."


                                        * * *

 A resposta da corrente da Vida aos arremedos terroristas e castrantes da Igreja foi contundente, já que se liga com o símbolo do seu percurso mais emblemático: o Caminho de Santiago (ou, na verdade, o Caminho de Prisciliano) que tem como símbolo a concha chamada vieira.

Dizem que várias razões determinaram a escolha deste símbolo: por um lado, as vieiras abundam no litoral compostelano onde, afinal, termina o Caminho; por outro, as estrias da concha representam um confluir de múltiplas rotas para um único ponto –  a cidade de Santiago de Compostela... Pode ser tudo isso e mais o que quiserem, mas a simbologia tradicional diz-nos que a vieira é o emblema da deusa grega Afrodite (ou Vénus, para os romanos) que dela nasce sobre as águas, tal como é ilustrado pelas célebres pinturas de Botticelli ou de Ticiano.





E qual o sentido mais profundo desta simbologia?... Ao evocar as águas, por excelência geradoras da vida física (as águas primordiais, as águas amnióticas do ventre materno...) a vieira torna-se, de imediato, num símbolo feminino ou lunar de fecundidade; e o facto de estar associada a Afrodite ou a Vénus, deusas do amor, ainda mais o sublinha, fazendo dela o emblema inequívoco da mais excelsa sexualidade.

Então, se a vieira é o símbolo do Caminho, a Iniciação nele contida estará certamente relacionada com os antigos Mistérios da fecundidade e o culto do Sagrado Feminino – afinal de contas, tal como o entendiam os gnósticos e o celebrava Prisciliano!...


MORTE

Prisciliano e mais seis dos seus discípulos foram condenados à morte pelo tribunal de Tréveris e inúmeras vozes logo se ergueram, apelando para a autoridade suprema do imperador Máximo. Dos juízes implicados no processo, somente um tal Teognasto e Martinho de Tours pediram clemência. Mas a maioria dos bispos envolvidos, com Itácio e Hidácio à cabeça, pressionaram o comprometido imperador que, desejoso de agradar ao sector mais poderoso da Igreja, isto é, ao mais ortodoxo e reacionário, confirmou a sentença.

Então, na primavera de 385, Prisciliano, junto com a matrona Eucrócia e ainda com os apóstolos Arménio, Felicíssimo, Latroniano, Aurélio e Asarino, foram decapitados.

Conta-se que Prisciliano, assumindo a condição de bispo até ao fim, subiu ao cadafalso vestido com os seus melhores paramentos episcopais. Se tal aconteceu, terá sido o modo mais adequado para transmitir o verdadeiro sentido do drama representado em Tréveris.

Porque, afinal, foi a Igreja que ali se condenou a si própria...


YOKANAN

Somente três séculos antes da cabeça de Prisciliano rodar em Tréveris (nome que, na língua portuguesa, faz lembrar Trevas...), o rei Herodes Antipas I havia cortado a cabeça de João Baptista.
Afinal, Herodes e a Instituição Católica tinham algo em comum: o horror aos profetas!

De facto, quer Herodes, quer a Igreja, haviam-se instalado num grau de poder considerável e instituído regras para o perpetuar. Por isso, não havia razão alguma para admitir quem questionasse aquele poder ou vaticinasse a sua queda; ainda para mais, invocando a inspiração divina!

Mas, ao longo dos tempos, sempre surgiram na face da Terra determinados seres com a função de intérpretes, porta-vozes ou arautos da divindade. Foram chamados de profetas, por uns, e, segundo uma outra tradição, "yokanans". Também eram dotados de vidência e falavam do futuro, embora esses anúncios de mudanças na história do mundo não fossem a sua principal missão. Competia-lhes promover o culto de Deus e desenvolver uma espiritualidade autêntica, combatendo a tirania e a ignorância, e velando pela justiça e pela consciência das populações.

Por serem reformadores sociais e religiosos, ungidos ou sagrados, confundiam-se, por vezes, com os próprios Messias por eles anunciados. Aliás, os Hebreus chamavam igualmente de Messias aos seus sacerdotes, profetas e reis... É também nesse sentido, como profeta ou yokanan, que interpreto a designação de Prisciliano como o “Messias Galego”.

Como é fácil de verificar pela história do mundo, o poder instituído quase nunca reconheceu, ou conviveu de forma pacífica com os yokanans, procurando ignorá-los ou silenciá-los. O método radical mais utilizado sempre foi o de lhes cortar a cabeça – ou não é na garganta que se situa o órgão da fala, que anuncia precisamente o que esses poderes não querem ouvir?...

Pois foi também assim que a Instituição Católica romana silenciou a voz de Prisciliano.


TREVAS

No cadafalso de Tréveris, a Igreja (de braço dado com o poder político e militar, casamento que se tem repetido vezes sem conta, ao longo dos séculos, com fartos proveitos para ambos os lados) dera provas da mais perigosa intolerância, convertendo-se no símbolo maior do despotismo fundamentalista.

Por fim, conseguira ganhar a Prisciliano a batalha da vida física mas perdera, irremediavelmente, a da imortalidade.

Depois da execução de Prisciliano, a fúria eclesiástica virou-se para os demais discípulos e seguidores, sobretudo nas dioceses da Lusitânia e da Galiza, obrigando-as, pela força das armas, a voltar à obediência ortodoxa. Dois comissários de Máximo, sob a supervisão do bispo Itácio, foram especialmente destacados para desmascarar e processar os seguidores do galego e espalharam o terror por toda a Hispania.

No entanto, o imperador Máximo só sobreviveu três anos à execução de Prisciliano e o seu destino foi exactamente o mesmo: acabou decapitado por Teodósio, vindo do Oriente para reunificar o Império.

 Logo após à morte de Máximo, o bispo Martinho de Tours, que havia defendido Prisciliano no julgamento de Tréveris, conseguiu atenuar o movimento repressivo e estabelecer, ainda que momentaneamente, alguma justiça. Numa acção concertada com outros bispos peninsulares fez com que Itácio e Hidácio, os grandes adversários de Prisciliano, fossem excomungados, destituídos e desterrados, por conduta pouco cristã ao longo de todo o processo e por haverem promulgado a pena de morte.

O facto de Martinho haver tomado a defesa de Prisciliano e, depois, dos priscilianistas, poderá explicar a razão de, até aos dias de hoje, ser um dos santos mais venerados pelas populações do oeste peninsular, com inúmeros lugares de culto na Galiza e em Portugal.

Mais tarde, a Igreja retomou a perseguição aos priscilianistas, ainda que nunca tenha conseguido acabar de vez com a heresia nem libertar-se do “pesadelo” que, para si, constituía a sua memória.

 Não cabe dúvida de que a Igreja Católica romana seria outra se Prisciliano tivesse levado a cabo a sua reforma, ou se existissem mais Martinhos... Mas, infelizmente, são os Itácios e os Hidácios quem predomina e controla a máquina; e mesmo que alguns acabem afastados, outros foram sempre tomando o seu lugar, com um apetite cada vez mais voraz pelo sangue e pelo poder.


DICTINIO

Para além de Prisciliano, considero que a outra grande figura desta saga é o também galego Dictinio, que se transformou no herdeiro espiritual do heresiarca.

Dictinio era filho do bispo de Astorga, Simpósio, sendo ambos, pai e filho, discípulos de Prisciliano. Foi ele quem se deslocou a Tréveris para resgatar os corpos dos mártires e os trouxe de volta à Galiza.

Para além dessa viagem decisiva para a instauração do futuro Caminho de Santiago, Dictinio promoveu um priscilianismo vivo e activo, tendo escrito um opúsculo intitulado "Libra" que, a avaliar pelas críticas que gerou, fez furor no seu tempo. Infelizmente, não se conservou nenhum exemplar; sabemos apenas da sua existência pelas referências negativas que Santo Agostinho lhe dedica na sua obra "Contra Mendatium" (Contra a Mentira).

Ali refere que os priscilianistas juravam a inviolabilidade dos segredos do grupo, usavam santo-e-senha para se reconhecerem e consideravam lícito mentir para proteger a sua existência. Mas muito antes, Clemente de Alexandria, canonizado como santo pela Igreja, não aconselhava os seus alunos a negar a existência do Evangelho Secreto de Marcos “mesmo sob juramento”?... E não dizia o santo que “nem todas as coisas verdadeiras devem ser ditas a todos os homens”, acrescentando que “a luz da verdade deve ser escondida daqueles que são mentalmente cegos”?...

Portanto, a ética proposta por Dictinio não era nova e baseava-se no antigo princípio de que a verdade só devia revelar-se a quem de antemão a aceitava... Não só era hermetismo puro, como uma regra de sobrevivência e de vida em clandestinidade. A lição da morte de Prisciliano havia sido aprendida...

Mais tarde, Dictinio foi consagrado como bispo, vindo a ocupar a sede episcopal de Astorga, passando seu pai, Simpósio, para a de Ourense. No concílio de Toledo, celebrado no ano 400, Dictinio e Simpósio abjuraram a heresia priscilianista, que voltara a ser fortemente perseguida e, por isso, se ocultava já em sociedades secretas espalhadas por toda a Galiza.

Mas Dictinio, nos seus escritos anteriores, não referira o valor da simulação, afirmando ser lícita a mentira para proteger os segredos e a existência do grupo?... Mesmo assim, ou talvez por isso, Dictinio de Astorga acabou por ser canonizado pela Igreja como santo.

Mas regressemos ao tempo em que Dictinio se dirigiu a Tréveris.


GALIZA

Morto Máximo a mando de Teodósio, que se transformou no imperador romano do Oriente e do Ocidente, o jovem Dictinio, junto com outros discípulos galegos de Prisciliano, deslocaram-se a Tréveris solicitando os corpos dos executados, o que lhes foi concedido.

A volta à Galiza terá sido por mar, tal como depois chegará, supostamente, o corpo de Santiago.
Toda a Galiza recebeu com extremo respeito e veneração aqueles restos mortais que, depois, foram sepultados na zona de Padrón, terra natal de Prisciliano. O seu túmulo tornou-se, de imediato, em objecto de culto e meta de peregrinação.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Sulpicio Severo, ao escrever que "morto Prisciliano, a heresia que irrompera por sua culpa, fortaleceu-se mais e propagou-se amplamente. Os seus seguidores, que antes já o haviam honrado como santo, começaram a render-lhe culto, como mártir. E mais ainda, jurar por Prisciliano considerava-se como o juramento supremo."

Portanto, a morte de Prisciliano não impediu que amainassem as ondas de priscilianismo que varriam a Península Ibérica. A Igreja não tardou em reagir com nova repressão, que fez os priscilianistas ocultarem as suas crenças e também, com toda a probabilidade, fazerem desaparecer o túmulo do "herege"... Inúmeros seguidores fecharam-se, então, em associações secretas, iniciadas, muito possivelmente, por Dictinio, e sediadas maioritariamente na Galiza, o seu habitat natural.

A Galiza, ao contrário das aparências "religiosamente corretas", sempre foi uma terra rebelde para com Roma, precisamente pela sua natureza mágica e espiritual. Daí também o obstinado empenho da Igreja romana em cristianizar as suas tradições e em tomar a Galiza como sua, tentando controlar a energia proveniente do "vulcão" espiritual de Santiago e do respectivo Caminho... Mas é um facto que, ao longo do tempo e por debaixo das tais aparências, uma boa parte do clero galego sempre manteve secretamente vivo, em igrejas e mosteiros espalhados por toda a Galiza, o cristianismo gnóstico-druídico de Prisciliano.

Tanto assim que, três séculos decorridos sobre a execução de Tréveris, subiram à tona alguns vestígios daquela corrente subterrânea: no IV Concílio de Toledo, no ano de 683, clérigos galegos voltavam a ser acusados de priscilianismo!...E assim por diante, ao longo dos séculos vindouros, sendo minha convicção de que, por mais perseguida que tivesse sido, a corrente priscilianista sempre continuou a fluir e se manteve bem viva até aos nossos dias. Por isso, a Galiza de hoje resplandece de Mistério e as flores da mais elevada espiritualidade bordejam o seu Caminho.

Mas foi no longínquo ano de 813 que ocorreu o evento que levaria Prisciliano à imortalidade: o bispo de Iria Flávia, de nome Teodomiro, anunciou a toda a cristandade a descoberta do túmulo do apóstolo Santiago...


LENDA

Conta-se que o corpo decapitado de Santiago foi depositado numa barca que, desde a Palestina atravessou o mar Mediterrâneo e bordejou toda a costa atlântica portuguesa, indo encontrar a foz do rio Ulla, que subiu até Iria Flavia ou Padrón, na Galiza. Simbolicamente, a barca de pedra representa um túmulo, ou melhor, uma urna, ali chegada por mar...

Depois, a lenda diz que se passaram vários séculos até o túmulo, entretanto perdido, ser descoberto pelo pastor Pelágio (noutra versão, Pelágio era um monge bretão) que logo avisou o bispo de Iria Flavia, Teodomiro. Tal sucedeu após uma misteriosa estrela assinalar o lugar preciso do campo onde o túmulo se encontrava. Daí, também, o surgimento da futura metrópole denominada Compostela, ou "Campus Stellae", o "Campo da Estrela". No entanto, Compostela também pode significar "enterramento", ao provir do latim "compositum". Creio que as duas hipóteses estão correctas e convergem para o mesmo fim.

Existem vestígios débeis e historicamente discutíveis da suposta passagem do apóstolo Santiago pela Ibéria, onde terá vindo espalhar a palavra do evangelho, mas sabe-se (e isso já é um dado histórico) que acabou a sua vida na Palestina. De facto, no século I, Santiago foi preso e sentenciado à morte por decapitação, em Jerusalém.

Portanto, é legítima a pergunta: o que fazia o corpo de Santiago, morto há mais de oitocentos anos, em tão longínquas paragens, na terra natal de Prisciliano?

Prisciliano estava igualmente morto. Mas, mesmo que apenas se note em mudanças abruptas da História, os Messias têm o estranho hábito de ressuscitar...


CAMINHO

Considero muito provável que os dois personagens envolvidos no episódio que assinalou a descoberta do túmulo de Santiago, isto é, o pastor ou ermita Pelágio e o bispo Teodomiro, tenham sido priscilianistas convictos.

Vimos anteriormente que a Galiza nunca havia deixado de ser ocultamente priscilianista e os responsáveis pela continuidade da heresia sabiam, com toda a certeza, onde se encontrava o corpo de Prisciliano, oportunamente desaparecido aquando da perseguição aos discípulos e seguidores. Assim que, de modo absolutamente genial, terão levado toda a cristandade a reverenciar o túmulo de Prisciliano, passando, simplesmente, a chamá-lo... "Santiago".

Era a resposta inspiradíssima dos discípulos de Prisciliano à Instituição que o havia decapitado por heresia, bruxaria e obscenidade e que, a partir daí, se ajoelhava perante as suas relíquias...

Mas como terá sido possível tamanha mistificação sem que a toda poderosa Igreja Romana desse conta?! Foi possível porque, apesar de tudo, lhe convinha...

A descoberta do túmulo do "apóstolo Santiago" ocorreu num momento extremamente oportuno para a expansão da Igreja imperial, uma vez que se havia iniciado na Ibéria a reconquista cristã face à ocupação muçulmana. Ora fixando na Galiza uma fortíssima meta de peregrinação, estava a acelerar-se enormemente aquela reconquista. Por outro lado, também permitia que a Instituição romana cristianizasse, finalmente, o ancestral e importantíssimo Caminho das Estrelas, absolutamente pagão e mágico, que não lhe pertencia.

Portanto, sendo os priscilianistas a imporem o corpo do seu mestre, ou sendo a Igreja a inventar a lenda, o certo é que ambas as hipóteses levavam, na prática, a um aumento significativo do poder e do provento da Instituição – e a Igreja também nunca deitou fora um bom negócio...

 Mas não deixa de ser irónico constatar que o traçado de peregrinação cristã mais conhecido do mundo assenta, afinal, num ancestral Caminho pagão e que esse Caminho conduz, com fortíssima probabilidade, ao túmulo daquele que a Igreja perseguiu e executou sem piedade, ainda que, agora, venere piedosamente as suas relíquias...

Essas relíquias repousam na cripta da catedral de Santiago de Compostela.

 Claro que não considero determinante saber, ao certo, quem se encontra no "túmulo do apóstolo"; aliás, tenho a certeza de que nem Prisciliano, nem Santiago se envolvem na polémica do "quem é quem", embora a verdade deva ser conhecida e retiradas as respectivas ilações. O importante é perceber que o Caminho de Consciência de Santiago poderá ser uma verdadeira e quiçá, derradeira, oportunidade para o homem comum dos nossos dias, que vive condicionado pelo intelecto e tristemente encarcerado pela religião - uma oportunidade de encontro consigo mesmo, de libertação e de iniciação espiritual.

 Percorrer esse Caminho, com consciência, será ir ao encontro da divindade por dentro de cada um, reconhecendo e vivenciando o mistério do Cristo interno. Exactamente como também escreveu S. Paulo, o gnóstico.

Prisciliano, um outro gnóstico, ensinou que o Portal do Conhecimento ou da Gnose se encontra no interior de cada ser humano e que, por isso, a respectiva Iniciação-Revelação-Redenção depende exclusivamente de uma chave interna, individual, que também poderá ser encontrada seguindo as referências de um caminho exterior iniciático.

E quem disse que aquele percurso de fora teria que ser explorado, em exclusivo, por uma instituição supostamente intermediária?... A própria instituição, claro está! Mas os verdadeiros caminhos iniciáticos, como o de Santiago, sempre se mostraram rebeldes e incontroláveis por qualquer tutela humana. O espírito de Prisciliano veio a converter-se no seu pólo central, como farol de um caminho de liberdade, onde cada peregrino poderá vivenciar a sua gnose.

Deste modo, a ressurreição de Prisciliano não corresponde, evidentemente, ao ressurgir do corpo decapitado no século IV, mas sim do seu pensamento e dos seus valores, que agora regressam, em força, à pauta do mundo. E com o seu retorno poderá também regressar o sonho de liberdade, o enamoramento pela vida e a consequente vontade de rotura psicológica com os padrões do sistema totalitário e controlador de sempre, provocando a maior de todas as revoluções: a da consciência...

Esse poder libertador encontra-se disponível para quem fizer o Caminho de Santiago por dentro de si mesmo, como leito para aquela corrente renovadora que derruba os diques do pensamento artificial forâneo, limpa mentes e corações e faz recomeçar tudo de novo... Trata-se, portanto, de um impulso extraordinário, contínuo e eficaz para que cada um busque e vivencie a sua própria gnose!

Ou seja, dito muito clara e simplesmente, Prisciliano ressuscitado poderá ser qualquer de nós...