23 de set. de 2011

O PÁSSARO SOLITÁRIO ("Prisciliano Ressuscitado" - Capítulo 4)




















"As condições de um pássaro solitário são cinco:

Primeiro, que voe ao ponto mais alto;
Segundo, que não anseie por companhia, nem a da sua própria espécie;
Terceiro, que dirija o seu bico para os céus;

Quarto, que não tenha uma cor definida;  
Quinto, que tenha um canto muito suave."

S. Juan de la Cruz, "Dichos de Luz y Amor"



Tenho para mim que Prisciliano terminou os seus dias na terra como um pássaro solitário.

E assim o creio, independentemente  do número dos seus seguidores, que eram cada vez mais numerosos e dedicados, ou de estar rodeado, até ao fim, pelos discípulos, alguns dos quais o acompanharam, inclusive, no cadafalso. Refiro-me ao isolamento de Prisciliano no sentido mais profundo das palavras de S. João da Cruz, que expressam a solidão nos Mistérios do Conhecimento.

Quando a Igreja Católica, no século IV, cortou a cabeça de Prisciliano, libertou-o por completo dos últimos resíduos da forma humana, permitindo que as suas asas iniciáticas se abrissem e se alongassem pelo espaço, magníficas e portentosas...

E que, assim, transportassem a sua mensagem até aos nossos dias.

Toda a vida externa de Prisciliano foi a antítese do isolamento e da solidão. Proveniente de uma família nobre e influente, que lhe permitiu a formação adequada para enquadrar e desenvolver o seu extraordinário carisma, granjeou, desde cedo, inúmeros admiradores e um número crescente de seguidores - assim como de inimigos -, em todas as camadas sociais e religiosas do seu tempo.

Amado ou odiado, Prisciliano não passava despercebido e, assim sendo, dificilmente se poderia isolar. Mesmo quando se retirava para os montes e bosques da Galiza ou da Lusitânia, que amava mais do que os salões ou as igrejas, também não o fazia em solitário, porque era seguido pelos seus discípulos e, porventura, por uma mulher, sua companheira de vida, que alguns autores identificam como Prócula.

No entanto, apesar do incessante caudal humano à sua volta, ou para além dele, creio reconhecer em Prisciliano o pássaro solitário descrito por S. João da Cruz. Isto porque a solidão em causa respeita unicamente à alma e nada tem a ver com o universo de fora, por mais povoado que seja.

Dizem os Tratados respectivos que, quando o ser humano inicia um caminho interior, em busca do espírito, deixa para trás a sua vida ordinária, comum e trivial, como a da maior parte dos seus semelhantes. Não importa se essa vida era boa ou má em termos de riqueza ou posição social, porque aquilo que vai abandonar, para sempre, é a sua própria descrição ou concepção do mundo, isto é, os seus códigos existenciais, com todas as referências que o faziam sentir-se seguro e estável, porque acompanhado dos seus iguais.

Para substituir aquela descrição socialmente imposta por uma outra mais verdadeira, a partir da sua própria experiência interna, só lhe resta aventurar-se na solidão lancinante do desconhecido, onde se encontra o espírito.

Esse caminho de descoberta espiritual não é um passeio pelo "jardim das delícias", repleto de paz e amor virtuais, e com música new age" de fundo, como pretendem alguns, mas sim um percurso extremamente duro e solitário; certamente que também aterrador, em múltiplas ocasiões, uma vez que, por diante, se encontra o desconhecido absoluto.  Para se obter uma pálida noção de quão assustador poderá ser esse confronto, basta ler algumas passagens da Bíblia relatando o terror paralizante que envolveu inúmeras personagens conhecidas, desde Moisés a S.Paulo, quando se viram face a face com o Mistério...

Portanto, ousar entrar e prosseguir no caminho do espírito, exige preparação, determinação e bravura! É um facto que a consciência almejada não chega nunca como uma oferta de bandeja; é preciso lutar e trabalhar muito para a alcançar. Por isso, noutras abordagens desta questão, como a do xamã Juan Matus, descrita por Carlos Castaneda, aqueles que ousam empreender esse caminho são chamados, muito apropriadamente, de "guerreiros do espírito".

Fernando Pessoa, seguramente um outro pássaro solitário, conhecia muito bem as agruras daquele caminho, a avaliar por esta descrição: "Já sei o bastante das ciências ocultas para reconhecer que estão sendo acordados em mim os sentidos chamados superiores para um fim qualquer, que o Mestre desconhecido, que assim me vai iniciando, ao impôr-me uma existência superior, me vai dando um sofrimento muito maior do que até aqui tenho tido, e aquele desgosto profundo de tudo que vem com a aquisição destas altas faculdades. Além disso, já o próximo alvorecer dessas faculdades é acompanhado duma misteriosa sensação de isolamento e de abandono que enche de amargura até ao fundo da alma..."

Por sua vez, o referido Juan Matus acrescenta o seguinte: "Um guerreiro já não pode chorar, e a sua única expressão de angústia é um estremecimento que lhe chega desde o mais profundo do universo. É como se uma das emanações da Águia ( nome simbólico do poder que governa os destinos dos seres viventes) estivesse feita de pura angústia e, quando golpeia o guerreiro, o seu estremecimento é infinito."

Apesar destas descrições concludentes, não queria deixar passar a ideia de que o caminho do espírito é algo demasiado grave e pesado, angustiante e perigoso... Na verdade, acredito que é muito mais angustiante e perigoso do que alguma vez poderia descrevê-lo, mas isso não significa que o guerreiro-caminhante o percorra de ânimo triste ou esmagado pelo medo; essa atitude crispada e contraída vai tornar dolorosamente rígido e inútil cada passo... Pelo contrário, fazendo da impecabilidade a única arma, como  assinala o personagem Juan Matus, o guerreiro liberta-se do peso de todas as importâncias e de todos os conceitos, incluindo os do êxito ou do fracasso, de vitória ou de derrota, e dedica-se, somente, a deixar fluir o seu espírito livre e claro. E enquanto luta ou caminha, não se esquece nunca de rir de si mesmo...

Derrubando ou desmontando as armadilhas emocionais e mentais, entramos no mais puro Zen (e, no meu entender, Fernando Pessoa, através do seu heterónimo Alberto Caeiro, bem como Juan Matus, seja ele quem for, são, também, autênticos mestres Zen...), prescrevendo o humor como expressão do amor, tornando o riso (sobretudo quando é de si próprio) no traço que sublinha a impecabilidade e transforma o guerreiro-caminhante num ser livre, leve e fluido. Desse modo, se poderá equilibrar e temperar a angústia e o pavor do caminho e, vencidos os fantasmas aterrorizantes, desfrutar com a alegria mais pura das descobertas espirituais.

Asseguram as escrituras sagradas que os caminhos espirituais restituem ao ser humano a identidade e o conduzem à sua verdadeira morada intemporal. Ou seja, será como um regresso a casa, depois da descida aos infernos, isto é, aos planos mais densos e inferiores da matéria. Por isso, abrir passo nesses planos é uma luta incessante, tremenda e solitária, marcada por sucessivas iniciações.

Imagino que Prisciliano terá sido iniciado em muitos mistérios do Caminho.

Como gnóstico, sabia que esses mistérios começavam pela tomada de consciência de si próprio, ou pelo conhecimento do seu Eu essencial, como chave da iluminação. De facto, como amplamente assinalado no capítulo anterior, os gnósticos não aceitavam uma descrição do mundo e da vida proveniente da tradição religiosa, ou da sociedade em que viviam, excepto enquanto medidas provisórias ("testemunhos meramente humanos", no dizer de Heráclito, isto é, testemunhos em segunda mão...), até descobrirem, por si e em si mesmos, o caminho da verdade espiritual.

Perseguir essa senda de descoberta é, na verdade, uma tarefa árdua e essencialmente solitária. Mas, recordemos as palavras de Jesus no Evangelho de Tomé ( um dos apócrifos preferidos de Prisciliano), em que reconhece e louva aquela mesma solidão: "Abençoados sejam os solitários e os escolhidos, pois eles descobrirão o Reino; dele provêm, e a ele regressarão."

Por isso, quando o ser humano iluminado pela luz de dentro inicia aquele percurso de regresso, torna-se progressivamente mais sábio, porque mais consciente do processo em que está envolvido e, também, extraordinariamente mais forte.

No caso de Prisciliano, penso, inclusive, que só poderá ter sido a força interior, proveniente do seu reencontro com o espírito, que o levou à tremenda insanidade social de, sozinho, desafiar o poderio brutal dos dominadores romanos - isto é, da Igreja Católica, que com o Império já se confundia.

Tal atitude, lembra-me a de um outro pássaro solitário do nosso tempo (apesar de ser, também, um homem de multidões), chamado Mohandas Gandhi, o Mahatma da Índia. De facto, ambos lutaram sozinhos e de mãos nuas, empunhando apenas a arma da sua profunda convicção, contra um Império colossal.

Priciliano, no século IV, enfrentou o Império romano; Gandhi, no século XX, teve que se haver com o Império inglês. O resultado foi diferente, obviamente determinado pela época respectiva (e pela existência, ou não, dos media): Gandhi venceu os britânicos e obteve a independência da Índia; Prisciliano foi executado pelos romanos.

Mas o facto de Prisciliano ter sido morto significa que perdeu o combate?... A verdade é que a sua causa, ao invés de se desfazer, antes se fortaleceu e se imortalizou com o martírio, sendo retomada por Dictinio e outros discípulos, que se encarregaram de a fazer atravessar as épocas. Por isso, em pleno século XXI, um número cada vez maior de pessoas se identifica com o seu pensamento e assume, para si, a luta de Prisciliano.

Ao contrário de Gandhi, Prisciliano não tinha qualquer hipótese de derrubar o Império enquanto estivesse vivo. Mas ao iniciar o seu voo espiritual mais profundo, no cadafalso de Tréveris, adquiriu a força suficiente para vencer o confronto, não importa quanto tempo depois...

Ou seja, o confronto físico directo, do passado, transformou-se numa luta de egrégoras, travada invisivelmente, ao seu próprio nível, mas com reflexos evidentes no plano físico. A egrégora de Prisciliano encontra-se, agora, por detrás de todos os guerreiros-caminhantes que lutam para se libertarem do jugo romano, abrindo caminho a uma nova humanidade e a um novo ciclo da História do Mundo - e a verdade é que não é preciso ser mago ou adivinho para se intuir que o império da Instituição romana tem os dias contados.

Deste modo, o pássaro galego, tornado universal, aguarda a sua hora, nesse outro plano das asas, onde não existe ódio nem espírito de vingança, mas apenas a vontade de cumprir uma Lei que não é deste mundo, mas que regula este mundo. O seu canto suave é um chamamento contínuo para a liberdade, que ressoa aos ouvidos de quem o pode ouvir.

É certo que este chamamento ecoa por toda a Terra, mas torna-se especialmente audível nos montes e rias da Galiza, que já haviam escutado Prisciliano e transmitido a sua mensagem primordial. Os grandes carvalhos baloiçam suavemente com esse canto e com o vento que o transporta, e as ribeiras de águas cristalinas acrescentam-lhe a sua própria voz. As estrelas juntam-se ao coro, servindo-se do firmamento por cima do Caminho como caixa de ressonância, incitando os peregrinos a acertarem o passo por aquele imenso clamor de liberdade - é um canto que responde a todas as ânsias profundas de realização plena do ser humano, deixando antever uma mudança redentora e renovadora da face da Terra.

O Caminho de Compostela é o mote para um percurso interno e, por isso, com maior ou menor dificuldade, poderá sempre ser acedido e percorrido por dentro de cada um, independentemente da situação geográfica externa. No entanto, a Galiza de Prisciliano, ao facilitar um alinhamento que conduz à percepção, e onde, mais nitidamente, se pode ouvir o seu canto de liberdade, constitui-se como uma importante mais-valia para se entenderem e cumprirem todas as propostas do Caminho.

Por isso, com a Compostela das suas vidas à vista, seja ela qual for, todos aqueles que percorrem o Caminho como guerreiros são, agora, Prisciliano!