1 de jun. de 2018

UMA ALVORADA DE NÉVOA


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      Mui grandes coisas veremos
       Que nunca vimos nem lemos,
       Ouvimos, nem ouviremos...

                                  Bandarra




Fernando Pessoa foi daqueles que ousou sonhar desperto com aquela alvorada tão especial de névoa, utilizando o lado fantástico e maravilhoso da lenda do rei Sebastião de Portugal para transmitir o seu sonho e tornar acessível o conceito. Por isso, o seu poema dedicado a D. Sebastião termina com o mais sublime “golpe de asa” do sebastianismo. Recordemo-lo:

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.

Foram esses versos que transformaram uma longa e absurda espera, sem sentido algum fora do seu tempo real, numa doutrina transcendente e em perfeito acordo com as premissas inerentes à fundação da pátria portuguesa e à sua missão física e espiritual no mundo. Ou seja, transformaram um sebastianismo humano e político, numa demanda espiritual que utilizava a figura do rei derrotado em Alcácer-Quibir como símbolo popular para um outro imponderável regresso: o Segundo Advento do Rei dos Reis, o Cristo Redentor Encoberto.

Acerca disso, não deixam quaisquer dúvidas estes versos do poema dedicado ao Terceiro Aviso desse retorno:

Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?

Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?

E também estes outros, dirigidos ao Encoberto, que compara à Rosa da Cruz:

Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa que é o Cristo.

Esta nova concepção do sebastianismo transformava, realmente, as Trovas do Bandarra na Bíblia portuguesa, mas não de uma forma cega e obscura, e acabava de vez com as interpretações sucessivamente emendadas de António Vieira sobre a correlação humana do Encoberto, devolvendo-lhe a sua verdadeira dimensão espiritual, a única que realmente conta, e permitindo ao pregador jesuíta voar àquelas alturas onde melhor sabia estar.

No entanto, algo persistiu da interpretação antiga. E se o Encoberto deixou de ser associado a um vulto da casa real portuguesa, o mesmo não se passou com o próprio Portugal, relativamente ao seu papel de palco do Império. Nesse aspecto não existiu qualquer sublimação e, passados séculos, Portugal continua a ser, para muitos portugueses, o centro indiscutível de todas as operações relativas à implantação do Quinto Império no mundo – em solo nacional, claro.

Isto significa que o proselitismo aplicado anteriormente à figura de D. Sebastião e ao seu regresso físico, acabou por transitar para o próprio país, e Portugal passou a ser, ele mesmo, o Desejado... Deste modo, muitos acreditam que a mítica manhã de nevoeiro, na qual surgirá o Encoberto, somente poderá suceder em Portugal.

Claro que a temática se inscreve, obviamente, naquela suprema imprevisibilidade das coisas divinas, mas é minha convicção profunda que nós, portugueses, teremos que nos abrir a outras hipóteses; tal como já percebemos que o Encoberto não é D. Sebastião, mas sim o seu sonho, do mesmo modo Portugal poderá não ser o palco escolhido para aquela manifestação, mas o agente desse sonho. Isto é, a sua realização objetiva poderá não ocorrer em Portugal, ainda que os empreendedores da sua implantação no mundo venham a ser, de fato, os portugueses.

Não creio que esta minha convicção seja um crime de lesa pátria. Pelo contrário, considero um ato de amor por Portugal o fato de pensar em abrir novos caminhos para a realização da sua missão física e espiritual no mundo, ao invés de permanecer cristalizado numa única ideia, como sucedeu com os primeiros sebastianistas. Por isso, creio que este outro conceito alargado e abrangente do primeiro palco do Império deveria ser séria e devidamente considerado, para que Portugal possa cumprir o seu papel sem tropeçar uma e outra vez na mesma pedra, nem confundir um amontoado de teias de aranha com o nevoeiro da sonhada antemanhã.


                                 ***


Na cena final do filme Mensagem, a figura de Fernando Pessoa, que acabara de morrer no hospital, é um vulto solitário que percorre a madrugada no Cais das Colunas, em Lisboa, até subir a um barco que o leva mar e noite adentro. Para onde vai não é explícito. Talvez para aquele mesmo lugar, algures no meio do oceano, para onde, séculos antes, foi levado o rei Artur, ferido de morte e que, na saga inglesa, é a Ilha de Avalon.

Mas que lugar ou Ilha misteriosa será aquela que aparece e desaparece no meio do Atlântico, por fora de toda a cartografia ou geografia conhecidas e para onde vão os heróis ou os poetas que os cantam e anunciam? Possivelmente, o mesmo donde virá o supremo Redentor, não apenas daquelas mitologias nacionais, mas do mundo inteiro.

Dirigindo-se aos portugueses, o Bandarra afirma claramente que “ lá da Ilha encoberta vos há-de vir este Rei”... Este Rei, como se viu, é o Cristo-Rei-Imperador, e as Trovas anunciam a sua vinda ou regresso ao mundo dos homens.

Penso que na simbologia em questão, a Ilha Encoberta é uma outra forma de designar a misteriosa Agartha, um mundo desconhecido que alguns situam no interior oco do nosso planeta e onde habita uma elite espiritual.

Esse mundo é referido por autores como Júlio Verne, Ferdinand Ossendowski e Saint Yves d’Alveydre ou, mais recentemente, por Henrique José de Souza e Raymond Bernard. As “teorias da conspiração” encarregaram-se de o banalizar e, até, de o denegrir, fazendo-o, igualmente, sede de forças tenebrosas, responsáveis pelo estado deplorável do nosso mundo.

Segundo os autores citados, a Agartha luta pelo objetivo contrário, ou seja, pela redenção do homem e do planeta. Será, então, dela, que surgirá o Cavaleiro Encoberto, o Rei-Imperador que derrotará aquelas e outras forças perversas e sombrias, bem como aos seus aliados humanos, dando início a um novo ciclo no mundo. O Apocalipse diz o mesmo.

Curiosamente, as tradições da Lusitânia e da Hibernia, a atual Irlanda, com inúmeros pontos comuns devido às suas relações mutuas desde as épocas mais recuadas, coincidem nas referências a uma Ilha encantada, situada a Ocidente, que foi denominada “Brasil”.

No fundo, essa Ilha encantada é a mesma a que se refere José Régio (“Numa Ilha ignota é que ele agora vivia: o Encoberto e o Desejado de sempre...”), assim como por Teófilo Braga, ao relatar que “D. Sebastião está na ilha encoberta donde há-de vir um dia de cerração, montado num cavalo branco; esta lenda do fantasma das batalhas acha-se referida ao combate de Maratona por Heródoto e Pausânias, e em Espanha acha-se personificada por São Milan e em São Tiago. Nas lendas de Carlos Magno, o grande monarca ressuscitou para comandar a primeira Cruzada (...); e em Hesse e na Baviera conta-se que Carlos Magno ressuscitará para engrandecer a Alemanha, vencer os maus e reinar sobre o mundo regenerado. É também a forma da nossa lenda do Quinto Império do Mundo, fundado pelo rei D. Sebastião quando vier da ilha encantada. ” 

E ainda:

“As guerras de D. João I contra Castela e no norte de África acordaram a credulidade popular, generalizando as lendas da ilha encantada do rei Artur e das viagens maravilhosas de Sam Brendam, citadas pelo cronista Azurara. Mais tarde, quando fomos com Carlos V à expedição de Tunis, contra barba Roxa, quando se deu a extinção da nacionalidade portuguesa em 1580, quando se conquistou a autonomia nacional em 1640, essa mesma tradição de um salvador (um “soter” da época alexandrina) toma diferentes formas populares, a começar nas Trovas do Bandarra até às interpretações do Encoberto pelo padre António Vieira. ”

Lúcio de Azevedo chama a atenção de que “não deve ser muito anterior à Restauração a ideia da Ilha Encoberta, onde D. Sebastião se encontrava, D. João de Castro não alude a ela. Nesse tempo o monarca dos vaticínios vivia ainda a vida real. Esperavam-no de África, pelo estreito de Gibraltar. Os textos diziam que havia de vir de longes mares, em um “cavalo de madeira...”

De fato, os primeiros sebastianistas não aludem a essa Ilha mas, no entanto, a expedição de S. Brandão que a terá avistado, ocorreu no ano 565, um milénio antes do nascimento do Desejado... E digamos que, por um capricho do destino, poderá muito bem ter sido essa Ilha, mesmo que imaginária, que deu nome ao vasto território sul americano descoberto por Pedro Alvares Cabral em 1500, e que, a meu ver, se acha indissoluvelmente ligado ao mistério do Encoberto e à génese do Quinto Império.

Seja ou não assim, trata-se de uma ilha milagrosa, morada de deuses e heróis, chamada “Brasil” (muito antes de ser descoberto o atual Brasil) e que foi depois associada à Ilha do Encoberto. Mais uma profecia anónima sobre o nome do lugar ou do país que primeiro assistirá à manifestação futura do Encoberto?... Quanto a mim, não há qualquer contradição com os vaticínios que referem um palco lusitano.

Vejamos porquê:
Um Império cultural é aquele cujo ponto de apoio é, obviamente, a cultura. E, para transmitir e desenvolver conjuntamente uma cultura, será necessária uma língua comum. Que afinal existe, muito para além das fronteiras físicas de Portugal, não somente em vários países africanos, como no sul da Índia, em Macau, na China, na Indonésia, em Timor, mas principalmente no Brasil, o país continental onde mais se fala a língua portuguesa e o que mais naturalmente se aproxima da alma lusitana.

António Quadros define assim a preparação do sonho português:

”O império sonhado por Fernando Pessoa não é um Império territorial, um Império das armas e da força. António Vieira, quando Portugal dominava vastos territórios desde o Brasil e a África até à India, quando se dedicava especialmente à formação e consolidação do Brasil português, a Nova Lusitânia, ainda acreditou em tal vasta base de apoio. Mas Fernando pessoa sublimou a ideia seiscentista de Vieira: havendo 3 imperialismos: de domínio, de expansão e de cultura, é este o do Portugal do futuro. E temos condições para tal: “uma língua apta, rica, gramaticalmente completa, fortemente nacional; a existência de homens de génio literário; um passado literariamente forte e uma tradição de descoberta e criatividade. ” Portugal surgiu definitivamente na civilização europeia, escreveu, pelas descobertas, e as descobertas são um acto cultural; mais que um acto cultural são um acto de criação civilizacional. Criámos o mundo moderno; porém a nossa primeira descoberta foi descobrir a ideia da descoberta. ”

Continuando a desenvolver a ideia da importância fundamental da língua, continua Fernando Pessoa:

“Fará paz em todo o mundo”, diz o Bandarra de D. Sebastião. E a paz em todo o Mundo, só numa fraternidade por enquanto imprevisível, mas que por certo exigirá um meio de comunicação igual – uma língua. Que mal haverá em nos prepararmos para este domínio cultural, ainda que não venhamos a tê-lo? Não queremos derramar uma gota de sangue; e ao mesmo tempo não nos furtarmos à ânsia humana de domínio. Não caímos, portanto, na esterilidade do universalismo humanitário, mas também não caímos na brutalidade do nacionalismo extra cultural. Queremos impor uma língua, que não uma força; não hostilizamos raça nenhuma, de nenhuma cor, como em geral não temos hostilizado, porque podemos ter sido por vezes bárbaros, como todos os imperiais de conquista, mas nem fomos mais, senão menos, que outros, nem nos pode ser contado como defeito que excluíssemos os de outra cor de nossa casa ou da nossa mesa. Assim nos nossa índole prepara para aquela fraternidade universal que a teosofia anteprega, e que é, de há tanto tempo, a doutrina social íntima dos Rosa-Cruz.

Se falharmos, sempre conseguimos alguma cousa – aperfeiçoar a língua. Na pior hipótese, sempre ficamos escrevendo melhor. Servimos imediatamente a cultura geral e a civilização: quando mais não fizéssemos, não haveríamos que acusar-nos de ter pecado.

É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos gramáticos dura mais e vai mais longe que o dos generais. É um imperialismo de poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo imperialismo ridículo. O imperialismo dos poetas dura e domina; o dos políticos passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante. ”


O poeta e genial pensador do Quinto Império e  grande defensor da ideia de um Portugal a ele associado, não tinha palas no olhar, nem vendas na mente. Por isso, quando Fernando Pessoa fala em Portugal, tanto pode estar a falar na metrópole europeia como no “Portugal sul-americano”, que, aliás, poderá muito bem ser o Portugal do futuro, apesar de agora se chamar Brasil...

O destino deste corpo único luso-americano é apontado assim pelo Poeta, num texto pouco conhecido do seu espólio:

“Em primeiro lugar, (...) Portugal não é propriamente um paiz europeu: mais rigorosamente se lhe poderá chamar um paiz atlântico – o paiz atlântico por excelência.

 (...) Além disso, Portugal, neste caso, quere dizer o Brasil também. Como o (V) Império, neste sistema, é espiritual, não há mister que seja imposto ou construído por uma só nação: pode sê-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam a mesma, que o são se falarem a mesma língua. ”

Estas palavras de Fernando Pessoa que, de fato, é reconhecido como o mais acérrimo (mas também o mais esclarecido) mentor e zelador do papel de Portugal no teatro do mundo, deveriam ser profundamente meditadas em todo o espaço lusíada, a fim de se erradicar a “febre quinto-imperial-nacionalista” que ainda faz delirar muitos portugueses.

Os mais genuínos buscadores daquela verdade quinto-imperial (ou de qualquer outra), terão que deter, acima de tudo, uma humildade a toda a prova; não poderão jamais ser fanáticos de mente estreita, mas livres pensadores, flexíveis e inteligentes, com um espírito versátil e abrangente, não se aferrando, teimosa e cegamente, a ideias feitas por outros ou a nenhum ensinamento forâneo, mas retirando para si o melhor de todos eles.

Creio que o Quinto Império não poderá acontecer (e começa sempre por se apresentar dentro de cada um) enquanto existir uma qualquer febre dogmática, pois o seu avistamento dependerá de um estado de alma sadio, amplo e abrangente, tão leve e singular quanto pleno de frescura, de consciência e de inovação.

Para que suceda o imprevisível.

Considero que somente assim, sem viseiras, sem dogmas, sem expectativas, será possível algum resultado; ou seja, quando menos o esperarmos, poderemos reconhecer um determinado vulto, cuja silhueta, recortada nas brumas, lembra um cavaleiro em movimento, deixando-nos a tremer de comoção dos pés à cabeça.



E sem sequer darmos conta de que, à nossa volta, clareia uma radiante alvorada de névoa.