Mui grandes
coisas veremos
Que
nunca vimos nem lemos,
Bandarra
Fernando Pessoa foi daqueles que ousou sonhar desperto com aquela alvorada tão especial de névoa, utilizando o lado fantástico e maravilhoso da lenda do rei Sebastião de Portugal para transmitir o seu sonho e tornar acessível o conceito. Por isso, o seu poema dedicado a D. Sebastião termina com o mais sublime “golpe de asa” do sebastianismo. Recordemo-lo:
Que importa o
areal e a morte e a desventura
Se com Deus me
guardei?
É O que eu me
sonhei que eterno dura,
É Esse que
regressarei.
Foram esses versos que transformaram uma longa e
absurda espera, sem sentido algum fora do seu tempo real, numa doutrina
transcendente e em perfeito acordo com as premissas inerentes à fundação da
pátria portuguesa e à sua missão física e espiritual no mundo. Ou seja,
transformaram um sebastianismo humano e político, numa demanda espiritual que
utilizava a figura do rei derrotado em Alcácer-Quibir como símbolo popular para
um outro imponderável regresso: o Segundo Advento do Rei dos Reis, o Cristo
Redentor Encoberto.
Acerca disso, não deixam quaisquer dúvidas estes
versos do poema dedicado ao Terceiro Aviso desse retorno:
Mas quando quererás
voltar?
Quando é o Rei? Quando é
a Hora?
Quando virás a ser o
Cristo
De a quem morreu o falso
Deus,
E a despertar do mal que
existo
A Nova Terra e os Novos
Céus?
E também estes outros, dirigidos ao Encoberto, que
compara à Rosa da Cruz:
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o
Destino,
A Rosa que é o Cristo.
Esta nova concepção do sebastianismo transformava,
realmente, as Trovas do Bandarra na Bíblia portuguesa, mas não de uma forma
cega e obscura, e acabava de vez com as interpretações sucessivamente emendadas
de António Vieira sobre a correlação humana do Encoberto, devolvendo-lhe a sua verdadeira
dimensão espiritual, a única que realmente conta, e permitindo ao pregador
jesuíta voar àquelas alturas onde melhor sabia estar.
No entanto, algo persistiu da interpretação antiga. E
se o Encoberto deixou de ser associado a um vulto da casa real portuguesa, o
mesmo não se passou com o próprio Portugal, relativamente ao seu papel de palco
do Império. Nesse aspecto não existiu qualquer sublimação e, passados séculos,
Portugal continua a ser, para muitos portugueses, o centro indiscutível de
todas as operações relativas à implantação do Quinto Império no mundo – em solo
nacional, claro.
Isto significa que o proselitismo aplicado
anteriormente à figura de D. Sebastião e ao seu regresso físico, acabou por transitar
para o próprio país, e Portugal passou a ser, ele mesmo, o Desejado... Deste
modo, muitos acreditam que a mítica manhã de nevoeiro, na qual surgirá o
Encoberto, somente poderá suceder em Portugal.
Claro que a temática se inscreve, obviamente, naquela
suprema imprevisibilidade das coisas divinas, mas é minha convicção profunda
que nós, portugueses, teremos que nos abrir a outras hipóteses; tal como já
percebemos que o Encoberto não é D. Sebastião, mas sim o seu sonho, do mesmo
modo Portugal poderá não ser o palco escolhido para aquela manifestação, mas o agente desse sonho. Isto é, a sua
realização objetiva poderá não ocorrer em Portugal, ainda que os empreendedores
da sua implantação no mundo venham a ser, de fato, os portugueses.
Não creio que esta minha convicção seja um crime de
lesa pátria. Pelo contrário, considero um ato de amor por Portugal o fato de
pensar em abrir novos caminhos para a realização da sua missão física e
espiritual no mundo, ao invés de permanecer cristalizado numa única ideia, como
sucedeu com os primeiros sebastianistas. Por isso, creio que este outro conceito
alargado e abrangente do primeiro palco do Império deveria ser séria e devidamente
considerado, para que Portugal possa cumprir o seu papel sem tropeçar uma e
outra vez na mesma pedra, nem confundir um amontoado de teias de aranha com o
nevoeiro da sonhada antemanhã.
***
Na cena final do filme Mensagem, a
figura de Fernando Pessoa, que acabara de morrer no hospital, é um vulto solitário
que percorre a madrugada no Cais das Colunas, em Lisboa, até subir a um barco
que o leva mar e noite adentro. Para onde vai não é explícito. Talvez para
aquele mesmo lugar, algures no meio do oceano, para onde, séculos antes, foi
levado o rei Artur, ferido de morte e que, na saga inglesa, é a Ilha de Avalon.
Mas que lugar ou Ilha misteriosa será aquela que
aparece e desaparece no meio do Atlântico, por fora de toda a cartografia ou
geografia conhecidas e para onde vão os heróis ou os poetas que os cantam e
anunciam? Possivelmente, o mesmo donde virá o supremo Redentor, não apenas daquelas
mitologias nacionais, mas do mundo inteiro.
Dirigindo-se aos portugueses, o Bandarra afirma
claramente que “ lá da Ilha encoberta vos há-de vir este Rei”... Este Rei, como
se viu, é o Cristo-Rei-Imperador, e as Trovas anunciam a sua vinda ou regresso
ao mundo dos homens.
Penso que na simbologia em questão, a Ilha Encoberta é
uma outra forma de designar a misteriosa Agartha, um mundo desconhecido que
alguns situam no interior oco do nosso planeta e onde habita uma elite
espiritual.
Esse mundo é referido por autores como Júlio Verne,
Ferdinand Ossendowski e Saint Yves d’Alveydre ou, mais recentemente, por Henrique
José de Souza e Raymond Bernard. As “teorias da conspiração” encarregaram-se de
o banalizar e, até, de o denegrir, fazendo-o, igualmente, sede de forças
tenebrosas, responsáveis pelo estado deplorável do nosso mundo.
Segundo os autores citados, a Agartha luta pelo
objetivo contrário, ou seja, pela redenção do homem e do planeta. Será, então, dela,
que surgirá o Cavaleiro Encoberto, o Rei-Imperador que derrotará aquelas e
outras forças perversas e sombrias, bem como aos seus aliados humanos, dando
início a um novo ciclo no mundo. O Apocalipse diz o mesmo.
Curiosamente, as tradições da Lusitânia e da Hibernia,
a atual Irlanda, com inúmeros pontos comuns devido às suas relações mutuas
desde as épocas mais recuadas, coincidem nas referências a uma Ilha encantada,
situada a Ocidente, que foi denominada “Brasil”.
No fundo, essa Ilha encantada é a mesma a que se
refere José Régio (“Numa Ilha ignota é
que ele agora vivia: o Encoberto e o Desejado de sempre...”), assim como por
Teófilo Braga,
ao relatar que “D. Sebastião está na ilha encoberta
donde há-de vir um dia de cerração, montado num cavalo branco; esta lenda do
fantasma das batalhas acha-se referida ao combate de Maratona por Heródoto e
Pausânias, e em Espanha acha-se personificada por São Milan e em São Tiago. Nas
lendas de Carlos Magno, o grande monarca ressuscitou para comandar a primeira
Cruzada (...); e em Hesse e na Baviera conta-se que Carlos Magno ressuscitará para
engrandecer a Alemanha, vencer os maus e reinar sobre o mundo regenerado. É
também a forma da nossa lenda do Quinto Império do Mundo, fundado pelo rei D. Sebastião
quando vier da ilha encantada. ”
E ainda:
“As guerras de D. João I contra Castela e no norte de
África acordaram a credulidade popular, generalizando as lendas da ilha
encantada do rei Artur e das viagens maravilhosas de Sam Brendam, citadas pelo
cronista Azurara. Mais tarde, quando fomos com Carlos V à expedição de Tunis,
contra barba Roxa, quando se deu a extinção da nacionalidade portuguesa em
1580, quando se conquistou a autonomia nacional em 1640, essa mesma tradição de
um salvador (um “soter” da época alexandrina) toma diferentes formas populares,
a começar nas Trovas do Bandarra até às interpretações do Encoberto pelo padre
António Vieira. ”
Lúcio de Azevedo chama a atenção de que “não deve ser
muito anterior à Restauração a ideia da Ilha Encoberta, onde D. Sebastião se
encontrava, D. João de Castro não alude a ela. Nesse tempo o monarca dos
vaticínios vivia ainda a vida real. Esperavam-no de África, pelo estreito de
Gibraltar. Os textos diziam que havia de vir de longes mares, em um “cavalo de
madeira...”
De fato, os primeiros sebastianistas não aludem a essa
Ilha mas, no entanto, a expedição de S. Brandão que a terá avistado, ocorreu no
ano 565, um milénio antes do nascimento do Desejado... E digamos que, por um
capricho do destino, poderá muito bem ter sido essa Ilha, mesmo que imaginária,
que deu nome ao vasto território sul americano descoberto por Pedro Alvares
Cabral em 1500,
e que, a meu ver, se acha indissoluvelmente ligado ao mistério do Encoberto e à
génese do Quinto Império.
Seja ou não assim, trata-se de uma ilha milagrosa,
morada de deuses e heróis, chamada “Brasil” (muito antes de ser descoberto o atual
Brasil) e que foi depois associada à Ilha do Encoberto. Mais uma profecia
anónima sobre o nome do lugar ou do país que primeiro assistirá à manifestação
futura do Encoberto?... Quanto a mim, não há qualquer contradição com os
vaticínios que referem um palco lusitano.
Vejamos porquê:
Um Império cultural é aquele cujo ponto de apoio é,
obviamente, a cultura. E, para transmitir e desenvolver conjuntamente uma
cultura, será necessária uma língua comum. Que afinal existe, muito para além
das fronteiras físicas de Portugal, não somente em vários países africanos,
como no sul da Índia, em Macau, na China, na Indonésia, em Timor, mas
principalmente no Brasil, o país continental onde mais se fala a língua portuguesa
e o que mais naturalmente se aproxima da alma lusitana.
António Quadros define assim a preparação do sonho
português:
”O império sonhado por Fernando Pessoa não é um
Império territorial, um Império das armas e da força. António Vieira, quando
Portugal dominava vastos territórios desde o Brasil e a África até à India,
quando se dedicava especialmente à formação e consolidação do Brasil português,
a Nova Lusitânia, ainda acreditou em tal vasta base de apoio. Mas Fernando
pessoa sublimou a ideia seiscentista de Vieira: havendo 3 imperialismos: de
domínio, de expansão e de cultura, é este o do Portugal do futuro. E temos
condições para tal: “uma língua apta, rica, gramaticalmente completa,
fortemente nacional; a existência de homens de génio literário; um passado
literariamente forte e uma tradição de descoberta e criatividade. ” Portugal
surgiu definitivamente na civilização europeia, escreveu, pelas descobertas, e
as descobertas são um acto cultural; mais que um acto cultural são um acto de
criação civilizacional. Criámos o mundo moderno; porém a nossa primeira
descoberta foi descobrir a ideia da descoberta. ”
Continuando a desenvolver a ideia da importância fundamental
da língua, continua Fernando Pessoa:
“Fará paz em todo o mundo”, diz o Bandarra de D. Sebastião.
E a paz em todo o Mundo, só numa fraternidade por enquanto imprevisível, mas
que por certo exigirá um meio de comunicação igual – uma língua. Que mal haverá
em nos prepararmos para este domínio cultural, ainda que não venhamos a tê-lo?
Não queremos derramar uma gota de sangue; e ao mesmo tempo não nos furtarmos à
ânsia humana de domínio. Não caímos, portanto, na esterilidade do universalismo
humanitário, mas também não caímos na brutalidade do nacionalismo extra
cultural. Queremos impor uma língua, que não uma força; não hostilizamos raça
nenhuma, de nenhuma cor, como em geral não temos hostilizado, porque podemos
ter sido por vezes bárbaros, como todos os imperiais de conquista, mas nem
fomos mais, senão menos, que outros, nem nos pode ser contado como defeito que
excluíssemos os de outra cor de nossa casa ou da nossa mesa. Assim nos nossa
índole prepara para aquela fraternidade universal que a teosofia anteprega, e
que é, de há tanto tempo, a doutrina social íntima dos Rosa-Cruz.
Se falharmos, sempre conseguimos alguma cousa –
aperfeiçoar a língua. Na pior hipótese, sempre ficamos escrevendo melhor.
Servimos imediatamente a cultura geral e a civilização: quando mais não
fizéssemos, não haveríamos que acusar-nos de ter pecado.
É um imperialismo de gramáticos? O imperialismo dos
gramáticos dura mais e vai mais longe que o dos generais. É um imperialismo de
poetas? Seja. A frase não é ridícula senão para quem defende o antigo
imperialismo ridículo. O imperialismo dos poetas dura e domina; o dos políticos
passa e esquece, se o não lembrar o poeta que os cante. ”
O poeta e genial pensador do Quinto Império e grande defensor da ideia de um Portugal a ele
associado, não tinha palas no olhar, nem vendas na mente. Por isso, quando
Fernando Pessoa fala em Portugal, tanto pode estar a falar na metrópole
europeia como no “Portugal sul-americano”, que, aliás, poderá muito bem ser o
Portugal do futuro, apesar de agora se chamar Brasil...
O destino deste corpo único luso-americano é apontado
assim pelo Poeta, num texto pouco conhecido do seu espólio:
“Em primeiro lugar, (...) Portugal não é propriamente
um paiz europeu: mais rigorosamente se lhe poderá chamar um paiz atlântico – o
paiz atlântico por excelência.
(...) Além
disso, Portugal, neste
caso, quere dizer o Brasil também. Como o (V) Império, neste sistema, é
espiritual, não há mister que seja imposto ou construído por uma só nação: pode
sê-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam a mesma, que o são se
falarem a mesma língua. ”
Estas palavras de Fernando Pessoa que, de fato, é
reconhecido como o mais acérrimo (mas também o mais esclarecido) mentor e
zelador do papel de Portugal no teatro do mundo, deveriam ser profundamente
meditadas em todo o espaço lusíada, a fim de se erradicar a “febre
quinto-imperial-nacionalista” que ainda faz delirar muitos portugueses.
Os mais genuínos buscadores daquela verdade quinto-imperial (ou de qualquer outra), terão que deter, acima de tudo, uma humildade a toda a prova; não poderão jamais ser fanáticos de mente estreita, mas livres pensadores, flexíveis e inteligentes, com um espírito versátil e
abrangente, não se aferrando, teimosa e cegamente, a ideias feitas por outros ou a nenhum ensinamento forâneo, mas retirando para si o melhor de todos eles.
Creio que o Quinto Império não poderá acontecer (e
começa sempre por se apresentar dentro de cada um) enquanto existir uma qualquer
febre dogmática, pois o seu avistamento dependerá de um estado de alma sadio,
amplo e abrangente, tão leve e singular quanto pleno de frescura, de
consciência e de inovação.
Para que suceda o imprevisível.
Considero que somente assim, sem viseiras, sem dogmas, sem expectativas, será possível algum resultado; ou seja, quando menos o esperarmos, poderemos reconhecer um determinado vulto, cuja
silhueta, recortada nas brumas, lembra um cavaleiro em movimento,
deixando-nos a tremer de comoção dos pés à cabeça.
E sem sequer darmos conta de que, à nossa volta,
clareia uma radiante alvorada de névoa.