19 de jul. de 2011

PAIXÃO, MORTE E RESSURREIÇÃO DE PRISCILIANO DE COMPOSTELA ("Prisciliano Ressuscitado" - Capítulo 5)




"Sou um ignorante, no campo da ciência; e, no campo teológico, um herético. Prefiro Platão a Aristóteles e Orígenes a Santo Agostinho, e o galego Prisciliano ao São Tiago de Compostela”
Teixeira de Pascoaes

"Nada ou quase nada se conhecendo a seu respeito, posso imaginar para ele e lho atribuir tudo quanto a mim me apeteceria ser e proclamar."
Agostinho da Silva





Chamaram-lhe o “Messias Galego” mas, contrariando o que dita o conhecido provérbio, Prisciliano conseguiu ser profeta na sua terra...

E assim permanece, resistindo a dezasseis séculos de ignorância, adulteração, censura, escárnio e ao mais completo ostracismo a que a Igreja Católica o relegou; porque, para um número cada vez maior de peregrinos esclarecidos, Prisciliano apresenta-se como a grande figura tutelar daquele percurso iniciático, mundialmente conhecido como o Caminho de Santiago.

Viveu no longínquo século IV, como membro de uma igreja cristã em franca ebulição devido às mudanças subsequentes à conversão do imperador Constantino; chegou a ser bispo de Ávila mas, no ano de 385, foi condenado à morte e decapitado, a mando da mesma Igreja de que fazia parte.

Prisciliano tornou-se, assim, na primeira vítima mortal de uma Igreja Católica que passou de perseguida a perseguidora, e com tal sanha o fez que levou Amniano Marcelino (historiador romano do século IV) a comentar: "nenhuma besta feroz é tão encarniçada pelo homem como o são a maior parte dos cristãos, uns contra os outros."

Para se entender esta aberrante contradição de princípios que veio abrir a porta às execuções "em nome de Deus", ainda em voga noutros credos fundamentalistas, é necessário compreender que, quando Constantino admitiu no Império a fé cristã, a cúpula da Igreja converteu-se, por sua vez, ao poder imperial...

Tão terrivelmente simples quanto isto!

A pureza da Obra original de Jesus foi-se diluindo em novos interesses e acabou substituída pelos tiques e vícios da Instituição nascente, sedenta de poder.

Ou, dito de outra maneira: a Igreja de Deus transformou-se na Igreja de César.

O grande objectivo da hierarquia eclesiástica de então era o de impor o dogma acerca das origens do cristianismo e, simultâneamente, definir os parâmetros da doutrina cristã, como religião oficialmente aprovada. Dela decorria que a Instituição se proclamava a si mesma como única e exclusiva intermediária do homem com Deus... Ora essa condição de privilégio da Igreja conferia de imediato aos líderes católicos um poder acima de todos os poderes temporais do mundo; e, quem se opusesse, teria que enfrentar não só a ira divina como a força brutal do império romano.

Prisciliano tentou contrariar o rumo da Instituição nascente, empenhando-se em fazer reviver os ensinamentos do cristianismo primitivo. Mas a cúpula da Igreja não estava interessada em recuperar uma Obra que punha em causa a sua própria interpretação e condução do processo.

Portanto, tudo acabou por decorrer de acordo com aquele conhecido drama-padrão em três actos: no primeiro, o Avatar ou Mensageiro Divino entrega aos discípulos a sua Obra, contendo um conjunto de ensinamentos para a humanidade. No segundo, os longínquos discípulos dos discípulos criam uma Instituição para guardar e transmitir a Obra recebida, mas essa Instituição rapidamente se cristaliza e perde o vínculo com a divindade, apresentando-se, no entanto, como a expressão única e verdadeira da Obra em questão. Finalmente, no terceiro acto, a Instituição, já totalmente vazia de conteúdo, acaba por se desmoronar e, dos seus escombros, volta a nascer a Obra.

No tempo de Prisciliano, o mensageiro Jesus já havia entregue a Obra e o drama encontrava-se no início do segundo acto, de longe o mais extenso, a ponto de, ainda hoje, estar em cena...

De facto, para a hierarquia da Igreja, a teimosia do bispo de Ávila em se alinhar com a Obra primordial e não com versão redefinida em Niceia, era a verdadeira "heresia"... E, na verdade, a posição de Prisciliano representava um perigo muito maior para os objectivos da Instituição do que qualquer outra heresia forânea.

Por isso, Prisciliano, o Messias galego, tornou-se no primeiro mártir do novo circo romano.


NÉVOA

Muito pouco se conhece, ao certo, sobre a figura histórico-filosófica de Prisciliano, devido à escassez de fontes coevas. As poucas que existem são essencialmente críticas do heresiarca, como as que constam na "Crónica” ou “História Sacra", de Sulpício Severo, ou as referências de Próspero. Faltam, portanto, as fontes do lado priscilianista para que, do confronto de ambas as facções possa resultar uma visão mais ampla e justa do fenómeno. A hipótese mais provável para essa falta é que a Igreja as tenha destruído, na tentativa de apagar da História um episódio em que utilizou métodos muito pouco cristãos... Outra possibilidade é a dos próprios priscilianistas não terem registado a sua versão dos factos e a sua doutrina, ou de o terem feito somente de modo parcial e oculto, devido ao clima de suspeição e de terror em que viviam, perseguidos pela Instituição romana.

Portanto, falar de Prisciliano e da sua comunidade é tarefa difícil e deve ser levada a cabo com todo o cuidado, evitando as efabulações e resistindo às comparações com o nosso tempo. Contudo, permito-me defender uma teoria que ultrapassa os factos para ir ao encontro das causas, sabendo que, nesses outros domínios, não existem documentos manuscritos nem provas de carbono…


                                                          * * *

Embora não hajam registos fiáveis (alguns estudiosos inclinam-se para a Bética, no sul da Ibéria, e outros para a Lusitânia), a opinião mais consensual é a de Prisciliano ter nascido no ano de 340 na aldeia de Iria Flavia, que se encontra hoje ligada à vila de Padrón, numa Galiza (actual província da Espanha) que, na altura, pertencia à província romana da Gallecia. Esta província incorporava ainda partes actuais de Portugal, Leão e Astúrias.

Esse local do nascimento do heresiarca é precisamente o mesmo onde, como conta a tradição compostelana, aportou a barca de pedra com o corpo do apóstolo Santiago. Como adiante se verá, qualquer semelhança da história de Prisciliano com a lenda de Santiago não parece ser, de forma alguma, pura coincidência.

A povoação romana de Iria Flavia havia sido fundada sob os auspícios do Sagrado Feminino, possivelmente conotada com a deusa Ísis, uma das expressões da Grande Mãe pagã.

Sintomaticamente, seria ali erguido, ainda que muito mais tarde, o primeiro templo da Península Ibérica dedicado ao culto da Virgem Maria. Note-se que foi também num outro lugar contendo o nome de “Iria” (mais precisamente, na “Cova da Iria”, em Portugal), que uma misteriosa Senhora "vestida de Luz" apareceu, milagrosamente, aos pastorinhos de Fátima...

Se Prisciliano nasceu em Iria Flavia, o culto ali existente da Mãe divina poderá ter marcado a sua conduta para com as mulheres, a ponto de, mais tarde, desobedecer às normas religiosas e permitir a sua intervenção nas cerimónias litúrgicas!... Neste aspecto, adiantou-se em vários séculos a uma Instituição católica misógina, que, inclusive, terá tardado em reconhecer que as mulheres tinham alma.


FORMAÇÃO

O cronista Sulpício Severo traça assim o perfil de Prisciliano : "nascido de família nobre e abastada, de régio carácter, inquieto, eloquente, erudito, exercitado na dissertação e no debate. Homem dotado para o êxito, se não tivesse corrompido o seu talento com tendências erradas. Muitas qualidades espirituais e físicas se podiam distinguir na sua pessoa: podia velar por muito tempo e aguentar a fome e a sede, não desejava mais do que o essencial e era sumamente parco nos seus gastos. Mas com estas qualidades misturava grande orgulho da sua falsa e profana ciência, posto que desde a adolescência exercera as artes mágicas".

Refira-se que Prisciliano nunca desmentiu ter recebido ensinamentos alheios aos canónicos cristãos, o que muito contribuiu para fortalecer a convicção dos seus contactos heréticos com a magia.

Como aristocrata de posses, frequentou, na sua juventude, a universidade de Burdigala (hoje em dia, Bordéus, no sul de França). Ali conheceu Delphidius, um brilhante professor de retórica, descendente de druidas, que tomou o nome de Elpídio quando se converteu, tardiamente, ao cristianismo ou, melhor dizendo, a um “druidismo cristão”, mais de acordo com as suas convicções. Delphidius era casado com Eucrocia, uma druidesa que também se converteu, tomando o nome de Ágape –  possivelmente em homenagem àquela outra Ágape que esteve na origem da igreja gnóstica dos Agapetas.

 É referida por alguns autores uma suposta relação amorosa de Prisciliano com a filha de ambos, Prócula. Aliás, a sua mãe Eucrocia viria a ser julgada em Tréveris, juntamente com Prisciliano, acusada de bruxaria por ter provocado um aborto a Prócula, supostamente grávida do heresiarca.

Foram Delphidius e Eucrocia que introduziram Prisciliano num cristianismo ascético, mágico e gnóstico, igualmente próximo a convicções celtas e a ensinamentos alexandrinos.

O cronista Sulpício Severo, provavelmente influenciado pelo bispo Itácio, principal adversário de Prisciliano, atribui aquela influência gnóstica e maniqueia, bem como os conhecimentos de magia, astronomia e demais "malefícios", a um tal Marcos, um egípcio natural de Mênfis e educado em Alexandria, discípulo de Basilides. No entanto, o bispo  Irineu de Lyon, ao escrever o seu famoso "Adversus haereses" ("Contra as heresias"), situa no século I a chegada daquele personagem misterioso à Península Ibérica. Seria impossível, portanto, qualquer contacto entre Marcos e Prisciliano. A única hipótese de ligação consiste na possibilidade de Marcos haver fundado uma escola que tivesse perdurado no tempo e influenciado Delphidius e Eucrócia, mestres directos de Prisciliano.

Seja como for, mestres e discípulo tornaram-se grandes amigos e fundaram uma comunidade espiritual nos arredores de Bordéus, em plena natureza, para o estudo e desenvolvimento pragmático dos valores muito pouco ortodoxos que defendiam.

Saliente-se que a natureza representou sempre um papel fundamental na obra de Prisciliano, que nela se refugiou inúmeras vezes com os seus seguidores, utilizando florestas, grutas, campos ou montanhas como verdadeiros templos; neles andavam descalços, não como sacrifício, mas para melhor se harmonizarem com as energias telúricas. Organizavam reuniões litúrgicas, frequentemente nocturnas, em que a dança ritualística era uma componente importante; e também ali passavam, jejuando, o tempo da quaresma, longe das igrejas tradicionais.

 É claro que aquela tendência libertária (precursora do movimento monacal), eivada de heterodoxia e independente da Igreja, foi imediata e duramente combatida. Por isso, a comunidade de Bordéus foi desfeita pelas autoridades e Prisciliano teve que retornar à sua Galiza natal. Mas as sementes da doutrina estavam lançadas e começavam a germinar dentro de si.

De acordo com a acusação que, mais tarde, lhe fariam, Prisciliano terá estudado com especial atenção os valores orientais do maniqueísmo dualista – isto é, a luta entre o Bem e o Mal, a Luz e as Trevas, o Espírito e a Matéria, cujo campo de batalha é o interior do ser humano e onde, através de um ascetismo rigoroso, se podem aniquilar os elementos trevosos e libertar os luminosos. Mas não ficou por aí; em sintonia com a essência da Obra de Jesus, que ele amava acima de tudo, desenvolveu uma espiritualidade muito própria, profunda e introspectiva, num perfeito alinhamento com a natureza terrena e com os poderes do cosmos, na busca de um outro polo, para além dos já conhecidos como Bem e Mal... Digamos que nela se reflectia uma mescla rebelde e muito "galega" do cristianismo gnóstico dos primeiros tempos, misturando-se com a religiosidade celta, devotada à natureza e repleta de conceitos astrológicos, de misticismo e de magia.

 E de ânsias incontidas de liberdade...

Apesar da Instituição haver proibido a leitura dos escritos Apócrifos, Prisciliano confessava-se abertamente com leitor atento e entusiasta dos Actos de João, do Evangelho de André e, sobretudo, do Evangelho de Tomé, a quem considerava como irmão gémeo de Jesus; e não só lia e interpretava os textos “fora da lei”, como aconselhava aos outros a sua leitura e defendia a sua inclusão no cânone, não se cansando de exaltar a extraordinária importância que eles detinham.

 Pertencem ao Evangelho excluído de Tomé estas palavras de Jesus:
"Eu vos darei o que nenhum olho viu
 E nenhum ouvido escutou
 E nenhuma mão tocou
 E que não surgiu na mente humana..."

Era precisamente aquela dádiva divina "não surgida na mente humana" que Prisciliano mais buscava... E tê-la-á encontrado porque, rapidamente, se converteu no líder inspirado e carismático de um movimento religioso dentro da própria Igreja romana; um movimento que visava modificar, de dentro para fora, isto é, no seio da própria Igreja, uma Instituição eclesiástica que cada vez mais se afastava da Obra de Jesus.


PROPOSTAS

Pelo ano de 379, o ainda leigo Prisciliano voltou à Galiza e ali começou a pregar a sua doutrina com um sucesso extraordinário, que logo se estendeu à vizinha Lusitânia. A sua eloquência e cultura, fortemente inspiradas e, sobretudo, o sentido de Verdade que emanava do seu discurso e do seu exemplo, cativavam as populações e atraíam para a sua corrente renovadora elementos de todas as condições sociais, incluindo inúmeros membros da Igreja.

Sulpício Severo assim o descreve:" Prisciliano empreendeu a sua doutrina perniciosa e, pela persuasão e habilidade para a lisonja, atraiu à sua comunidade a muitos nobres e a numerosa gente do povo.(...) Pouco a pouco, a epidemia desta perfídia invadiu a maior parte da Hispania; inclusive, alguns bispos depravados, entre eles Instâncio e Salviano, admitiram a Prisciliano, não somente pelo consenso mas, muito mais do que isso, sob uma espécie de conjura."

Ensinando uma doutrina gnóstica como pano de fundo, visando o conhecimento de Deus através do autoconhecimento, as propostas de Prisciliano defendiam, por fora, a pobreza voluntária, a abstinência do álcool e da carne, o exercício da esmola, o igualitarismo no culto, a abolição da escravatura e a equiparação de ambos os sexos.

 Recomendando o celibato, Prisciliano não proibia, no entanto, o casamento de clérigos e monges, reconhecendo que a sexualidade consciente também era um valor que podia ser sacralizado.Afinal, o eterno jogo dos princípios masculino e feminino –  yang e yin – existe para que se alcance a Unidade...

 É nessa linha de pensamento que Prisciliano, escandalizando os seus contemporâneos, abriu as portas dos templos às mulheres, como participantes integrais e activas na liturgia. Também utilizou o baile como parte dessa liturgia e ousou afirmar que as almas humanas são, em essência, da mesma substância que Deus e que podem transmigrar-se, abrindo a porta ao conceito gnóstico da reencarnação.

As sementes deste regresso às origens do cristianismo (de tal modo vanguardistas que a Igreja de hoje ainda resiste a algumas delas, nomeadamente à questão das mulheres sacerdotisas e ao casamento dos membros do clero) germinaram primeiro nas comunidades da Galiza e da Lusitânia, porque eram as zonas da Península Ibérica menos romanizadas e, portanto, as que melhor haviam guardado a cultura celta; mas, na verdade, toda a Hispania se rendia e abria, paulatinamente, ao movimento renovador.

A reacção da Instituição Católica romana não se fez esperar. Muitos dos seus bispos estavam instalados numa confortável secularização e temiam pela sua carreira sacerdotal, no caso de triunfar o ascetismo priscilianista. Outros, apenas seguiam ordeira e devotadamente as normas da Instituição. Por isso, o bispo Higino de Córdova (que, mais tarde, se converteria num importante seguidor de Prisciliano), ao deparar com aquela "doutrina perniciosa"em pleno crescimento, enviou uma carta denunciadora ao bispo Hidácio de Emmerita Augusta, capital e sede metropolitana da Lusitânia (a actual Mérida, cidade espanhola da Estremadura).

Entretanto, um outro bispo, Itácio de Ossonoba (a cidade de Faro, no Algarve, em Portugal), alarmado pela extensão dos acontecimentos, logo tratou de relacionar a doutrina de Prisciliano com o que havia lido no "Adversus Haereses" sobre Marcos, o “tenebroso” mago egípcio hermético e maniqueísta… Inventando ligações e laços ocultos com Prisciliano, escreveu um exaltado "Commonitorium" sobre os erros do galego, a quem nunca mais deixou de perseguir, tornando-se no seu arqui-inimigo.

 Itácio encontrou pleno apoio no bispo metropolitano Hidácio que, a partir daí, sempre o acompanhou nas acusações ao heresiarca. Foram estes dois bispos cúmplices os principais autores das diversas fases da trama que levou Prisciliano à morte.

O cronista Sulpício Severo, num laivo de justiça, não hesita em criticar o "afã de vencer, maior do que era oportuno" dos dois bispos acusadores, referindo por diversas vezes a vida pouco recomendável de Hidácio. Quanto ao outro grande adversário de Prisciliano, define-o claramente deste modo: "Itácio nada tinha de valioso, nada de santo; era imprudente, loquaz, desavergonhado, charlatão e escravo do ventre e da gula..." 

O próprio Prisciliano remata contundentemente o perfil do bispo de Faro, ao increpá-lo no seu "Liber Apologeticus": "Itácio, eu conheço as tuas obras e sei que não és frio nem quente. Agradaria ao Céu que o fosses mas, por morno, o Senhor te vomitará da Sua boca!..."


SARAGOÇA

A estratégia para eliminar Prisciliano iniciou-se no ano de 380, com a convocação de um concílio em Saragoça. Curiosamente, o mesmo lugar onde a lenda conta que o apóstolo Santiago se havia encontrado, três séculos antes, com a mãe de Jesus, dando origem ao culto da Virgem do Pilar. Mas, desta vez, o objectivo não era propriamente apostólico.

Foi o papa Dâmaso (um outro galego nascido em Braga, actual cidade portuguesa do Minho) quem decidiu autorizar tal concílio, atendendo às razões do bispo metropolita Hidácio, que referia a ameaça de um cisma na Hispania. No entanto, o papa recomendava uma postura conciliadora entre todos os bispos e decretava a impossibilidade de alguém vir a ser condenado sem ser ouvido anteriormente. Ou seja, Hidácio ficava, logo à partida, com um campo de manobra muito reduzido.

O concílio de Saragoça começou com um fracasso, pois ali somente compareceram doze bispos, entre hispanos e aquitanos. Nenhum bispo galego respondeu à chamada, excepto Simpósio de Astorga que, no entanto, se foi embora no primeiro dia, ao perceber que o único fim daquela reunião era condenar Prisciliano. Os bispos lusitanos Instâncio, de Salamanca, e Salviano, de Cória, também primaram pela ausência, tal como Higino, de Córdova, que havia denunciado Prisciliano mas que, logo após, se convertera num dos seus apoiantes. Prisciliano, alvo principal do concílio, também se recusou a comparecer.

Os bispos reunidos em Saragoça acabaram por redigir oito cânones contra os faltosos, suspeitos de heresia, nas pessoas dos leigos Prisciliano e Elpídio, junto com os bispos católicos Instâncio e Salviano. No entanto, devido às expressas instruções do papa para que se não realizassem condenações “in absentia”, o sínodo terminou apenas com uma reprovação teórica e abstracta da heresia, desautorizando muitas das suas práticas e postulados e excomungando quem os seguisse, mas guardando um forçado silêncio sobre os priscilianistas.

Mesmo assim, ao serem conhecidas as decisões de Saragoça, Prisciliano resolveu passar à acção e escreveu uma carta ao papa Dâmaso, em sua defesa.

 Referiu Prisciliano que "no concílio de Cesaraugusta (Saragoça), nenhum de nós foi tido por réu, nenhum de nós foi acusado e nenhum de nós foi condenado, nem ao nosso nome, propósito ou vida foi feita alguma objecção; ninguém teve necessidade de se apresentar, nem sequer houve convocação. Não sei que cominatório foi ali aportado por Hidácio, como assinalando regras de actuação na vida; nenhum de nós foi censurado nelas, graças, sobretudo, a uma carta tua que prevaleceu contra os ímprobos, na qual ordenavas que, conforme aos preceitos evangélicos, não se emitisse sentença contra os ausentes sem haverem sido ouvidos"...

Sem deixar de criticar o mau exemplo e as atitudes persecutórias de Hidácio, Prisciliano apelou ao entendimento e à paz entre todas as igrejas da Hispania, terminando a carta deste modo: "lutemos para que, sob o nome dos criminosos, não fiquem nos vossos dias, como vós sabeis que seria terrível, as igrejas católicas vazias de sacerdotes e os sacerdotes vazios de igrejas."

Para além desta carta ao papa, escreveu ainda o "Liber Apologeticus ou Professio Fidei", que enviou a todos os bispos peninsulares. Prisciliano não só saíra incólume do primeiro grande confronto com a Instituição, como a sua posição havia ficado ainda mais reforçada.


ÁVILA

Um ano depois, em 381, ficou vaga a sede episcopal de Abila (a actual Ávila, cidade espanhola de Castela e Leão) e os bispos lusitanos Instâncio e Salviano, que queriam consolidar a sua posição perante as acusações persistentes de Hidácio e Itácio, conseguiram elevar Prisciliano à posição de bispo daquele importante episcopado.

A nomeação de Prisciliano caiu como uma bomba no seio da hierarquia conservadora da Igreja!
 Ávila deixava de ser um bastião da ortodoxia e Hidácio havia sido ultrapassado no seu próprio terreno... Certamente atónito e enfurecido, reuniu-se com Itácio para conjurar uma resposta, que passou, inclusive, pelos tribunais civis mas, como escreveu Sulpício Severo, "os juízes seculares pouco adiantaram aos seus torpes propósitos de que os hereges fossem expulsos das cidades"...

Desesperados e conscientes da inutilidade de convocar um novo concílio, Hidácio e Itácio resolveram então avistar-se directamente com o imperador Graciano. E perante o detentor do poder maior do império, acusaram Prisciliano de ser maniqueísta, pedindo a sua expulsão imediata, junto com a dos bispos heréticos que o apoiavam.

                                        * * *

O maniqueísmo dualista, de que já falámos antes, era uma religião nova que havia sido introduzida no império persa – um forte rival de Roma – pelo profeta Mani, nascido na Mesopotâmia em 215 ou 216. Depois de uma sanguinária perseguição, que levou à morte do seu iniciador, o maniqueísmo não cessou de crescer por todo o oriente. No próprio século III, ganhou inúmeros adeptos no império romano e começou a agregar elementos cristãos, que lhe deram o aspecto de heresia – refira-se que Santo Agostinho começou por ser um seguidor confesso de Mani!...

 Devido à sua origem e porque havia atraído tantos cristãos, o poder de Roma considerava o maniqueísmo como uma heresia muito perigosa, receando, inclusive, intromissões políticas sob a capa da doutrina.

Ou seja, não era preciso mais nada para fazer agir Graciano.

Mas, segundo a lei vigente, o poder imperial não podia julgar um bispo sem haver antes uma condenação pela jurisdição eclesiástica e Prisciliano fora consagrado bispo de Ávila... No entanto, Hidácio e Itácio socorreram-se da condenação teórica do sínodo de Saragoça e, como relata Sulpício Severo, "depois de muitas e vergonhosas discussões, conseguiram obter de Graciano, então imperador, um rescrito, no qual se mandava que todos os hereges abandonassem não somente as igrejas e cidades, mas que fossem expulsos de todas as suas terras".


VIAGEM

Prisciliano reagiu, decidindo justificar-se pessoalmente perante o papa Dâmaso e pedir a sua proteção. Para isso, encetou uma longa viagem a Roma acompanhado pelos bispos Instâncio e Salviano. A caminho de Itália passaram pela Aquitânia, onde Prisciliano retomou o contacto com Prócula e sua mãe Eucrócia, já viúva de Elpídio, que passaram a fazer parte da comitiva.

Chegaram a Roma quando Dâmaso se encontrava em plena luta política para obter a primazia da sede romana. Fortemente pressionado pelos sectores mais reaccionários da Igreja, o papa acabou por não receber a comitiva. Prisciliano optou por se dirigir a Milão, sede episcopal do influente Ambrósio, mas este tampouco ousou recebê-lo. Desistiu, então, da via hierárquica e voltou-se, tal como o haviam feito os seus acusadores, para o palácio imperial de Graciano.

Começou por ganhar o favor de Macedónio, que ocupava o cargo de "magister officiorum" do imperador e a quem Itácio acusou, mais tarde, de ter sido subornado por Prisciliano. Macedónio introduziu o bispo de Ávila junto do próprio Graciano, a quem Prisciliano teve ensejo de explicar detalhadamente o seu pensamento e toda a questão que o envolvia. O imperador mostrou-se sensível às razões de Prisciliano e reconheceu a intriga dos bispos Hidácio e Itácio. De imediato derrogou a sua ordem anterior, reconfirmando Prisciliano como bispo de Ávila e devolvendo todos os episcopados aos priscilianistas.

Tratou-se de uma grande vitória de Prisciliano sobre aos seus detractores, sobretudo face a Hidácio e Itácio, que perdiam inexoravelmente toda a credibilidade e poder – pelo menos, enquanto Graciano fosse o imperador romano do Ocidente.

A repercussão foi tal que Itácio, acusado de “perturbador da Igreja”, teve que sair da Hispania e refugiar-se em Tréveris (a cidade de Trier, na actual Alemanha).


VENTOS

Então, sob o aplauso entusiasta da sua Galiza natal e da Lusitânia que o havia adoptado, Prisciliano voltou a entrar em Ávila como bispo consagrado daquela cidade. Tinha trinta e três anos.

Foi em Ávila que pegou na pluma e, entre outros, escreveu os "Canônes sobre as Epístolas do Apóstolo Paulo". Acendia-se um irradiante farol gnóstico na cidade que, onze séculos depois, haveria de acolher Santa Teresa e S. João da Cruz.

Em muitos dos seus escritos, Prisciliano defende abertamente as suas ideias, tal como no "Liber de Fide et Apocryphis"em que propõe a canonicidade de textos apócrifos, recomendando a sua leitura e advogando o princípio do livre exame dos textos evangélicos, bem como a superação do literatismo na interpretação das escrituras; porém, no "Liber Apollogeticus" e outros, a sua doutrina parece, estranhamente, alinhar-se com a ortodoxia reinante. Seriam estes, meros “textos de descarga" para defesa da sua posição e camuflando assim outras intenções, como aventam alguns investigadores?...

Penso que a resposta a esta contradição é dada através das estrofes do "Hino a Jesus Cristo" (que alguns atribuem ao próprio Prisciliano e outros dizem ser mais antigo, mas que foi utilizado pelos priscilianistas):
"Sou luz para ti, que me vês.
Sou porta para ti, que a ela bates.
Tu vês o que faço. Não o menciones.
A palavra enganou a todos, mas eu não fui completamente enganado."

Os  últimos versos referem-se, explicitamente, a uma acção camuflada pela "palavra", que poderá ser tão enganadora como os referidos textos apologéticos de Prisciliano…

                                                    * * *

Os ares de mudança faziam abanar a Igreja da Hispania, fortemente sacudida pela ofensiva apostólica de fé iluminada, de consciência e de santidade, lançada pelo bispo de Ávila. O extravasar da onda renovadora para além dos Pirenéus parecia inevitável mas, de súbito, os ventos mudaram...

De facto, no ano de 383 deu-se uma inesperada reviravolta político-militar no império romano do Ocidente: o ambicioso Magno Máximo sublevou-se na Gália e assassinou o imperador Graciano. E, como se não bastasse, ainda foi assentar arraiais em Tréveris, onde se encontrava o bispo Itácio! Resultado: não passou muito tempo até que o “desavergonhado, charlatão e escravo do ventre e da gula” Itácio conseguisse transmitir ao novo imperador as suas acusações venenosas contra Prisciliano e a sua “seita degenerada” que agitava a Península Ibérica…

Depois do golpe militar, Máximo precisava que a Igreja o reconhecesse como imperador do Ocidente, facilitando a sua posição perante Teodósio, imperador do Oriente, que o tinha por usurpador. Por outro lado, a Igreja também precisava daquele braço imperial para eliminar os numerosos movimentos dissidentes que a afligiam. Estabeleceu-se, assim, uma aliança tácita, entre os dois poderes, que levou o novo imperador a adoptar uma postura anti-priscilianista.

Ciente de que a condenação de um bispo pelo poder imperial teria que ser precedida por igual condenação por parte da Igreja, Máximo ordenou a convocação de um sínodo em Bordéus, baluarte dos contra-reformistas, com o intuito explícito de corrigir a heterodoxia do cristianismo ibérico.


ARREPIO

Imagino que Prisciliano, ao receber a convocatória para o sínodo de Bordéus, tenha sentido um estranho arrepio a atravessar-lhe o corpo…

A nova situação política do império emergia de forma favorável aos seus inimigos, que jamais haviam desistido de o perseguir; no entanto, ele também vencera confrontos difíceis no passado e a própria estrutura eclesiástica a que, apesar de tudo, pertencia, há muito que não detinha registos de condenações internas, envolvendo violência física por conflitos ideológico-teológicos...

 Por isso, aquela possível reacção de Prisciliano, não corresponderia nunca a um reflexo de medo, ou de falta de confiança em si próprio; o seu corpo teria estremecido porque soube, primeiro do que a mente, que tinha chegado a hora da sua própria “paixão”.

"Toda a paixão que vale, tem que ser voluntária, tem que ser desejada e posta em prece, por mais que no momento a carne se mostre, de novo, mais fraca do que o espírito; mais ainda: para além de todo o sofrimento, para além de toda a lágrima de sangue e de toda a chaga de fogo, tem que ser alegre, esplendorosa de amor da vida e do futuro, e decidida e séria e grave, como no sacrifício do monge ou do soldado. Não o puderam, por vários motivos, meditar antes os irmãos perseguidos; nós, porém, temos tempo; e não podemos admitir que fique desaprendido o seu legado." São palavras de Agostinho da Silva que traduzem, à perfeição, o presumível estado de alma de Prisciliano. Um Prisciliano maduro, que terá tido tempo suficiente para meditar e perceber a mensagem que o seu corpo lhe transmitia. Talvez por isso, ao invés de se esquivar ou procurar, de algum modo, evitar o desfecho que se adivinhava, dirigiu-se, resolutamente, com os seus apóstolos para Bordéus.


CONSPIRAÇÃO

Mais uma vez pelas bocas de Itácio e Hidácio, surgiram as acusações mais díspares, juntando-se à da heresia, mas todas se desfizeram de encontro à prodigiosa e inspirada oratória de Prisciliano. Por isso, o sínodo terminou num impasse e, portanto, sem a requerida sentença condenatória desejada pelo imperador Máximo e pelos bispos acusadores.

Para o “fracasso” de Bordéus, certamente que também contribuiu a influência do bispo Martinho de Tours que, ao longo do concílio, defendeu os priscilianistas. Esta atitude do futuro S. Martinho, não só em Bordéus como, depois, no julgamento de Tréveris, enfureceu sobremaneira Itácio.

Sulpício Severo não poupa o bispo de Faro: "A sua estupidez tinha ido ao ponto de acusar de delito, como companheiros ou discípulos (de Prisciliano), todos os homens simples que gostavam de ler ou praticavam jejuns. Inclusivamente, o miserável, atreveu-se a difamar publicamente, como herético, o respeitável bispo Martinho, em tudo comparável com os apóstolos. Tudo isto, porque Martinho, então em Tréveris, não cessava de repreender duramente a Itácio, para que desistisse da acusação."

De facto, esta nova acusação de Itácio decorria já no tribunal civil de Tréveris porque, mal terminado o sínodo de Bordéus, Prisciliano e os seus acompanhantes foram presos pelas forças de Máximo e ali conduzidos, a fim de responderem num outro tribunal, sob o foro secular.

 O porquê de tal situação, não se sabe; o que se sabe é que, face ao código da época tratava-se de uma detenção ilegal, pois não poderia seguir-se um juízo civil sem ter existido uma condenação no sínodo anterior.

Alguns autores dizem que foi o próprio Prisciliano quem requisitou a justiça de Máximo, após o sínodo de Bordéus. Tal suposição não me parece consistente e choca com o facto da surpreendente ordem de prisão dada aos priscilianistas; logo, parece ser um argumento inventado pelos seus detractores para justificar uma farsa montada de muito alto.

Mas no seguimento da linha especulativa sobre a convocatória para Bordéus, também considero que possa ter sido essa a opção de Prisciliano, escolhendo um enfrentamento definitivo com aquele que, sobre ele, detinha o poder de vida ou de morte.

 Se assim foi, acredito que não se tratava de uma desmesurada confiança nas suas possibilidades, como aventam alguns, mas da decisão, irracionalmente mística, de beber até ao fim o Cálice do seu destino.

Digamos que, desse modo, o Messias Galego se dirigiu ao seu próprio Jardim das Oliveiras...


PAIXÃO

No tribunal imperial, Itácio e Hidácio pertenciam, claro está, ao grupo de bispos-juízes e, pela primeira vez, podiam vencer. Mas essa vitória anunciada não podia ser posta em causa pela eloquência inspirada de Prisciliano, que os havia suplantado em todos os outros confrontos; para anular esse inconveniente, nada melhor do que obter uma confissão do próprio réu – e como seria impossível obtê-la de outro modo, não hesitaram em recorrer à tortura.

Note-se que a aplicação da tortura era uma prática vulgar naquele tempo de domínio imperial romano; a novidade é que, pela primeira vez, foi patrocinada pela Igreja Católica!...

Sob os efeitos brutais da tortura qualquer um concorda com os carrascos, e foi assim que Prisciliano acabou por confessar algumas infracções graves ao código vigente da Igreja. Mas o mais curioso, ou tristemente irónico, é que a sua confissão, apesar do modo como foi arrancada, soa a verdadeira - verdadeira, porque os supostos delitos eram, todos eles, a expressão de uma espiritualidade viva, fluida e activa, em confronto com o modelo monolítico da Igreja, mais rígido do que a morte.

Seriam crimes as acções confessadas? Do ponto de vista da cegueira, sim. Mas os verdadeiros criminosos não seriam os acusadores?...

De qualquer modo, o processo estava ganho por eles, pelos torturadores, restando a mera formalidade cénica do tribunal. No entanto, no foro da Consciência de cada um, o processo não está encerrado e as acusações podem, ainda, ser rebatidas.


ACUSAÇÕES

A heresia encabeçava a lista, mais propriamente a acusação de Prisciliano ter ligações com o maniqueísmo, ou encarnar e difundir um sincretismo gnóstico que se chocava abertamente com a nova doutrina católica romana. Já se falou de tudo isto em capítulos anteriores. Quanto às novas acusações, a mais  grave de todas, porque poderia conduzir, por si só, à pena de morte, era a de bruxaria.

A condenação de um bispo católico por “maleficium” (bruxaria) implicava a confiscação de todos os seus bens pelo estado, sem afectar o património eclesiástico. Ora sendo Prisciliano oriundo de uma família abastada, bem como alguns dos seus discípulos hispânicos, tal condenação interessava sobremaneira à Igreja e ao imperador...

Por bruxaria, os bispos acusadores referiam-se, nomeadamente, ao facto de Prisciliano consagrar os campos ao Sol e á Lua, a fim de se obterem boas colheitas.

                                                 * * *

Devo dizer que, ao longo da minha infância, passada numa vila ribatejana, em Portugal, assisti muitas vezes a uma missa campestre, durante a qual se consagravam as colheitas e se benziam as manadas de gado. Não me lembro, contudo, que tenha sido preso e decapitado o padre católico que a celebrava, o que teria tornado a cerimónia ainda mais inesquecível!...

É famosa a capela de S. Mamede de Janas, próxima de Sintra, em Portugal, onde, ainda hoje, se pratica o rito da benção do gado e dos frutos da terra... E, com toda a certeza, o mesmo culto se celebrou, ou celebra ainda, em muitas outras localidades ibéricas, assim como, certamente, por essa Europa fora.

Ou seja, como já antes referido, a Igreja viu-se impossibilitada de eliminar muitos rituais pagãos ancestrais, por estarem demasiado arraigados na memória colectiva dos povos, e decidiu cristianizá-los, isto é, institucionalizar a sua prática, conferindo-lhes um cunho católico e, sobretudo, transpondo-os para debaixo da sua autoridade.

Por outras palavras: esta prática de "bruxaria", que levou Prisciliano ao cadafalso, acabou por ser admitida e exercida, até aos nossos dias, pela mesma Igreja que tão implacavelmente a perseguiu nos seus primeiros tempos de poder!...

                                                   * * *
                              
Mas para aprofundar um pouco mais a questão tão desconhecida da bruxaria, da magia ou, se quiserem, dos "milagres" – que nada têm de sobrenatural porque derivam de um determinado estado natural, apoiado por leis igualmente naturais…-, recorro de novo ao xamã citado por Carlos Castaneda: "a feitiçaria é a capacidade de se perceber algo que a percepção comum não consegue". E logo acrescenta: "não existe bruxaria, nem mal, nem diabo. Existe apenas percepção."

 Ou seja, como também sublinha, "A feitiçaria é um estado de consciência."

Segundo aquele ensinamento, o homem tem ao seu dispor um poder incalculável que invariavelmente desperdiça, porque lhe falta a energia necessária para o manobrar; ao gastar tudo que tem para resolver as questões comuns, do seu quotidiano comum, não lhe sobra energia alguma que lhe permita aceder às outras faixas de percepção. Nem sequer para saber que aquele poder existe...

Os magos ou feiticeiros aprendem a economizar a energia necessária para sintonizar e manipular campos de energia normalmente inacessíveis, penetrando em mundos insuspeitos para a mente racional. Por isso, pode dizer-se que a magia ou feitiçaria é um estado de consciência e, sendo assim, insisto, nada tem de sobrenatural; pelo contrário, consiste na habilidade de entender e de utilizar as leis da natureza, em toda a sua extensão e poder.

Claro que a utilização do poder proveniente daqueles campos de energia pode ter dois sentidos e é isso que distingue os magos brancos dos negros.

Os magos brancos empregam esse poder para percorrerem “caminhos de Liberdade”, tal como o fez Prisciliano, servindo de exemplo e de farol aos outros homens e contribuindo para a sua própria libertação individual e colectiva.

Os magos negros utilizam o poder para reforçarem o seu domínio sobre os demais, manipulando totalmente as suas acções e pensamentos. Servem-se do medo, da culpa e da ignorância para impor os seus dogmas e manter um estado de escravidão e de obscurantismo.

Foram eles que perseguiram Prisciliano, antes e depois de morto, tudo fazendo para destruir a idoneidade e a credibilidade da sua memória. Não puderam apagar por completo a sua figura da História, mas conseguiram que fosse vista com desconfiança. E esquecida.

Por tudo isso, são eles os bruxos perigosos, que deveremos pôr seriamente em causa, em vez de nos assustarmos com o grito de liberdade de Prisciliano!...

Que, apesar de tudo, ainda hoje ecoa; mas que, ainda hoje, procuram abafar.

                                                * * *

Outra das graves acusações que pendiam sobre Prisciliano era a de rezar em promiscua nudez com mulheres, chegando, inclusive, à prática sexual no final das cerimónias litúrgicas.

Abordemos primeiro a questão da nudez: será que os púdicos juízes católicos do século IV se tinham esquecido das Escrituras que haviam aprovado em Nicéia?

Um dos textos canónicos, conta-nos que o rei David se despia para louvar a Deus tendo, inclusive, dançado completamente nu em torno da Arca da Aliança!... Tanto assim, que a sua esposa Mical saiu ao seu encontro e o censurou com estas palavras: "Que bela figura fez hoje o rei de Israel, dando-se em espectáculo às servas dos seus vassalos e descobrindo-se sem pudor!..." Ao que David respondeu: "Foi diante do Senhor que dancei, do Senhor que me escolheu para chefe do Seu povo de Israel."

O texto acrescenta que a censura de Mical a David foi duramente punida por Deus, que a tornou estéril... Do mesmo modo, a condenação de Prisciliano não terá levado a Instituição à mais desoladora esterilidade espiritual?...

Adão e Eva viviam nus no Paraíso e só se cobriram com roupas depois de terem sido expulsos, isto é, depois de terem perdido o contacto directo com a divindade... Isto significa que, na tradição bíblica, a nudez do corpo representa o retorno ao estado primordial, ou a manifestação plena e total do espírito no corpo, sem quaisquer véus a encobri-la.

Alguns gnósticos despiam-se para rezar porque faziam da nudez o símbolo da sua depuração face aos Mistérios divinos, abolindo toda a separabilidade representada pelas vestes. Ou seja, essa nudez ritualística simbolizava a nudez da alma, despindo a veste do corpo para retornar à sua origem divina...

O próprio S. Francisco de Assis, uma das figuras mais veneradas da história da Igreja, não pediu para morrer e ser sepultado, completamente nu?...

Sendo assim, a atitude de Prisciliano reflectia um alinhamento interior da mais elevada espiritualidade e não o reflexo de uma provocação lasciva ou de uma degradação sensual e materialista. Mas os bispos acusadores de Tréveris apegaram-se, exclusivamente, a esta última hipótese porque era, seguramente, a única que conheciam pela prática das suas próprias vidas.

                                                  * * *
                
"A humanidade é infeliz porque fez do trabalho um sacrifício e do sexo um pecado", disse com toda a frontalidade Henrique José de Souza.

Não tenho dúvidas de que a responsabilidade maior por esta infelicidade deriva da Igreja Católica e dos seus dirigentes, que instilaram a repulsa pelo sexo, fazendo dele um terrível pecado... Os excessos de hoje são uma reacção a todos esses séculos de opressão e de culpa; infelizmente, são tão obscuros como a repressão do passado, porque em ambos os casos está ausente o factor da consciência...

Prisciliano, agindo de acordo com práticas gnósticas esclarecidas (que aquela máxima moderna, afinal, sintetiza), abriu as portas do Templo às mulheres, desobedecendo com valentia às normas vigentes da igreja, que o proibia taxativamente.

Mas, tal como se referiu antes (veja-se o capítulo 3), o próprio Jesus viajava acompanhado de um grupo de mulheres, sendo que uma delas, segundo o evangelho de Tomé, partilhava a sua cama; e S. Paulo fazia o mesmo com a sua companheira Tecla…

Também ali se falava de que os Mistérios Internos do gnosticismo introduziam uma figura feminina representando um outro aspecto da divindade, que apelidavam de "Sofia" (que, em grego, língua em que foram escritos os evangelhos, significa "Sabedoria").

Não deixa de ser significativo que a palavra "filósofo", utilizada pela primeira vez por Pitágoras, queira dizer, literalmente, "amante de Sofia", e ainda que S. Paulo, na epístola aos Colossenses, assinale que é em Cristo "que estão escondidos os tesouros da Sabedoria (ou de Sofia, no original) e da ciência divina (a Gnose) ".

Para os gnósticos, Sofia era a companheira do Cristo e também a alma do mundo, ou o reflexo de Deus infundido na matéria.

Estes dois pólos da divindade separavam-se para actuarem na matéria do mundo mas, na verdade, constituíam Um só, e esse regresso à Unidade podia ser simbolizado, em termos humanos, pela relação sexual; não em pretensos ritos orgiásticos, tão ignorante e difamatoriamente referidos pela Igreja, mas numa sexualidade sagrada e consciente, vivida através da relação harmónica e complementar entre o homem e a mulher.

O evangelho de Filipe, descrevendo um processo de iniciação, diz-nos que o mesmo culminava na câmara nupcial da união mística, uma vez que "o sacrário é a câmara nupcial e a redenção tem lugar na câmara nupcial".

Para não deixar dúvidas de que o mistério em causa é espiritual mas que se inicia no plano físico, Filipe acrescenta que "a mulher se une com o esposo na câmara nupcial."

Claro que esse encontro de núpcias representa, sobretudo, a reunião das partes separadas do andrógino, bem como da alma com o espírito. Mas essa reunião só se torna completa em todos os planos com a união consciente e sagrada dos corpos físicos.

Continua Filipe: " a câmara nupcial é o Santo dos Santos. O baptismo traz consigo a ressurreição e a redenção, que depois se realizam na câmara nupcial." E como que para acentuar o carácter inicialmente físico do processo (o físico não é mais que o espírito densificado, enquanto que o espírito é o físico subtilizado...), o mesmo evangelho dá-nos conta do afecto especial de Jesus por uma determinada figura feminina: "três mulheres sempre caminhavam com o Senhor: sua mãe Maria, sua irmã e Maria Madalena, que era chamada sua companheira. Sua irmã, sua mãe e sua companheira eram, cada uma, Maria."

Outra passagem ainda é mais explícita: "a companheira do Salvador é Maria Madalena. Ele amava Maria mais que todos os discípulos e a beijava muitas vezes na boca. Os demais lhe disseram: "Porque a amas mais do que a nós?" O Salvador respondeu: "Porque não vos amo como a amo?"

Mas não são apenas os escritos apócrifos a referirem esta questão. No evangelho canónico de Mateus, é o mesmo Jesus a afirmar claramente que "alcançar o reino dos Céus será como uma donzela sair ao encontro do esposo"...

Para os gnósticos cristãos, Sofia, como contraparte do Cristo, representava a encarnação do Eu divino na Terra e, por isso, como psique humana incompleta, era retratada num estado decaído, perdida no mundo, em busca da sabedoria ou da sua verdadeira identidade. De tanto e tão desesperadamente procurar o amor de um mítico esposo, torna-se prostituta (recorde-se que na versão da Igreja, é também assim que surge a figura de Maria Madalena, salva da degradação por Jesus, como Daemon ou Espírito). Sofia apela, então, a Deus Pai e Ele responde, enviando-lhe como noivo o Seu Filho primogénito. Quando os dois se encontram e reconhecem, envolvem-se numa intensa relação amorosa, a todos os níveis, para voltarem a ser Um.

Este mito é uma alegoria da condição humana que, para ser salva da escuridão e da ignorância em que vive, tem que se casar com o Espírito ou Eu Superior que, por sua vez, vem em socorro da sua própria expressão na Terra. Por isso, o Mistério do “casamento sagrado”, simbolizando a Unidade alcançada (que poderia ter uma componente sexual, para se realizar em todos os planos) correspondia a uma elevadíssima iniciação gnóstica.

Deste modo, Prisciliano admitia o sexo ritualístico, assim como a sexualidade vivida saudavelmente no casamento ainda que, recorde-se, prescrevesse o celibato. Ou melhor, prescrevesse a castidade; porque, note-se bem, castidade e abstinência não são a mesma coisa – é possível ser-se abstinente pela lei da natureza, como sucede com certos idosos libidinosos que, desse modo forçado, não são castos, como também se pode ser casto sem ser abstinente, como é o caso de muitos iniciados.

A Igreja nunca foi abrangente no que respeita à sexualidade, matéria com que sempre manteve uma relação difícil e perigosa, não hesitando em associar a mulher ao demónio e espalhando o terror associado ao sexo. Por isso, o número das suas vítimas psíquicas que, por medo, ignorância ou cego seguidismo se autoimolaram (e muitas ainda continuam a fazê-lo!...) excede em muitos milhões o das suas vítimas físicas, que, já de si, era impressionante!...

Prisciliano foi uma das vítimas físicas, mas não uma das psíquicas, pois o seu pensamento sempre voou mais alto e a salvo de todas as castrações mentais. Disso dá conta este poema de Jesús Munárriz intitulado "Tras haber holgado con Prócula, Prisciliano medita":

"-Llaman a esto pecado los fanáticos.
A esta explosión que lenta se alabea,
a este sentir con cada poro, vibrar en cada vello,
a este ser piel,
a esta dulzura derramada en carne viva,
a este glotón enjambre de alegría,
a estos nervios sabiéndose universo gozoso,
al corazón alardeando de su mejor humor,
al milagroso encaje en la sonrisa,
a la satisfacción ardiendo en ojos,
a la felicidad
llaman pecado.

Pero es dios quien se ama en nuestros cuerpos
- nuestros cuerpos dispuestos para el éxtasis
por Su sabiduría -
y su goce es el nuestro. Amemos, Prócula."


                                        * * *

 A resposta da corrente da Vida aos arremedos terroristas e castrantes da Igreja foi contundente, já que se liga com o símbolo do seu percurso mais emblemático: o Caminho de Santiago (ou, na verdade, o Caminho de Prisciliano) que tem como símbolo a concha chamada vieira.

Dizem que várias razões determinaram a escolha deste símbolo: por um lado, as vieiras abundam no litoral compostelano onde, afinal, termina o Caminho; por outro, as estrias da concha representam um confluir de múltiplas rotas para um único ponto –  a cidade de Santiago de Compostela... Pode ser tudo isso e mais o que quiserem, mas a simbologia tradicional diz-nos que a vieira é o emblema da deusa grega Afrodite (ou Vénus, para os romanos) que dela nasce sobre as águas, tal como é ilustrado pelas célebres pinturas de Botticelli ou de Ticiano.





E qual o sentido mais profundo desta simbologia?... Ao evocar as águas, por excelência geradoras da vida física (as águas primordiais, as águas amnióticas do ventre materno...) a vieira torna-se, de imediato, num símbolo feminino ou lunar de fecundidade; e o facto de estar associada a Afrodite ou a Vénus, deusas do amor, ainda mais o sublinha, fazendo dela o emblema inequívoco da mais excelsa sexualidade.

Então, se a vieira é o símbolo do Caminho, a Iniciação nele contida estará certamente relacionada com os antigos Mistérios da fecundidade e o culto do Sagrado Feminino – afinal de contas, tal como o entendiam os gnósticos e o celebrava Prisciliano!...


MORTE

Prisciliano e mais seis dos seus discípulos foram condenados à morte pelo tribunal de Tréveris e inúmeras vozes logo se ergueram, apelando para a autoridade suprema do imperador Máximo. Dos juízes implicados no processo, somente um tal Teognasto e Martinho de Tours pediram clemência. Mas a maioria dos bispos envolvidos, com Itácio e Hidácio à cabeça, pressionaram o comprometido imperador que, desejoso de agradar ao sector mais poderoso da Igreja, isto é, ao mais ortodoxo e reacionário, confirmou a sentença.

Então, na primavera de 385, Prisciliano, junto com a matrona Eucrócia e ainda com os apóstolos Arménio, Felicíssimo, Latroniano, Aurélio e Asarino, foram decapitados.

Conta-se que Prisciliano, assumindo a condição de bispo até ao fim, subiu ao cadafalso vestido com os seus melhores paramentos episcopais. Se tal aconteceu, terá sido o modo mais adequado para transmitir o verdadeiro sentido do drama representado em Tréveris.

Porque, afinal, foi a Igreja que ali se condenou a si própria...


YOKANAN

Somente três séculos antes da cabeça de Prisciliano rodar em Tréveris (nome que, na língua portuguesa, faz lembrar Trevas...), o rei Herodes Antipas I havia cortado a cabeça de João Baptista.
Afinal, Herodes e a Instituição Católica tinham algo em comum: o horror aos profetas!

De facto, quer Herodes, quer a Igreja, haviam-se instalado num grau de poder considerável e instituído regras para o perpetuar. Por isso, não havia razão alguma para admitir quem questionasse aquele poder ou vaticinasse a sua queda; ainda para mais, invocando a inspiração divina!

Mas, ao longo dos tempos, sempre surgiram na face da Terra determinados seres com a função de intérpretes, porta-vozes ou arautos da divindade. Foram chamados de profetas, por uns, e, segundo uma outra tradição, "yokanans". Também eram dotados de vidência e falavam do futuro, embora esses anúncios de mudanças na história do mundo não fossem a sua principal missão. Competia-lhes promover o culto de Deus e desenvolver uma espiritualidade autêntica, combatendo a tirania e a ignorância, e velando pela justiça e pela consciência das populações.

Por serem reformadores sociais e religiosos, ungidos ou sagrados, confundiam-se, por vezes, com os próprios Messias por eles anunciados. Aliás, os Hebreus chamavam igualmente de Messias aos seus sacerdotes, profetas e reis... É também nesse sentido, como profeta ou yokanan, que interpreto a designação de Prisciliano como o “Messias Galego”.

Como é fácil de verificar pela história do mundo, o poder instituído quase nunca reconheceu, ou conviveu de forma pacífica com os yokanans, procurando ignorá-los ou silenciá-los. O método radical mais utilizado sempre foi o de lhes cortar a cabeça – ou não é na garganta que se situa o órgão da fala, que anuncia precisamente o que esses poderes não querem ouvir?...

Pois foi também assim que a Instituição Católica romana silenciou a voz de Prisciliano.


TREVAS

No cadafalso de Tréveris, a Igreja (de braço dado com o poder político e militar, casamento que se tem repetido vezes sem conta, ao longo dos séculos, com fartos proveitos para ambos os lados) dera provas da mais perigosa intolerância, convertendo-se no símbolo maior do despotismo fundamentalista.

Por fim, conseguira ganhar a Prisciliano a batalha da vida física mas perdera, irremediavelmente, a da imortalidade.

Depois da execução de Prisciliano, a fúria eclesiástica virou-se para os demais discípulos e seguidores, sobretudo nas dioceses da Lusitânia e da Galiza, obrigando-as, pela força das armas, a voltar à obediência ortodoxa. Dois comissários de Máximo, sob a supervisão do bispo Itácio, foram especialmente destacados para desmascarar e processar os seguidores do galego e espalharam o terror por toda a Hispania.

No entanto, o imperador Máximo só sobreviveu três anos à execução de Prisciliano e o seu destino foi exactamente o mesmo: acabou decapitado por Teodósio, vindo do Oriente para reunificar o Império.

 Logo após à morte de Máximo, o bispo Martinho de Tours, que havia defendido Prisciliano no julgamento de Tréveris, conseguiu atenuar o movimento repressivo e estabelecer, ainda que momentaneamente, alguma justiça. Numa acção concertada com outros bispos peninsulares fez com que Itácio e Hidácio, os grandes adversários de Prisciliano, fossem excomungados, destituídos e desterrados, por conduta pouco cristã ao longo de todo o processo e por haverem promulgado a pena de morte.

O facto de Martinho haver tomado a defesa de Prisciliano e, depois, dos priscilianistas, poderá explicar a razão de, até aos dias de hoje, ser um dos santos mais venerados pelas populações do oeste peninsular, com inúmeros lugares de culto na Galiza e em Portugal.

Mais tarde, a Igreja retomou a perseguição aos priscilianistas, ainda que nunca tenha conseguido acabar de vez com a heresia nem libertar-se do “pesadelo” que, para si, constituía a sua memória.

 Não cabe dúvida de que a Igreja Católica romana seria outra se Prisciliano tivesse levado a cabo a sua reforma, ou se existissem mais Martinhos... Mas, infelizmente, são os Itácios e os Hidácios quem predomina e controla a máquina; e mesmo que alguns acabem afastados, outros foram sempre tomando o seu lugar, com um apetite cada vez mais voraz pelo sangue e pelo poder.


DICTINIO

Para além de Prisciliano, considero que a outra grande figura desta saga é o também galego Dictinio, que se transformou no herdeiro espiritual do heresiarca.

Dictinio era filho do bispo de Astorga, Simpósio, sendo ambos, pai e filho, discípulos de Prisciliano. Foi ele quem se deslocou a Tréveris para resgatar os corpos dos mártires e os trouxe de volta à Galiza.

Para além dessa viagem decisiva para a instauração do futuro Caminho de Santiago, Dictinio promoveu um priscilianismo vivo e activo, tendo escrito um opúsculo intitulado "Libra" que, a avaliar pelas críticas que gerou, fez furor no seu tempo. Infelizmente, não se conservou nenhum exemplar; sabemos apenas da sua existência pelas referências negativas que Santo Agostinho lhe dedica na sua obra "Contra Mendatium" (Contra a Mentira).

Ali refere que os priscilianistas juravam a inviolabilidade dos segredos do grupo, usavam santo-e-senha para se reconhecerem e consideravam lícito mentir para proteger a sua existência. Mas muito antes, Clemente de Alexandria, canonizado como santo pela Igreja, não aconselhava os seus alunos a negar a existência do Evangelho Secreto de Marcos “mesmo sob juramento”?... E não dizia o santo que “nem todas as coisas verdadeiras devem ser ditas a todos os homens”, acrescentando que “a luz da verdade deve ser escondida daqueles que são mentalmente cegos”?...

Portanto, a ética proposta por Dictinio não era nova e baseava-se no antigo princípio de que a verdade só devia revelar-se a quem de antemão a aceitava... Não só era hermetismo puro, como uma regra de sobrevivência e de vida em clandestinidade. A lição da morte de Prisciliano havia sido aprendida...

Mais tarde, Dictinio foi consagrado como bispo, vindo a ocupar a sede episcopal de Astorga, passando seu pai, Simpósio, para a de Ourense. No concílio de Toledo, celebrado no ano 400, Dictinio e Simpósio abjuraram a heresia priscilianista, que voltara a ser fortemente perseguida e, por isso, se ocultava já em sociedades secretas espalhadas por toda a Galiza.

Mas Dictinio, nos seus escritos anteriores, não referira o valor da simulação, afirmando ser lícita a mentira para proteger os segredos e a existência do grupo?... Mesmo assim, ou talvez por isso, Dictinio de Astorga acabou por ser canonizado pela Igreja como santo.

Mas regressemos ao tempo em que Dictinio se dirigiu a Tréveris.


GALIZA

Morto Máximo a mando de Teodósio, que se transformou no imperador romano do Oriente e do Ocidente, o jovem Dictinio, junto com outros discípulos galegos de Prisciliano, deslocaram-se a Tréveris solicitando os corpos dos executados, o que lhes foi concedido.

A volta à Galiza terá sido por mar, tal como depois chegará, supostamente, o corpo de Santiago.
Toda a Galiza recebeu com extremo respeito e veneração aqueles restos mortais que, depois, foram sepultados na zona de Padrón, terra natal de Prisciliano. O seu túmulo tornou-se, de imediato, em objecto de culto e meta de peregrinação.

Compreende-se, por isso, a preocupação de Sulpicio Severo, ao escrever que "morto Prisciliano, a heresia que irrompera por sua culpa, fortaleceu-se mais e propagou-se amplamente. Os seus seguidores, que antes já o haviam honrado como santo, começaram a render-lhe culto, como mártir. E mais ainda, jurar por Prisciliano considerava-se como o juramento supremo."

Portanto, a morte de Prisciliano não impediu que amainassem as ondas de priscilianismo que varriam a Península Ibérica. A Igreja não tardou em reagir com nova repressão, que fez os priscilianistas ocultarem as suas crenças e também, com toda a probabilidade, fazerem desaparecer o túmulo do "herege"... Inúmeros seguidores fecharam-se, então, em associações secretas, iniciadas, muito possivelmente, por Dictinio, e sediadas maioritariamente na Galiza, o seu habitat natural.

A Galiza, ao contrário das aparências "religiosamente corretas", sempre foi uma terra rebelde para com Roma, precisamente pela sua natureza mágica e espiritual. Daí também o obstinado empenho da Igreja romana em cristianizar as suas tradições e em tomar a Galiza como sua, tentando controlar a energia proveniente do "vulcão" espiritual de Santiago e do respectivo Caminho... Mas é um facto que, ao longo do tempo e por debaixo das tais aparências, uma boa parte do clero galego sempre manteve secretamente vivo, em igrejas e mosteiros espalhados por toda a Galiza, o cristianismo gnóstico-druídico de Prisciliano.

Tanto assim que, três séculos decorridos sobre a execução de Tréveris, subiram à tona alguns vestígios daquela corrente subterrânea: no IV Concílio de Toledo, no ano de 683, clérigos galegos voltavam a ser acusados de priscilianismo!...E assim por diante, ao longo dos séculos vindouros, sendo minha convicção de que, por mais perseguida que tivesse sido, a corrente priscilianista sempre continuou a fluir e se manteve bem viva até aos nossos dias. Por isso, a Galiza de hoje resplandece de Mistério e as flores da mais elevada espiritualidade bordejam o seu Caminho.

Mas foi no longínquo ano de 813 que ocorreu o evento que levaria Prisciliano à imortalidade: o bispo de Iria Flávia, de nome Teodomiro, anunciou a toda a cristandade a descoberta do túmulo do apóstolo Santiago...


LENDA

Conta-se que o corpo decapitado de Santiago foi depositado numa barca que, desde a Palestina atravessou o mar Mediterrâneo e bordejou toda a costa atlântica portuguesa, indo encontrar a foz do rio Ulla, que subiu até Iria Flavia ou Padrón, na Galiza. Simbolicamente, a barca de pedra representa um túmulo, ou melhor, uma urna, ali chegada por mar...

Depois, a lenda diz que se passaram vários séculos até o túmulo, entretanto perdido, ser descoberto pelo pastor Pelágio (noutra versão, Pelágio era um monge bretão) que logo avisou o bispo de Iria Flavia, Teodomiro. Tal sucedeu após uma misteriosa estrela assinalar o lugar preciso do campo onde o túmulo se encontrava. Daí, também, o surgimento da futura metrópole denominada Compostela, ou "Campus Stellae", o "Campo da Estrela". No entanto, Compostela também pode significar "enterramento", ao provir do latim "compositum". Creio que as duas hipóteses estão correctas e convergem para o mesmo fim.

Existem vestígios débeis e historicamente discutíveis da suposta passagem do apóstolo Santiago pela Ibéria, onde terá vindo espalhar a palavra do evangelho, mas sabe-se (e isso já é um dado histórico) que acabou a sua vida na Palestina. De facto, no século I, Santiago foi preso e sentenciado à morte por decapitação, em Jerusalém.

Portanto, é legítima a pergunta: o que fazia o corpo de Santiago, morto há mais de oitocentos anos, em tão longínquas paragens, na terra natal de Prisciliano?

Prisciliano estava igualmente morto. Mas, mesmo que apenas se note em mudanças abruptas da História, os Messias têm o estranho hábito de ressuscitar...


CAMINHO

Considero muito provável que os dois personagens envolvidos no episódio que assinalou a descoberta do túmulo de Santiago, isto é, o pastor ou ermita Pelágio e o bispo Teodomiro, tenham sido priscilianistas convictos.

Vimos anteriormente que a Galiza nunca havia deixado de ser ocultamente priscilianista e os responsáveis pela continuidade da heresia sabiam, com toda a certeza, onde se encontrava o corpo de Prisciliano, oportunamente desaparecido aquando da perseguição aos discípulos e seguidores. Assim que, de modo absolutamente genial, terão levado toda a cristandade a reverenciar o túmulo de Prisciliano, passando, simplesmente, a chamá-lo... "Santiago".

Era a resposta inspiradíssima dos discípulos de Prisciliano à Instituição que o havia decapitado por heresia, bruxaria e obscenidade e que, a partir daí, se ajoelhava perante as suas relíquias...

Mas como terá sido possível tamanha mistificação sem que a toda poderosa Igreja Romana desse conta?! Foi possível porque, apesar de tudo, lhe convinha...

A descoberta do túmulo do "apóstolo Santiago" ocorreu num momento extremamente oportuno para a expansão da Igreja imperial, uma vez que se havia iniciado na Ibéria a reconquista cristã face à ocupação muçulmana. Ora fixando na Galiza uma fortíssima meta de peregrinação, estava a acelerar-se enormemente aquela reconquista. Por outro lado, também permitia que a Instituição romana cristianizasse, finalmente, o ancestral e importantíssimo Caminho das Estrelas, absolutamente pagão e mágico, que não lhe pertencia.

Portanto, sendo os priscilianistas a imporem o corpo do seu mestre, ou sendo a Igreja a inventar a lenda, o certo é que ambas as hipóteses levavam, na prática, a um aumento significativo do poder e do provento da Instituição – e a Igreja também nunca deitou fora um bom negócio...

 Mas não deixa de ser irónico constatar que o traçado de peregrinação cristã mais conhecido do mundo assenta, afinal, num ancestral Caminho pagão e que esse Caminho conduz, com fortíssima probabilidade, ao túmulo daquele que a Igreja perseguiu e executou sem piedade, ainda que, agora, venere piedosamente as suas relíquias...

Essas relíquias repousam na cripta da catedral de Santiago de Compostela.

 Claro que não considero determinante saber, ao certo, quem se encontra no "túmulo do apóstolo"; aliás, tenho a certeza de que nem Prisciliano, nem Santiago se envolvem na polémica do "quem é quem", embora a verdade deva ser conhecida e retiradas as respectivas ilações. O importante é perceber que o Caminho de Consciência de Santiago poderá ser uma verdadeira e quiçá, derradeira, oportunidade para o homem comum dos nossos dias, que vive condicionado pelo intelecto e tristemente encarcerado pela religião - uma oportunidade de encontro consigo mesmo, de libertação e de iniciação espiritual.

 Percorrer esse Caminho, com consciência, será ir ao encontro da divindade por dentro de cada um, reconhecendo e vivenciando o mistério do Cristo interno. Exactamente como também escreveu S. Paulo, o gnóstico.

Prisciliano, um outro gnóstico, ensinou que o Portal do Conhecimento ou da Gnose se encontra no interior de cada ser humano e que, por isso, a respectiva Iniciação-Revelação-Redenção depende exclusivamente de uma chave interna, individual, que também poderá ser encontrada seguindo as referências de um caminho exterior iniciático.

E quem disse que aquele percurso de fora teria que ser explorado, em exclusivo, por uma instituição supostamente intermediária?... A própria instituição, claro está! Mas os verdadeiros caminhos iniciáticos, como o de Santiago, sempre se mostraram rebeldes e incontroláveis por qualquer tutela humana. O espírito de Prisciliano veio a converter-se no seu pólo central, como farol de um caminho de liberdade, onde cada peregrino poderá vivenciar a sua gnose.

Deste modo, a ressurreição de Prisciliano não corresponde, evidentemente, ao ressurgir do corpo decapitado no século IV, mas sim do seu pensamento e dos seus valores, que agora regressam, em força, à pauta do mundo. E com o seu retorno poderá também regressar o sonho de liberdade, o enamoramento pela vida e a consequente vontade de rotura psicológica com os padrões do sistema totalitário e controlador de sempre, provocando a maior de todas as revoluções: a da consciência...

Esse poder libertador encontra-se disponível para quem fizer o Caminho de Santiago por dentro de si mesmo, como leito para aquela corrente renovadora que derruba os diques do pensamento artificial forâneo, limpa mentes e corações e faz recomeçar tudo de novo... Trata-se, portanto, de um impulso extraordinário, contínuo e eficaz para que cada um busque e vivencie a sua própria gnose!

Ou seja, dito muito clara e simplesmente, Prisciliano ressuscitado poderá ser qualquer de nós...