E, súbito, anoiteço
E nas minhas alturas misteriosas
Despontam as estrelas...
Teixeira de Pascoaes
1. DO OUTRO LADO DO ESPELHO
...nin que ollo alerta vivas
como a
cordura manda,
que donde menos penses
tamaña
lebre salta.
Rosalía de Castro
Sabia que a Galiza era terra de
mistérios e prodígios, mas não estava preparado para tanto. Por pouco não morri
de susto.
Aconteceu numa noite de verão, no cimo
de uma montanha galega. Sem aviso prévio, fui virado do avesso e despejado de
toda a soberba intelectual racionalista que então comandava a minha vida, experimentando
estados de percepção que desconhecia por completo. Tratou-se de uma experiência
limite, tão bela quanto terrível, que me comoveu até às lágrimas e que,
simultaneamente, me encheu de pavor.
Digamos que foi um contato com o
sobrenatural, que deixou a sua marca gravada no mais fundo de mim e que ainda
hoje consigo somente descrever, sem saber explicar o que se passou.
Antes de
subir a montanha, não havia qualquer relação especial entre mim e a Galiza. Do
território galego conhecia apenas o percurso entre a fronteira portuguesa e
Santiago de Compostela, que havia visitado em criança, levado pelos meus pais.
Só muitos anos depois li um ensaio sobre o Caminho das Estrelas e logo me
interessei pelo tema, atraído também pela sua plasticidade, pois estava ligado
profissionalmente ao cinema e existia a possibilidade de fazer uma série de
filmes sobre o mítico caminho, destinados à televisão portuguesa. Para estudar
melhor essa hipótese, resolvi conhecer os seus pontos mais significativos e fazer
um primeiro levantamento fotográfico. Devido à minha tendência em começar as
coisas pelo fim, iniciei essa viagem pelo cabo Finisterra.
As estrelas
assinaladas pelo Caminho de Santiago são as da Via Láctea e não têm a ver com
aqueles outros corpos celestes que também chamamos de estrelas sem o serem, de
fato, e que provocam um espetáculo grandioso no céu: as estrelas cadentes. Naquele
ano, coincidindo com as datas da minha viagem à Galiza, iriam verificar-se
condições muito especiais no firmamento, que faziam prever uma chuva anormal de
estrelas. Foi essa perspectiva que me aliciou a fotografar aquele espetáculo
extra no céu do Caminho de Santiago, juntamente com a exploração das suas vias
terrenas.
Mal sabia o
que realmente me esperava.
Havia
chegado a Nóia ao entardecer e resolvi, um pouco ao acaso, porque não conhecia
a região, subir a um dos pontos mais altos que apareciam no mapa. Preparava-me
para uma noite de gala e pode dizer-se, em completa verdade, que assim aconteceu.
Fotograficamente,
foi um desastre total. De um momento para o outro surgiu uma neblina que me
retirou totalmente a visão do céu e me lançou na mais completa escuridão. Contrariado,
recolhi o equipamento e preparava-me para voltar ao carro quando um arrepio me
subiu demoradamente pela espinha, prenunciando algo de muito estranho.
Inquieto,
olhei em redor e vi que na minha direção avançava um banco de névoa mais
espessa, que me rodeou num instante, não me dando tempo para me orientar. Parei
e sentei-me numa grande pedra com que havia chocado, quase me fazendo cair.
Lembrei-me de ter lido algures que as nevoas súbitas eram frequentes na Galiza,
e que desapareciam tão depressa como chegavam. Para mais, estando quase a mil
metros de altitude, talvez fosse igualmente normal que o pico daquela montanha
tivesse criado uma nevoa com efeito de capacete. Tudo bem, deveria manter a
calma, esperar pacientemente que o efeito se desfizesse e pouco depois já
estaria no aconchego do meu quarto de hotel.
Isto era o
que dizia para mim mesmo, sentado com crescente desconforto físico e psíquico,
abraçado aos sacos do equipamento fotográfico, mas com o coração cada vez mais aos
pulos.
O tempo
passava em eternidades que se sucediam e as brumas continuavam imunes e
impenetráveis por qualquer lanterna. Até davam a sensação de se terem tornado
mais densas, configurando como que uma galeria de tuneis que parecia não ter
fim. Eu começava a ficar gelado e tremia (confesso que não só de frio), mas ao
concentrar-me no frio aferrava-me ao lado físico e afastava de mim outras
inquietações. Até que um impulso súbito me fez largar os sacos e ficar de pé.
Não consigo
explicar o que aconteceu depois. Foi como num sonho, em que as situações mais
absurdas se sucedem com toda a naturalidade. Senti-me a caminhar ilogicamente pela
névoa dentro e, de súbito, houve como que uma explosão de luz sem estampido, um
imenso clarão branco que instantaneamente me cegou. Quando voltei a abrir os olhos,
todo o meu corpo estremeceu e quase colapsou.
Foi quando o
vi.
O corpo não
parava de tremer e balançava espasmodicamente entre a emoção suprema pela maravilha
que contemplava e o pânico mais absoluto infundido por aquela situação, completamente
por fora de todos os parâmetros que conhecia.
Á minha frente
erguia-se uma construção monumental a brilhar intensamente, de uma beleza e
imponência inconcebíveis, mas, ao mesmo tempo, incrivelmente familiar. Num
repente vertiginoso, soube que se tratava do Pórtico da Glória, feito de
energia pura e emanando continuamente um poder e majestade inconcebíveis.
Uns dias antes, havia visitado a catedral de
Santiago de Compostela e muito me impressionara o renomado e excepcional Pórtico
da Glória, pela sua beleza tranquila e profunda solenidade. Achei que representava
genialmente, na pedra, a superação final e a transcendência do homem. Este
outro Pórtico nada tinha de humano, e a sua contemplação provocava-me cada vez
mais um misto de felicidade intensa e de terror absoluto. Dele se desprendiam fluxos
incessantes de luz, como uma força- sentimento- energia ininterrupta, a que
imediatamente se associava a noção de Glória, mas que não cabia na minha mente.
No entanto, causava-me uma exaltação nova e inigualável, que ultrapassava todos
os meus limites e fronteiras racionais; lembro-me de ter pensado, sem pensar,
que aquela poderia ser a entrada do Reino de Deus.
Antes de
prosseguir, devo dizer que sempre me tive na conta de uma pessoa equilibrada,
muito pouco dada à fenomenologia paranormal e ao sobrenatural, a não ser no
cinema. Por outro lado, tive uma educação católica, mas também não exercia
qualquer prática religiosa e Deus era apenas uma referência longínqua, por fora
do meu leque de interesses da altura. Para enfrentar aquela situação, não havia
explicação que me ajudasse, nem tampouco me podia apoiar no lado metafisico. Sem
saber como reagir, fiquei completamente indefeso.
E vivi, finalmente,
um êxtase profundo e esclarecedor, que marcava indubitavelmente o fecho de um
ciclo, com a morte daquele “eu” que reinara em mim até subir a montanha. O Caminho
de Santiago que me atraíra à Galiza por um motivo colateral revelara-se, enfim,
na sua verdadeira dimensão transcendental, como caminho de morte e ressurreição.
Somente
depois de tal experiência é que dei conta da quantidade de monumentos
funerários da mais remota antiguidade que se encontram na Galiza, bem como na
sua própria tradição popular, intimamente ligada ao fenômeno da morte, tornando
claro que a peregrinação a um local de morte contém o desejo, consciente ou
inconsciente, de renascimento espiritual. Tanto a morte como o renascimento
estão muito bem assinaladas não só nos monumentos, mas sobretudo na atmosfera
especial que envolve as Rias, os campos e as montanhas de uma Galiza que também
se situa, ela própria, no lugar onde morre o sol, ou no extremo oeste da
Europa.
A morte ligada ao oeste concorda com uma
tradição ancestral, com inúmeras referencias míticas: é a oeste que se situam
as Ilhas Bem-Aventuradas, lugar de repouso dos heróis após a morte, bem como a
Ilha de Avalon, para onde se dirigiu a barca com os restos mortais do Rei
Artur. E foi na costa ocidental galega que encalhou uma outra barca com o corpo
de Santiago.
A própria
Agartha, sanctum sanctorum do planeta,
também é conhecida como “País do Ocidente”, onde não se entra com corpo
físico...
Senti-me
compulsivamente lançado nessa peregrinação de morte, através de um traçado novo
do Caminho por fora e por dentro de mim. E eu sabia que somente me adentrando
por esse Caminho com a humildade do peregrino e a vontade do guerreiro poderia,
algum dia, voltar a encontrar e, dessa vez, atravessar, o Pórtico da Gloria da
minha vida.
Não sei
quanto tempo fiquei defronte daquele Portal e não pude reter muito mais do que
ali se passou. De súbito, como num efeito vertiginoso de zoom ao contrário,
tudo se desfez. Tive alguma dificuldade em reequilibrar os meus parâmetros de visão,
mas quando consegui voltar a focalizar distingui o planeta Vénus num céu aberto
e totalmente limpo, brilhando como estrela da manhã e anunciando o alvorecer próximo
de um novo dia.
Em volta, os
picos das montanhas vizinhas faziam-me outra vez companhia. O nevoeiro cerrado
desaparecera por completo, deixando apenas uns farrapos de neblina pairando no
ar. O saco com o equipamento fotográfico estava a poucos metros e, um pouco
adiante, alheio a tudo o mais, o meu carro esperava por mim.
****
Quando me
sentei ao volante, a minha mente era um vulcão. A componente racional tentava
por todos os meios retomar o controle e trazer-me de volta à realidade conhecida,
empenhando-se em me fazer ir embora dali o mais rápido possível e esquecer o
sucedido. Mas as razões da mente não contavam com aquelas outras do coração,
imerso num absurdo estado de felicidade que não me fazia sentir ameaçado. Um
cansaço bendito, vindo do fundo de mim, abateu-se sobre o desfilar sem fim dos
argumentos lógicos. Recostei-me no assento e mergulhei num sono profundo.
Acordei já
com o sol alto, e vivendo as últimas imagens de um sonho extraordinariamente
nítido com o Pórtico da Glória, no cimo daquela montanha. No sonho, dirigia-me
a ele e preparava-me para cruzar para o outro lado, até que percebi que não
tinha corpo e, ao constatá-lo, acordei. A minha mente aproveitou para pôr de novo
em dúvida o sucedido na noite anterior: fora com toda a certeza um sonho, que
havia continuado daquela maneira. Mas fosse o que fosse, havia estabelecido em
mim uma relação com a Galiza, inexistente até ali.
De fato, em
sonho ou num outro estado desconhecido, sabia que vivera uma experiência
importante para o resto da minha vida, completamente por fora da realidade conhecida.
Sentia ainda bem fresca uma vivência iniludível e que, seguramente, teria efeitos
e consequências. Provavelmente, tudo continuaria por fora na
mesma, pois o que havia agora de diferente era por dentro de mim; e mesmo
mergulhando no quotidiano, ou embrulhando-me nas questões mais complicadas da
vida, sabia que nada me poderia fazer esquecer aquela noite numa montanha longínqua,
onde senti violentamente, mas apenas ao de leve, o toque sobrenatural da Galiza.
Para não dar ao sucedido uma conotação
religiosa, que poderia levar a outras interpretações menos corretas, talvez pudesse
dizer que, por momentos, havia atravessado para o outro lado daquele espelho
que, até ali, refletia a minha realidade.
Quando
comecei a descer a montanha, uma manhã não menos gloriosa despejava-se pelas
vertentes. Cruzei-me com águias e corvos que me davam os bons dias e atravessei
campos exageradamente verdes, salpicados de branco e negro pelas inúmeras vacas
que me olhavam num silencio curioso, ou que também me saudavam entoando
demoradamente e no tom preciso o OM sagrado...
Lavei a cara
numa ribeira que corria, cristalina e brilhante, pelo meio das pedras, formando
uma pequena cascata à beira da estrada. Ouvi-a claramente rir-se de mim, mas
com carinho, oferecendo-me a sua frescura, e ri-me, igualmente, de mim mesmo,
da minha tremenda atrapalhação da véspera e do terror metafísico que sentira.
A razão
encolhia a sua arrogância, mas não ía largar sem mais todo o poder de que
dispunha. Ela sabia que o estado de exaltação em que me encontrava não iria
resistir aos embates da vida quotidiana, mas não sabia o quão profundo estava
gravado em mim aquele sabor agridoce e exultante da magia da Galiza, e que eu
já não era o mesmo.
De fato,
entre mim e aquela montanha decorreu um misterioso processo interativo que nos
uniu para a vida. Desde logo, ali se selou uma relação intrínseca, que depois
também gerou, só o percebi com o passar do tempo, a necessidade de uma maior
proximidade física; na verdade, sentia cada vez mais a inevitabilidade do meu
corpo voltar a interagir com o corpo da Galiza, tal como havia acontecido no
cimo daquela montanha. E esse novo desiderato poderia, sim, constituir uma
alteração considerável na minha vida; tanto foi assim que, alguns anos passados
me mudei, com o meu núcleo familiar, para Santiago de Compostela.
Mas muitas
outras mudanças significativas ocorreram antes.
****
Por muito
que repetisse para mim mesmo que era um processo interno e que, por fora, tudo
continuaria na mesma, eu estava muito enganado. Na verdade, o que se tinha
passado correspondia ao despertar de um vulcão que não tardou muito a entrar em
atividade, precipitando-se por todas as vertentes da minha vida.
As montanhas
da Galiza tinham posto muita coisa em causa e comecei, então, a varrer o meu “armazém
de dados”, onde se acumulavam conceitos, preconceitos, teorias, rótulos,
classificações e análises que definiam e condicionavam a minha vida .... Decidi que romper esse “casulo” era o combate que mais me
interessava travar comigo mesmo e percebi, claramente, que aquele era o sentido da rebeldia que o poeta e pensador Fernando Pessoa
apelidou de “Novas Descobertas”; assim sendo e, com a consciência em livre expansão, resolvi, também, juntar-me
à mesma causa.
Por motivos profissionais,
eu tivera que ler a obra de Fernando Pessoa, cuja “Mensagem” queria transpor
para o cinema e, quanto mais lia, mais me identificava com o seu pensamento; foi
desse modo, sem estranheza ou esforço algum, que me defrontei com a questão da
tradição portuguesa do “Quinto Império”. Na verdade, mais do que um
conhecimento, tratou-se de um inequívoco reconhecimento. Senti como se toda
aquela temática estivesse latente por dentro de mim e, de súbito, caísse o pano
que a ocultava, descobrindo um sentido, um propósito e um caminho completamente
insuspeitos até aí.
A minha vida
estava a ponto de mais uma grande convulsão interna, na sequência da outra
acontecida na Galiza. Mas que relação existiria entre as esperanças espirituais
mais profundas do povo português e as montanhas mágicas do noroeste peninsular?
O que tinha a Galiza a ver com o Quinto Império?
Tal como expliquei em livros
anteriores, o Quinto Império corresponderá a um novo ciclo espiritual da
História do mundo, assentando na Cultura e na Liberdade, no qual a igreja
romana de Pedro dará lugar à igreja gnóstica de João ou do Espirito Santo,
tanto no Ocidente como no Oriente. A sua implantação tem tudo a ver com a
Tradição Lusitana e com o trabalho que os portugueses vêm desenvolvendo ao
longo da História, umas vezes a descoberto, outras debaixo das asas do
mistério...
Portanto, impunha-se realmente a
questão: o que tinha a Galiza a ver com o Quinto Império?
Mais uma
vez, não tinha resposta, mas sabia que tinha que a encontrar. E que não seria
pelo lado de fora que chegaria a alguma conclusão. Percebi, então, que tinha
perante mim o desafio mais ousado, louco e maravilhoso que alguma vez imaginei:
ler uma História que não está escrita, percorrer Caminhos que não existem e
cruzar um Pórtico que não é deste mundo...
Um absurdo
total!
Só podia rir
de mim mesmo e fazer minhas as palavras de António Vieira: “Não há maior comédia
que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças
a Deus ou zombar do mundo, não tenho mais que olhar para mim. ”
****
Para além do
meu núcleo familiar, que sempre apoiou e acompanhou todas estas vivências, o
meu refúgio era o trabalho. O cinema preenchia uma grande parte do tempo e, na
minha cabeça, pairavam muitos filmes por fazer e outros tantos sonhos por
cumprir. No entanto, não tardei a perceber que a energia tremenda que essa vida
exigia me fazia falta para percorrer o caminho interno, que se tornara o mais
importante para mim. Com a noção de tudo isso e de comum acordo com a minha
mulher, cúmplice perfeita nessa busca, arrumámos a vida citadina de Lisboa, fizemos
as malas e mudámo-nos para o campo.
Essa atitude
acabou por se revelar fundamental, pois a natureza converteu-se no mestre de
sabedoria que faltava. Tinha sido em plena natureza que me haviam confrontado
com o Pórtico da Glória e seria também através da natureza que haveria de o
reencontrar. Em pleno campo, a minha vida foi perdendo forma e ganhando
sentido. Aos poucos, ía sendo iniciado numa outra descrição do mundo, num outro
caminho, e tudo me fazia substancialmente mais feliz.
O termo “iniciado”
deriva do latim “initium”, que significa início ou começo. Portanto, o iniciado
é aquele que é introduzido numa determinada via de conhecimento e com ela
estabelece um vínculo. Normalmente, através de uma instituição. No meu caso,
tudo se passou de forma espontânea e assim teria que seguir até ao final. Ou
seja, todo o apoio teria que me chegar por dentro, pela via interna, passando
do abstrato para o concreto. Deste modo, não poderia nunca ser o pensamento a
dirigi-lo, sobretudo um pensamento pré-definido e condicionado por critérios pré-existentes.
Acima de tudo, teria que me apoiar na espontaneidade, como referência da alma.
Claro que a
transformação interior poderá ser auxiliada pelo lado de fora, e tinha o
exemplo do que vivera no Caminho de Santiago. Ao percorrer um caminho assim,
seja o de Santiago ou qualquer dos outros caminhos existentes no mundo, o ritmo
do peregrino acerta-se com o compasso da natureza, estabelecendo-se uma
sintonia com a terra, as árvores, as rochas da montanha, as aguas dos regatos,
as borboletas que esvoaçam..., possibilitando a entrada num estado de
receptividade ou de vaso comunicante com os ritmos do próprio planeta que,
conforme a profundidade do alinhamento, o poderão conduzir a um processo de
transformação e de ascese.
Por outro
lado, também existem locais muito especiais na superfície da Terra que oferecem
inúmeras dádivas de energia. Esses vórtices, maiores e menores, refletem o
apoio telúrico do planeta aos homens que habitam a superfície e fazem esbater
as fronteiras entre planos e mundos, a ponto de se tornarem, nalguns locais,
extremamente tênues ou mesmo translúcidas.
Alguns
desses lugares correspondem aos chamados “chakras” planetários ou outros, de
menor dimensão, segundo um conceito que desenvolverei mais adiante.
Muitos
desses “locais de poder”, como alguns os chamam, foram assinalados pelo homem
desde os tempos da pré-história. Os menhires, as pirâmides, as inscrições
misteriosas em cavernas, os templos grandiosos ou mesmo as simples capelinhas
perdidas na paisagem, muitos deles demarcando a posição das veias telúricas da
terra, comprovam que o homem antigo detinha um conhecimento notabilíssimo sobre
o mundo que o rodeava e que era sensível àquelas forças invisíveis, assinalando,
para a posteridade, os referidos locais.
No entanto,
a nossa atual civilização parece estar fora dessa posteridade, pois continua a
ignorar ou a desprezar essa dádiva, substituindo-a pelo regime absolutista da
razão, apoiada num fantástico progresso tecnológico e científico. O problema é
que, com o estado a que chegou o mundo, estamos em risco crescente de perder
tudo aquilo que, com suposta vantagem, veio substituir aquele outro
conhecimento ancestral. O que também significa que a roda do destino não é
isenta de ironia...
Resta dizer
que nem sempre, ao longo das eras, os referidos locais de poder permaneceram
imutáveis. Muitos poderão estar ativos por milénios, serem desativados e
voltarem à atividade, ou surgirem outros, de acordo com os tempos e o
desenrolar da história do homem. Portanto, o verdadeiramente importante não
serão propriamente os locais, mas o conhecimento que permite detectá-los e
utilizar a respetiva energia.
No meu caso,
e por motivos que desconheço, o lugar onde me defrontei com um poder
inimaginável e que representou a morte da vida que levava até aí, foi uma
montanha na Galiza. Por isso, a Galiza passou a fazer parte integrante de mim e
da minha nova vida. Entrou no meu ADN. E apesar de saber que o percurso que me
foi apontado é interno, é na Galiza que também oiço bater o meu coração. Por
vezes, confundindo-se com o estalar das ondas na noite, com a aragem que agita
a neblina num vale encantado ou com o doce calor do sentimento que emana da
terra generosa e meiga, que agora também considero como minha.
Por direito
de morte e renascimento.
2. A PAR E PASSO
Se os povos
na terra se unissem sempre pelos laços espirituais, se os acidentes da história
não predominassem por vezes, ninguém estaria mais unido que Portugal e a
Galiza.
Leonardo
Coimbra
Portugal e Galiza são a extensão
natural um do outro.
Detêm conjuntamente aspetos muito significativos da história, da língua, da cultura,
do temperamento e do sentimento dos seus povos, experienciando em comum uma
profunda saudade por algo indefinido que passou, mas que, simultaneamente, se
apresenta como futuro.
Pode dizer-se
que Portugal e Galiza são irmãos de muitas vidas. Por isso, ao estudar-se a
História da Galiza, estudam-se também, os primórdios da História de Portugal,
como ramos de uma árvore que tomaram direções aéreas distintas, mas que
continuam ligados entre si pelo tronco e alimentados pelas mesmas raízes.
Podemos
constatar tudo isso numa breve incursão por essas raízes, mergulhadas numa
terra que hoje se reparte pelos dois territórios. Sem necessidade de ir mais
longe, partimos do século IV, onde os atuais Galiza e Portugal, então
denominadas Gallaecia e Luxitania, eram províncias de um império
romano em decadência.
Por essa
altura, mais precisamente no ano 340, nasce Prisciliano, personagem quase
desconhecido e que, sob a tónica da verdade e da liberdade, se entregou à
defesa dos valores do cristianismo original, corrompidos pelo poder crescente
da Igreja Católica.
Foi executado em 385, a mando da própria Igreja, cada vez mais
avessa àquelas ideias estapafúrdias e totalmente descabidas na nova linha de
culto. Sobre Prisciliano, disse Agostinho da Silva: “Nada ou quase nada se conhecendo a seu
respeito, posso imaginar para ele e lho atribuir tudo quanto a mim me
apeteceria ser e proclamar. ” Pensando exatamente do mesmo modo, considero que
os valores em causa se converteram na tónica perene dos territórios que
serviram de palco à vida de Prisciliano e acompanharam a sua ânsia desmedida de
liberdade: Gallaecia e Luxitania, ou Galiza e Portugal.
Pouco depois da sua
morte, em 409, chegaram os Suevos à província romana da Gallaecia e aí
se estabeleceram definitivamente. Faziam parte de uma série de povos germânicos
que deambulavam pelo império e que foram bem recebidos pelas populações locais.
No ano seguinte, o rei
suevo Hermerico consegue fazer reconhecer o Reino Galego, assinando um pacto
com o imperador romano Honório, no qual aceitava, ainda que teoricamente, uma
vinculação a Roma. Estava constituído o primeiro reino medieval da Europa,
compreendendo os territórios que são, atualmente, a Galiza, Astúrias, Leão e
todo o norte de Portugal, até ao rio Douro. A capital era Braga que, nos dias
de hoje, ainda é a capital da província portuguesa do Minho.
A autoridade romana
enfraquecia paulatinamente, chegando mesmo a desaparecer em grande parte da
Península e o sucessor de Hermerico, de seu nome Requila, estendeu o reino
galego dos suevos pela província da Lusitânia, chegando até onde, hoje, se
encontra Lisboa. As novas fronteiras mantiveram-se estáveis, embora sob
diferentes domínios, até ao século VII, permitindo uma fusão dos galaicos, que
eram cristãos, com os suevos, convertidos ao cristianismo em 449 pelo rei
seguinte, Requiário, misturando-se, então, com os lusitanos e mesmo com os
romanos que ali seguiam. Foi desse caldeiro de culturas que nasceu o espirito
da nação galega, sobrepondo-se a qualquer diferença étnica, às flutuações das
políticas e às vicissitudes das guerras travadas depois com os visigodos,
aliados do imperador de Roma.
De fato, a consolidação
do reino galego constituía uma ameaça ao domínio, ainda que enfraquecido, de
Roma. A situação foi denunciada pela antiga aristocracia galega, que havia perdido
os seus privilégios, e em 456, Roma fez avançar as tropas do visigodo
Teodorico. Na batalha do rio Orbigo, perto de Astorga, os galegos foram
vencidos e o rei Requiário, que se retirara para onde é hoje a cidade
portuguesa do Porto, foi capturado e morto.
Poderia ter sido o fim
do reino galego, mas o novo rei Maldras conseguiu negociar com os visigodos e
manter a união do povo. O seu sucessor, Regismundo, assinou uma paz duradoura
com os visigodos, mas teve que abandonar o catolicismo como religião oficial,
trocando-o pela religião arriana dos visigodos que, aliás, era a professada
anteriormente pelos suevos. E tudo se manteve assim até ao ano 550 em que,
reinando Carriarico, chega à Galiza um tal Martinho de Braga, ou de Dumio,
bispo católico que se tornaria no “Apóstolo dos Suevos” e que, mais tarde, viria
a ser canonizado santo.
Estando o reino a sofrer
com a peste, Martinho não só o livrou da epidemia como curou o filho do rei.
Isso fez com que Carriarico rompesse com os visigodos, fazendo retornar os
galegos ao catolicismo. É então que o futuro S. Martinho funda o mosteiro de
Dumio junto à capital, Braga, que viria a tornar-se no centro cultural mais
importante do reino.
No ano 561, sob o rei
Teodomiro (que havia sido salvo da peste e educado por Martinho) e sob a
influência do santo, reuniu-se o I Concilio Bracarense, instituindo-se como
órgão assessor do rei, um sistema inovador e precursor de governo adoptado
depois por outras monarquias, como a visigótica. Mas quando morre o rei Miro,
filho de Teodomiro, o rei visigodo Leovigildo, aproveitando-se do conflito
sucessório, anexa a Galiza. Corria o ano 585.
Entre esse ano e 711, a
Galiza foi uma das províncias do reino visigodo, mas sempre lhe foi reconhecida
uma situação especial pela sua particular especificidade, chegando mesmo alguns
reis visigodos a honrarem os seus herdeiros com o título de reis da Galiza.
A roda do destino ía
girando e, do mesmo modo que um conflito sucessório fizera desaparecer o reino
galego, também foi um conflito idêntico que condenou o reino visigodo. Em 701,
Vitiza acedeu ao trono de Toledo, mas foi deposto por Rodrigo. Os partidários
de Vitiza aliaram-se, então, aos árabes, que haviam desembarcado na Península
em 711 e destroçaram Rodrigo, assim como todo o reino visigodo.
Iniciou-se, assim, um
novo período na história da Península Ibérica. Os recém-chegados árabes
instalaram a sua capital em Córdoba e daí governaram o reino da Espanha. No
entanto, não ocuparam a antiga província romana da Gallaecia, do rio Douro para
cima. Aliás, as boas relações dos galegos com Córdoba, um poder tolerante, como
o de todas as culturas avançadas, permitiu-lhes reintegrar os territórios ao
sul do Douro que, anteriormente, pertenciam ao reino suevo. Renascia, assim, de
modo inesperado, o reino galego, demarcando-se numa península dominada pelo
crescente muçulmano.
O ano 813 foi marcado
pela mítica descoberta do túmulo do Apóstolo Santiago, servindo para fortalecer
o prestígio do reino e o início da independência religiosa da recém-criada Compostela
face à centralizante igreja moçárabe de Toledo.
Os dois séculos
seguintes marcam o início da reconquista cristã da península, a partir do norte,
e a consolidação das monarquias feudais ali existentes. Em 1072 era Garcia que
reinava sobre um território que compreendia a Galiza atual e parte de Portugal
até Coimbra. Em conflito com o irmão, acabou capturado por ele, morrendo na
prisão. O vencedor adotou o nome de Afonso VI, governando os reinos de Leão,
Galiza e Castela e é no seu reinado que se começaram a desenhar os futuros
Portugal e Galiza.
A chegada à corte de
Afonso VI dos primos borgonheses Raimundo e Henrique, para auxiliarem a
reconquista peninsular, foi determinante. O rei resolveu casá-los com as suas
filhas Urraca e Teresa, entregando a cada um determinado território. Para si,
reservou o governo direto de Leão e Castela, tendo entregue o Condado
compreendendo a atual Galiza, a Urraca, casada com Raimundo de Borgonha. O
território ao sul do rio Minho, denominado Condado Portucalense, foi entregue à
sua outra filha, Teresa, casada com o Conde D. Henrique.
Henrique e Teresa foram
os pais de Afonso Henriques que, pela graça divina, manifestada na força da
espada, se veio a tornar no primeiro rei de um Portugal independente. No tratado
de Zamora, assinado em 1143, o rei de Leão reconhece a independência do Condado
Portucalense, a partir daí denominado Portugal, e o seu reconhecimento pela
Santa Sé, indispensável na época, data de 1179.
O território de Portugal,
separado a norte do reino da Galiza, Leão e Castela, foi depois sucessivamente
alargado até ao extremo sul da Península, com a reconquista aos ocupantes
muçulmanos desses territórios. Cem anos depois, em 1250, reinando em Portugal
Afonso III, ficaram definitivamente estabelecidas as fronteiras lusitanas, que
se mantêm na atualidade. Tal fato, converteu Portugal na nação com as
fronteiras mais antigas da Europa e uma das mais antigas do mundo.
Ao longo da História,
inúmeras vezes reis portugueses conquistaram posições na Galiza, mas, por uma
razão ou por outra, acabaram por perdê-las para Castela. O que permaneceu vivo
foi o desejo não cumprido de uma reunificação natural, configurando todo o
rosto da Ibéria voltado para o mar...
****
A perda da Galiza, em
detrimento da expansão dos portugueses para sul, terá sido um erro ou “defeito
de origem”, na opinião de Agostinho da Silva, que assim o lamenta: “nunca se devia ter abandonado a Galiza; se
havia que morrer, havia que morrer junto com ela; Portugal tem culpa das
lágrimas de Rosalía, e cada emigrado que não volta a ele o acusa..."
Quanto a mim, o grande problema ali surgido é que Portugal abandonou uma parte de si mesmo, pois o seu corpo total (físico-geográfico e energético) inclui a Galiza; ou seja, a partir do momento em que desistiu da Galiza, Portugal deixou de ser inteiro, ficando com a alma comum partida e separada.
Sem querer estabelecer comparações exageradas e desajustadas, porque os objetos são distintos e se situam em níveis completamente diferentes, não posso deixar de constatar a similitude da experiência que vivi na Galiza com este processo português, onde ressalta a necessidade absoluta de reunir as duas partes separadas da alma mater.
Por isso, parece-me legítimo supor que aquela minha vivência continha, implícita, uma chamada de atenção para este processo maior envolvendo Portugal e Galiza, dois amores que permanecerão sempre guardados no meu coração, mesmo que dividido em duas partes... Seja como fôr, a realidade para ambos os casos é que não se poderá cumprir o que houver para cumprir sem que, primeiro, se reunam todos os pedaços separados, sejam da alma ou do coração.
No caso de Portugal (obviamente o que mais interessa, para que muitos outros se possam integrar no respetivo processo), terá que se perfazer com o território perdido a norte; isto é, deverá reunir-se de novo com a Galiza, não política, mas espiritualmente.
E sem mais demoras.
Não
são somente os portugueses que falam desta reunião de alma. Na Galiza, muitos
autores ligados à revista NÓS, surgida em 1920, confessam que a Galiza tem
ânsia de “viver de novo, de voltar ao seu ser verdadeiro e imortal. ” Também Castelao fala numa missão transcendente da Galiza: “a de atrair Portugal
à comunidade da grande família hispânica. (...) Não esqueçamos que a Galiza tem
as chaves da única porta que pode comunicar os dois espíritos e os dois
interesses. A Galiza é a chave de toda a regeneração hispânica. ”
Deste
outro lado, Agostinho da Silva recorda que os “Portugueses não começaram pela
terra. De terra quiseram apenas aquilo que deles era e Castela lhes tomaria se
pudesse. E tão pouco ansiosos eram de terra que mesmo uma parte do que com eles
deveria ficar, facilmente a deixaram entregue ao ímpeto centralista da meseta,
por aqui cometendo sua primeira falta histórica, a de terem desistido da Galiza.
Para o êxito imediato, que era o de garantir uma fronteira que defendesse da
Espanha, tal como ela se ia formar, já preparando o caminho de Carlos V,
deixaram Galiza entregue à sua sorte: os cavaleiros portugueses traíram as
meninas que nas cantigas de amigo choravam sua ausência e ansiavam por suas
romarias. As cervas do monte que volviam às aguas, as encontravam desertas;
rios de lágrimas que nunca mais pararam de correr.
Deus, porém, para seus planos,
tem paciência de eternidade. Tentou, com Portugal, que ao menos a tarefa
possível se fizesse, a de abordar a todas as praias, a de estudar todas as
correntes, a de se maravilhar diante de todos os novos mares e os novos céus; e
ainda lhe permitiu a coisa mais extraordinária que porventura fez, a de plantar
no firmamento novo para o sul aquele Cruzamento que era a santificação de todas
as encruzilhadas da velha terra que ia dos senhores do Douro aos senhores da
Biscaia. O que está plantado no rumo do outro pólo do Mundo é o casamento místico
das noivas da Galiza e dos marinheiros de Portugal. “
Este
“casamento místico das noivas da Galiza com os marinheiros de Portugal” não
será também uma referência à reunião das duas partes da alma comum
galaico-lusitana? E porque se situa essa boda futura “no outro pólo do Mundo”?...
Essa
é a outra grande questão que procurarei, mais adiante, responder.
3. A GARANTIA
A
Galiza vive na minha alma. É a sua aspiração.
Teixeira de Pascoaes
A paixão pela serra do Marão e pela
Galiza foi uma constante na obra do escritor e poeta português Teixeira de
Pascoaes: “É na Galiza que principia o Marão, erguido, ao longe, em frente da
minha janela, como o templo grandioso da Saudade. Da Galiza veio Camões; e é
para a Galiza maternal que dirijo sempre os meus olhos de filho amoroso e
obediente. “
O seu livro “Marânus” foi deste modo
dedicado:
“Galiza, terra irmã de Portugal
Que a divina Saudade transfigura,
A tua alma é rosa matinal,
Onde uma lágrima de Deus fulgura.
Terra da nossa infância virginal,
Altar de Rosalía e da Ternura,
Dedico-te estes versos que, uma vez
Compus em alto cerro montanhês. “
Teixeira de Pascoaes também nunca escondeu a
sua admiração ou mesmo, devoção, por Rosalía de Castro, a
poetisa galega que cantou a Galiza como ninguém:
“Divina Rosalía. Ó santa protetora
Da terra da Galiza, a nossa terra Mãe!
(...)
Divina Rosalía. Ó virgem da tristeza!
Coração de mulher que abrange a
Natureza
E num canto imortal a converteu.
(...)
Divina Rosalía.
Senhora da Saudade e da Melancolia...
“
Aquele forte e feliz sentimento do poeta de Amarante sempre
encontrou correspondência, igualmente arrebatada, do lado galego, como explicita
Vicente Risco:
“Teixeira de Pascoaes é
noso, noso, polo sentimento, se non fora como el di ”no sangue e na alma”.
(...) Bem nos podemos gabar ao proclamálo irman galego, ao invocar o seu nome,
já tão cheio de glória aquén e alén das fronteiras da Lusitânia, tan cheo de
significado para nós pola calidade do seu pensamento e mais pola índole vaga e
saudosa do seu estro sublime. “
Na
correspondência trocada entre ambos, Pascoaes insiste em afirmar que “a Galiza
é irmã e mãe de Portugal. Portugal saiu dos seios da Galiza; depois abandonou a
Mãe e foi por esses mares fora; fugiu como o filho pródigo. Mas é chegado o
tempo do seu regresso ao lar materno. Temos de voltar a viver espiritualmente
em comum. Assim o exige o destino das nossas Pátrias que ainda não está
cumprido...”
Desde que o meu corpo se fundiu com o corpo da
Galiza, numa união para a vida, pude entender e confirmar que tudo o que
Teixeira de Pascoaes e depois Leonardo Coimbra haviam escrito sobre a Galiza,
correspondia à mais absoluta realidade, e que até ficava aquém do que eu
próprio experimentava.
Dizia Leonardo que o lirismo galego
era irmão gêmeo do lirismo português, pelo que “explicando a Galiza, explica a
nossa alma. ” E numa outra de muitas passagens inspiradas, afirmava que a
Galiza e Portugal são como o porto onde o homem faz a passagem para o Céu; são
“os dois grandes romeiros do Infinito”, o “Lar onde pela tardinha, se fecha em
ternura (...) o coração do homem subindo a Deus! ”
Mas mais ainda do que constatar
aquelas verdades, descobri que a terra galega tinha voz e falava comigo! Não só
a terra, como os rios e as ribeiras, as ondas do mar, as árvores, especialmente
os carvalhos, os campos e os ares e, sobretudo, as montanhas.... Pode parecer
uma estafada construção literária, mas a verdade é que eram vozes autênticas que
me falavam por dentro, começando sempre por me dizer a mesma coisa: que os
valores da alma lusitana estavam ali bem guardados!
Mas a que valores se referia?
Já em 1911, Teixeira de Pascoaes, que
nesse ano fundara com outros autores o movimento “Renascença Portuguesa”, fazia
notar que Portugal, depois de haver atravessado uma época de esplendor, havia
mergulhado durante séculos na maior decadência e na morte da alma, pelo que
cumpria despertar o espirito português para que realizasse “ a sua obra de
perfeição social, de amor e de justiça. ” Pascoaes queixava-se amargamente do
estado deplorável da Pátria e da necessidade imperativa de a sacar da
“sepultura moral e física em que está prostrada. ” Para isso, sonhava com
recuperar os valores perdidos da alma lusitana, não como um “passadismo” inútil
e vazio, senão como um “regressar às fontes originárias da vida, mas para criar
uma nova vida. ”
Portanto, o que estava e continua em
causa, porque seguimos espiritualmente exauridos, é a recuperação de uma identidade
espiritual expressa pelos valores da alma, e isso não se pode confundir com
qualquer volta ao passado, nem tampouco com o presente ou o futuro, pois é um
estado interno e intemporal. Sublinhava Pascoaes que a ideia era “reintegrar a
alma da nossa Raça na sua pureza essencial, revelar o que ela é na sua
intimidade e natureza originária para que tome conta de si própria, e se torne
ativa e criadora, e realize, enfim, o seu destino civilizador. “
Ou seja, pela minha visão, que rompa o
nevoeiro que, desde então, se vem adensando e mostre ao mundo os valores e o
caminho do Quinto Império. Pascoaes afirma que “será o advento da Era Lusíada”,
permitindo a Portugal oferecer ao mundo o passo seguinte, espiritual, do
contributo anterior e material das Descobertas, porque a alma lusíada “precisa,
enfim, de cambiar espiritualmente o que materialmente iniciou. “
Mas a Renascença Portuguesa não
encontrou unanimidade entre os seus membros fundadores e foi mais um movimento
que falhou, continuando Portugal à deriva, comandado por “forças morais” que de
moral pouco tinham, e que também não eram “novas” nem “essencialmente lusitanas”.
Certamente por isso, Pascoaes escreve ao galego Álvaro Cebreiro dizendo que “a
Galiza é a minha Pátria verdadeira, porque só nela encontro almas irmãs da
minha! ”
Também
a mim me custou muito entender como é que Portugal, sendo um país de
marinheiros experimentados, havia tão desastradamente perdido o norte, isto é,
os valores da sua alma mater... A não
ser que o desnorte em que Portugal passou a viver (e que, em termos
espirituais, não se alterou), fizesse parte de uma determinada estratégia, ou
mesmo de um processo iniciático, em que a morte constituísse a prova máxima
para chegar à transformação e à superação de si próprio.
Analisando
bem todas as circunstâncias, tenho, para mim que foi esse o caso. Vejamos: a
partir do século XVI, e após o esplendor interpretado pelo voo fabuloso da Ave
(ou de Avis, a sua segunda dinastia), Portugal encetou um outro período da sua
História e começou deliberadamente a morrer na batalha de Alcácer-Kibir, que
determinou o final daquela dinastia.
E
sobreveio o presumível sono iniciático.
Esse
sono foi-se tornando cada vez mais pesado e espesso, ao longo dos séculos, até
provocar o esquecimento do próprio processo e se transformar na mais terrível
das mortes – a morte da consciência da nação. Mas, realmente, talvez fosse essa
a suprema prova: descer ao mais fundo dos fundos e morrer sem remissão, para
depois, um dia, renascer das próprias cinzas como a Fénix, a Avis sagrada da
mitologia...
Por
muito saudável que digam estar a economia, o Portugal de agora continua a errar
às cegas, como um zombi, no limbo obscuro e gelado da História. E por mais que
soem discursos branqueadores dessa situação, por parte de um poder a quem só o
poder interessa, a realidade nua e crua é que o país perdeu a sua identidade e,
portanto, o seu propósito espiritual como nação.
Definitivamente,
este não é o Portugal anunciado por António Vieira, pelo Bandarra e por
Fernando Pessoa; aquele Portugal que, segundo eles, se levantará, um dia, como
"luz das nações" e dará novos mundos ou valores ao mundo,
impulsionando a criação de um Império de consciência e de cultura, enquadrando
a manifestação do Cristo Redentor Encoberto...
Teria
sido apenas um delírio de visionários perturbados? ...
Creio que não, e a primeira coisa a
fazer será recordar a História, não para voltar ao passado, que não serviria de
nada, mas para construir os alicerces do presente, sobre o qual vai assentar o
futuro. Ou seja, o tal “regresso às fontes originárias da vida, mas para criar
uma nova vida ”, como defendia Pascoaes.
Para isso, talvez seja mesmo
necessário baralhar e dar de novo, como também dizia Agostinho da Silva: “
baralhar e dar de novo começa pelo princípio, e o princípio, para nós, é o
Condado Portucalense. Então quais as relações que poderia ter havido entre o
Condado Portucalense e o Condado Galego? É evidente que o D. Afonso Henriques
era um menino e tinha a impaciência própria da meninice. Hoje podemos ver que
talvez tivesse havido uma precipitação de manobra. O negócio “maquiavélico”, no
bom sentido, era manter a possibilidade do Condado Portucalense e o Condado
Galego seguirem juntos um caminho na História.
A
coisa não deu. Mas, como se trata do tal baralhar e dar de novo, temos aí um
problema: ver como é que nós podemos voltar às origens e rever toda a história
de Portugal. O que nos levanta uma outra questão: como nós não sabemos qual é a
verdadeira máquina da história, como é que as coisas funcionam, toda a vontade
que nós temos de dizer que na história alguma coisa foi errada, ou certa, é
inteiramente anticientífica. Só podemos dizer que na história houve tal
acontecimento. Se ele foi bom ou não, não sabemos. O que sabemos é que ele
sucedeu daquela maneira, naquela altura. Portugal seguiu a sua evolução, a
Galiza fê-lo para o lado de lá; são de facto os noivos que os pais não deixam
casar, de um lado e outro do rio. De maneira que o problema quanto às origens é
um e o da relação Portugal- Galiza é outro. Deixemos então o primeiro porque
ele vai ser implicado pelo outro, o do futuro. “
Ora
o problema do futuro de Portugal, qualquer que seja, terá que passar sempre
pela união com a Galiza, pois é no seu ventre que se encontram as águas
amnióticas já grávidas daquele futuro, igualmente presente nos ares cristalinos
que deixam antever outros mundos, ou nas montanhas que, ponderadamente, se
abrem.
A
Galiza interna das maravilhas, profunda, mágica e prodigiosa...
****
A Galiza, ocupando o noroeste peninsular, encima o perfil ibérico voltado para o mar. Ou seja, constitui a testa e a parte superior do crâneo da "Cabeça da Europa".
Sendo assim, convém especificar melhor essa noção, que surge no seguimento de uma tradição muito antiga. Os poetas portugueses Luis de Camões e Fernando Pessoa, ambos, curiosamente, de origem galega, retomaram aquele legado e coincidem em afirmar que a Europa, representada antropomorficamente como um corpo régio, possui como cabeça a Península Ibérica.
Escreveu Camões em “Os Lusíadas”, referindo-se à Ibéria pelo
seu nome antigo de “Hispania” ou “Espanha”:
Eis aqui se descobre a nobre Espanha,
Como cabeça ali de Europa toda ...
E, mais adiante, especifica:
Eis aqui, quase cume da cabeça
Da Europa toda, o Reino lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa ...
Camões afirma que o reino lusitano é o “quase cume da
Europa”, o que significa que existe um cume e que se encontra por fora do
território português: a Galiza, que encima o perfil ibérico lusitano e
corresponde, simbolicamente, à testa e ao alto da cabeça da Europa.
Fernando Pessoa retoma a linha de Camões na sua “Mensagem”,
assinalando que a Europa:
Fita com olhar esfíngico e fatal
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
Mas se Portugal constitui, assim, o rosto da Europa, qual
será o simbolismo do território que se lhe situa imediatamente por cima, isto
é, a Galiza?
Se nos reportarmos à sabedoria oriental, nomeadamente ao
hinduísmo e aos textos sagrados denominados “Upanishads”, escritos por volta do
século VII a.C., constatamos que nessa zona do corpo humano se situam dois
"chakras" muito importantes -
o “Ajna” e o “Sahaswara” - que conferem, respetivamente, a clarividência
e a iluminação total do ser.
Faço um parêntesis para explicar que o termo “chakra” corresponde
a um vocábulo sânscrito que se traduz como “roda”, referindo-se à forma aparente
daqueles sete principais vórtices de energia no corpo humano que vão da base da
coluna vertebral ao cimo da cabeça. Correspondem a grandes centros nervosos, relacionados
com glândulas e cujo fluxo determina estados psicológicos, emocionais e
espirituais, movimentando as forças vitais que nos mantêm vivos, saudáveis e
vibrantes. Ou seja, regulam o campo energético, atuando como transformadores ou
portas de entrada de energia no ser humano.
Ora é na cabeça, mais propriamente entre as sobrancelhas, que
se situa o sexto chakra -“Ajna” ou Frontal -, que rege o funcionamento das glândulas Hipófise e Hipotálamo e que também é conhecido como o "Terceiro Olho", pois é o seu fluxo ativo que confere a clarividência. Ali se situa o centro da intuição, permitindo o encadeamento, ainda que momentâneo, com a sabedoria eterna e a mente universal.
Um pouco mais acima, no topo da cabeça, situa-se o sétimo
chakra – “Sahaswara” ou Coronal –,
regendo a ação da glândula Pineal. Também é chamado “Loto das mil pétalas”, pois
corresponde à iluminação espiritual conferida pela consciência mais pura,
religando o ser humano com a Divindade ou com o Infinito.
Penso que tais chakras ou vórtices de energia detêm claramente uma correspondência na Cabeça da Europa, nomeadamente no território galego, como cume dessa Cabeça. De fato, creio que o sexto, o chakra Frontal, estará representado pela cidade de Santiago de Compostela, herdeira da cidade portuguesa de Braga como "reguladora" do Caminho Iniciático que agora tem o seu nome e associada à Ria de Nóia, como a "campânula onde se alarga o vórtice. No dizer de Agostinho da Silva, Santiago é a cidade "farol da unidade cultural europeia" passando, um dia, a "farol da unidade da cultura universal".
Quanto ao sétimo, o chakra Coronal (ou Coronário), associo-o à cidade da Corunha e à sua Ria, como campânula do respetivo torvelinho de energia. Recordo que na Corunha existe um magnífico farol romano ainda em funcionamento, conhecido como Torre de Hércules, que é património da humanidade.

Será que esse farol poderá reorientar a nau
portuguesa, ajudando-a a reencontrar o norte perdido e a retomar o rumo da sua missão primordial? Ouso dizer categoricamente que sim, que o papel da Galiza contém essa função relativamente a Portugal. E para que não restem dúvidas da sua função orientadora ou de restabelecimento de um norte perdido, a Galiza acumula o simbolismo com a geografia, situando-se, precisamente, ao norte de Portugal.
****
Desde
a revolta de D. Afonso Henriques contra a Mãe (e a Mãe tem aqui o duplo
significado da Mãe física – D.Teresa –, e da Terra Mãe leonesa, englobando a
Galiza, que se separou do Filho ou do novo país lusitano), outros reis
portugueses conquistaram, esporadicamente e sem grande empenho e convicção,
posições a norte; por isso acabaram por perdê-las, deixando a Galiza entregue
ao seu destino contra natura com
Castela. No entanto, a Galiza sempre resistiu à hegemonia de Castela,
conservando incólume o seu espirito original e a sua autonomia moral.
Igualmente se manteve a tendência natural para a reunificação com Portugal, configurando
num só país todo o rosto da Ibéria, pois ambos os territórios tudo tinham a ver
um com o outro, diferenciando-se, por completo, de Castela.
Por
isso dizia Fernando Pessoa que a Galiza, se "integrada em Portugal, fica
parte do estado a que por natureza e raça pertence"...
Por
isso, falava Agostinho da Silva nos erros históricos de Portugal, referindo-se
ao nosso abandono da Galiza, "a companheira, pela qual o nosso amor jamais
se desmentirá"...
Escreveu
Agostinho: “Portugal fez uma coisa extraordinária no mundo: criou ele o seu
próprio país e é curioso ver-se que toda essa Europa estava mudando
constantemente, todos os países tinham mudado de fronteira, muitos países
tinham desaparecido, outros países tinham aparecido de novo, mas havia um, a um
cantinho da península, que não mudara nunca: era este que a gente portuguesa
tinha construído, criando o seu próprio país, tão inexistente antes que tiveram
mesmo de lhe inventar o nome, ao passo que, uma parte dessa faixa ocidental da
Península, que devia ter sido conservada com Portugal, mas que mais bravura de
guerra do que talento diplomático de Afonso Henriques e daqueles quo o seguiam
fez que ficasse separado de Portugal, distanciou Portugal daquele Santiago de
Compostela que devia ter sido realmente seu padroeiro e inspirador. “
Acrescente-se
que “foi Santiago de Compostela que, com as peregrinações, deu aos povos a
ideia de que existia uma Europa. “
****
Esclareço
desde já que não sou adepto de qualquer alteração política da Ibéria. A única
alteração que verdadeiramente me importa é uma profunda mudança da consciência
individual e coletiva, conduzindo a um "ibérico estado de ser", muito
mais importante do que a um qualquer “estado ibérico. “
Posto
isto, concordo em absoluto com o pensamento daquelas duas figuras de proa da
cultura portuguesa; penso, no entanto, que há um motivo oculto para que
Portugal e a Galiza tivessem mantido, até ao presente, uma fronteira entre si.
A
razão prende-se com a situação atual portuguesa: de que nos vale ter um déficit
quase a zero nas contas do Estado se continuamos a manter um déficit zero no
desiderato mais profundo da alma nacional?
O
Portugal de hoje veste um elegante fato europeu, de bandas e vincos impecáveis,
como compete a um parceiro exemplar de Bruxelas, mas esqueceu-se da sua vocação
atlântica; desviou o olhar do mar da História para coquetear com a Europa e olvidou
que o nosso país é uma nau caprichosa, que não gosta de estar ancorada, e que
aquele fato não serve para navegar.
Se
Portugal e Galiza constituíssem, agora, um único país, estaríamos irremediavelmente
bem vestidos, mas no mesmo barco, vagueando num oceano de nevoeiro e de
esquecimento, sem a salvaguarda do farol aceso a norte... Para um poder valer
ao outro, tivemos que permanecer separados, servindo-nos mutuamente dessa
situação para dela extrair uma insuspeita força regeneradora.
Mas
a poetisa da Galiza também havia escrito:
¿Qué andáis buscando en torno de las tumbas,
Torvo el mirar, nublado el pensamiento?
¡No os ocupéis de lo que al polvo vuelve!…
Jamás el que descansa en el sepulcro
Ha de tornar a amaros ni a ofenderos
¡Jamás! ¿Es verdad que todo
Para siempre acabó ya?
No, no puede acabar lo que es eterno,
Ni puede tener fin la inmensidad.
P Passado quase um
século sobre a tormenta, a Galiza voltou a ser “o coração de Rosalía florindo”,
no dizer de Leonardo Coimbra, enquanto Portugal se volveu no “Adamastor diluído
em lágrimas”. E, na verdade, agora é o vento português que já não murmura os últimos versos proféticos de Fernando Pessoa, quase totalmente encobertos pelas brumas:
T Tudo é
incerto e derradeiro.
T Tudo é disperso,
nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a hora!
Será
a tal morte iniciática necessária para renascer a um outro nível e cumprir a
sua missão última de Cristo das Nações, tal como a descreve o poeta Vasco da Gama
Rodrigues? Creio que sim, mas o nosso país, prevendo que se poderia perder no
terrível labirinto do olvido, terá entregue uma espécie de Fio de Ariadne
àquele outro Portugal que os galegos chamam Galiza...
Esse
Fio permanece até hoje, enquanto o nevoeiro se ía engrossando cada vez mais. E,
agora, encontramo-nos às apalpadelas, tentando localizar aquele Fio salvador
que, entretanto, também largámos da mão, esquecendo-nos que a sua outra ponta
se encontra na Galiza.
Tudo
isto significa que, apesar da separação externa, Portugal e a Galiza mantiveram
inalterável a sua unidade interna, espiritual e daí que se possa dizer que são
corpos artificialmente separados que detêm, por dentro, a mesma Alma Mãe. Sendo
assim, o destino de um está intrinsecamente ligado ao destino do outro e se um
perdeu, num determinado momento, o contato com a Alma comum, será a ligação
mais íntima e profunda com o outro que poderá ajudar a restabelecê-la.
Digamos
que a corrente telúrica-espiritual dessa Alma é a que faz ativar os respectivos
"chakras" e recordemos que, na zona da cabeça, para além dos dois já
referidos, existe mais um: o da garganta, conferindo o dom do verbo ou do som
criador.
Nos
termos da sabedoria hindu atrás referida, esse chakra denomina-se “Vishuddha”
e, sendo o quinto (concordando com a numerologia do Quinto Império) corresponde
ao primeiro da tríade mais espiritual situada na cabeça. Rege o funcionamento
da glândula Tiroides e está associado ao elemento som, favorecendo o escutar da
voz interna, espiritual, e propiciando uma superior capacidade de expressão e
de comunicação. Portanto, gera e promove
o dom do verbo criador.
Fazendo
corresponder este chakra da garganta com a "cabeça da Europa", o
respetivo vórtice energético é representado pela cidade de Sintra, com a sua misteriosa
e emblemática serra da Lua, em Portugal. E de acordo com as características do
"chakra", será dali que ecoarão as vozes anunciadoras do Quinto
Império e da chegada do respectivo Rei-Imperador...
Os
antigos gnósticos referiam-se à consciência da divindade em cada um como “o
surgimento do Rei"... E, na verdade, só o despertar dessa consciência
impulsionará a grande mudança que se anuncia na face da Terra. Primeiro de
forma individual e, depois, coletivamente, porque a revelação é sempre restrita
ao indivíduo, utilizando essa base pessoal única e indispensável para se
expressar.
Foi
o que sucedeu no passado, em que apenas um punhado de homens e mulheres coordenou
os passos iniciáticos do nosso país, levando outros a alargar a consciência e a
fazerem o mesmo, em círculos sucessivamente mais alargados, desde a misteriosa formação
de Portugal, ligada à misteriosa Ordem de Mariz, à fabulosa epopeia das Descobertas,
ligada à Ordem de Avis (possivelmente, um nome externo para Mariz).
Suponho
que será também um punhado de portugueses que poderão, inicialmente, conduzir
muitos outros às Novas Descobertas, abrindo caminho para a instauração do
Império do Espírito Santo ou Quinto Império. Poderão funcionar como uma espécie
de “catalisadores espirituais” ou agentes da nova Cultura, porque se trata de
um Império de Cultura e não de política, acelerando a reação que envolve as
massas e precipitando os resultados a nível de nação, ou mesmo de blocos de
nações e, finalmente, no mundo inteiro.
Creio
que o Portugal Quinto Imperial será, então, o renascido pela vitória dos
portugueses no labirinto obscuro em que se encontram, devendo, desde já,
reorientarem-se pelo alinhamento a norte; isto é, retirando todos os “proveitos
espirituais” que esse alinhamento encerra e que são, nada mais, nada menos, que
os valores perdidos da alma lusitana. Deste modo, a Galiza expressa, inequivocamente,
a "garantia iniciática" do futuro da nação portuguesa.
Mas
creio que a atribuição da Galiza vai ainda mais além. Muito se escreveu já
sobre o papel de Portugal como profeta do Rei Encoberto, anunciando-o através
da “garganta” de Sintra, e nada, ou quase nada, sobre a outra função da Galiza...
Pois a minha convicção profunda é que, se Portugal representa o rosto da Europa,
a Galiza só poderá corresponder à Coroa que assenta naquele rosto, assinalando
a condição régia e imperial da Cabeça ibérica.
Portanto,
a Galiza constitui a Coroa do Império.
Um
Império anunciado e iluminado pelos valores da Cabeça reconstruída da Europa ao
serviço do Rei-Imperador, que não é outro senão o Cristo da Segunda Vinda e que, como relata o
Novo Testamento ou o referem inúmeros textos proféticos, voltará,
um dia, a caminhar entre os homens.
Seja na Ibéria, ou em que Ibéria for.
4 – RECONSTRUÇÃO
Para ser grande, sê inteiro.
Ricardo Reis
Sonhar é cada vez mais preciso, num
mundo materialista e à beira do caos. Mas como sonhar e, sobretudo, realizar o
sonho, num corpo sem cabeça?
Por isso, para que a Europa possa contribuir
para o pragmatismo do bom sonho Quinto Imperial, torna-se necessário, antes de
tudo o mais, que disponha de uma Cabeça. E, assim sendo, a sua reconstrução surge
como tarefa urgente e absolutamente prioritária.
Acredito que somente juntos, Portugal
e Galiza poderão completar-se e impulsionar a construção daquela Cabeça,
integrando as outras partes ou zonas geográficas da península que a compõem.
Desse modo, a Europa voltará a ter uma Cabeça completa e funcional, devidamente
coroada, e onde o rosto lusitano poderá olhar o futuro com lucidez e bem de
frente.
Creio que esse futuro passará sempre
pela implantação do Quinto Império no mundo e os agentes dessa enorme mudança
serão os povos peninsulares, inspirados pela Cabeça Ibérica – portugueses,
galegos, asturianos, castelhanos, andaluzes, catalães, bascos… e todos os que convivem num espaço
criado e sacralizado para esse fim e que, no passado, ainda que agindo em
separado, já transformaram o mundo de então no de hoje conhecido.
Por
isso confessava Agostinho da Silva: “Tenho a ideia estranha de que se está em vésperas (no
sentido de algo que pode acontecer agora ou daqui a mil anos) de uma nova
expansão, muito mais interessante do que a anterior, porque vai ser feita em
companhia da Espanha. Uma expansão de cultura, não estritamente portuguesa, mas
peninsular...”
Na realidade, Portugal, desde que se assumiu como nação
independente em 1143, foi o “país permanente” na Península, enquanto que a
Espanha só muito depois se criou como nação e foi variando de forma, conforme
as várias componentes territoriais que se lhe iam aglutinando ou separando. Daí
que a responsabilidade pela iniciativa da nova expansão esteja com Portugal (depois
de espiritualmente refeito pela Galiza), devendo ser o nosso país a levar a
Espanha a uma atuação conjunta.
Para isso, a primeira coisa será acabar com um anti-espanholismo
primário que volta à tona sempre que nos sentimos ultrapassados pelos nossos
vizinhos. Mas como comenta Eduardo Lourenço, “brandir Gamas contra Colombos,
solidificar um presente vivo em torno de polarizações míticas sem sentido, é
uma provinciana e absurda perspectiva. Até porque é fácil manipular o nosso
óbvio benfiquismo patriótico para iludir o sempre carenciado seio lusíada. “
E acrescenta: “De repente, Portugal descobriu a Espanha.
Podia ser uma excelente ocasião para se descobrir a si mesmo como naturalmente
"hispânico", mas os sinais apontam para outra tentação. Ou antes,
para o secular hábito que a nossa classe dirigente sempre teve de poder em paz
consumir sem sobressaltos a magra herança do nosso exíguo jardim. Chama-se a
isto patriotismo, nacionalismo, amor natural de preferência pelo que é nosso ou
nós somos. Mas as proporções que o fenómeno está tomando, o pânico real,
imaginário e, sobretudo, cultivado, que a nova Espanha começa a inspirar entre
os guardiões desse nacionalismo, merece mais do que uma simples alusão irónica.
“
“Talvez ninguém possa medir melhor do que nós, portugueses, o
que representa na labiríntica história cultural da Europa, esta emergência
espetacular da Espanha como nação de
referência em todos os planos e, em particular, no da Cultura, onde, até há
pouco, a víamos, também, como “subcultura” em relação ao espaço hegemónico
europeu.
Pressentindo, ou tendo uma ideia exata dessa “promoção”, o
reflexo clássico de pânico ou de ressentimento, quer nos planos económico e
político, quer no cultural, encontrou já, entre nós, algumas expressões. Por
mais compreensível que possa parecer, quase mero reflexo condicionado que se
tornou ao longo dos séculos no puro plano político, esse reflexo seria sempre
lamentável. Lamentável, grotesco e vão. “
“A nossa reação (...) não pode, nem deve ter o perfil
negativo, do habitual reflexo ultranacionalista, reacionário no plano político
e ideológico e caricato no plano cultural. “
De fato, na esteira de intelectuais como Oliveira Martins,
Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Sá-Carneiro,
Fernando Pessoa (e, no lado espanhol, Clarín, Unamuno, Valle-Inclán, Castelao e
muitos mais), penso que deveremos olhar para a Ibéria como um todo
multifacetado, excluindo de vez o estigma nacionalista que oblitera qualquer
diálogo e reconhecendo que figuras tão distintas como Dali, Cervantes, Goya, Albéniz,
Teresa de Jesus, Buñuel, Manuel de Falla, Picasso e tantos outros expoentes
ibéricos fizeram da cultura espanhola “uma das poucas culturas míticas do
Ocidente. “ Mas, por outro lado, também constatando que, realmente, “nada há em
Espanha que se possa comparar ao fenómeno Fernando Pessoa. “
Ou, acrescente-se, à Tradição do Quinto Império.
Continua Eduardo Lourenço: “na verdade, o que devíamos
lamentar é o fato de que o conhecimento de Portugal por Espanha, hoje em fase
realmente nova e não apenas retórica, deixe ainda a desejar. (...) O nosso desconhecimento
da Espanha é abissal. “
E remata certeiro: “ A cultura de um país vive da permanente
revisitação do seu fundo imemorial, dos seus arquivos imaginários, sem precisar
de inventar guerras de ficção para se moralizar. “
Ultrapassando todos os
conflitos do passado e as questiúnculas do presente, Portugal e Espanha, os
dois países ibéricos, precisam conhecer-se muito melhor e entender-se de uma
vez, sem a obsessão doentia da perca de identidade, sobretudo por parte dos
portugueses; só assim poderão construir uma nova Península, assente na
miscigenação cultural dos seus povos e representando a Cabeça unificada.
Deste modo, creio ser chegada a hora dos Povos Ibéricos darem
as mãos e se juntarem num projeto de âmbito exclusivamente cultural e
espiritual, e o resultado poderá ser a criação de algo absolutamente novo e
inovador no mundo, capaz de rejuvenescer o corpo gasto e cansado da Europa e
lhe recolocar nos ombros uma Cabeça.
Cultura tem a ver com Identidade e com Alma, tal como explica Eduardo Lourenço: “Cada povo só o é por se conceber e viver
justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse desde sempre
e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa convicção que confere
a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos
“identidade”. Como para os indivíduos, a identidade só se define na relação com
o outro. Como essa relação varia com o tempo – é o que chamamos a nossa
história –, a identidade é percebida e vivida por um povo em termos
simultaneamente históricos e trans-históricos. Mas só o que a cada momento aparece
como paradoxalmente inalterável ou
subsistente através da sucessão dos tempos confere sentido ao conceito de
identidade. Podemos assimilar essa estranha permanência no seio da mudança
(...) como “alma dos povos. “
Sendo assim, ao falar-se numa federação de culturas, estamos
a falar simultaneamente numa conjugação de identidades que não se anulam, mas
se respeitam e enriquecem com a experiência comum; ou ainda de almas (de povos)
que se congregam para cumprir uma determinada fase do projeto quinto
imperial...
Um acordo visionário entre os dois Estados ibéricos será,
pois, fundamental, mas sem tocar necessariamente na questão territorial dos
Estados, pois não é, de todo, um assunto político. Agostinho confirma que se trata
de “uma aproximação puramente cultural, a que os políticos podem dar
significação política, na medida em que isso for necessário. Mas o político
precisa de aprender certas coisas: que a sua base de trabalho é a cultura e não
o contrário. É aprendendo cultura e inserindo-se na cultura que ele pode fazer
uma política decente. “
Fernando Pessoa adjunta: “Se todos somos ibéricos temos o
direito de esperar que tudo deva tender para uma política ibérica, para uma civilização
ibérica que, comum aos países que compõem a Ibéria, a todos, porém, transcenda.
“
E acrescenta: “A questão é exageradamente simples. Devemos
ser separados em tudo o que sejam problemas nacionais, juntos em tudo o que
sejam problemas civilizacionais. Instituições, costumes, convém que tudo isso
seja diferente em um e outro povo. Orientação perante a Europa, convém que seja
em ambas a mesma. (...) O ideal pode ser comum, a orientação diversa. Convém
mesmo que assim seja. “
Mas este ideal comum, onde cabem todas as diferenças étnicas
e culturais, é posto em causa pela questão dos nacionalismos políticos
separatistas, que atormentam a Espanha. Mais uma vez recorro ao Professor
Eduardo Lourenço para definir o problema: “Costuma chamar-se nacionalismo ao
exagero da exaltação do que é nacional só por ser nacional, ou do que é
nacional sem ter em atenção ao Outro. É a patologia do normal sentimento
patriótico. Isso é que é o nacionalismo. O ultranacionalismo é isso em pior. “
Portanto, também se poderá dizer que o nacionalismo
exacerbado e xenófobo é a doença infantil do patriotismo e, como doença, deverá
estar completamente arredada deste processo; tanto mais que proclama a
separação completa e total, quando o que está em causa é a aproximação ou mesmo
a união da Ibéria, respeitando todas as diferenças. No fundo, poderão ser
instrumentos daquelas forças obscuras a quem o projeto de uma Ibéria a uma só
voz não interessa para nada.
Cito de novo Eduardo Lourenço: “Os acontecimentos, não só
políticos, mas, mais largamente civilizacionais, que depois da queda do Muro e
do despertar do Islão desarrumaram as perspectivas europeias fixadas em Ialta,
colocaram a Península não só numa das fronteiras da Europa, mas num dos pontos
estratégicos capitais do Ocidente. Era bom que, ambos e o mais sintonizadamente
possível, Portugal e Espanha, se dessem conta disso e relativizassem as suas
próprias dificuldades internas, em função desse novo lado de “guardiães” ou
fronteiros do Mediterrâneo. Há muito que a Espanha tem, em sentido lato, não só
uma política mediterrânica como transmediterrânica. Mais atlânticos, é natural
que a nossa preocupação seja um pouco diversa ou tenha essa outra componente.
Mas como Península o nosso destino é um só e não há razão para o deixarmos
definir apenas, nem essencialmente, por aquelas nações que até agora
hegemonizaram a política europeia. O nosso lugar não pode ser ocupado por mais
ninguém. E se o não ocuparmos não ficará vazio, nem deste lado nem do outro
lado do Mediterrâneo. “
Portanto, parece-me absolutamente legítimo e necessário
questionarmo-nos sobre quem estará, verdadeiramente, por detrás dos movimentos
separatistas ibéricos, manipulando os sentimentos nacionalistas...
Mas também neste campo, Portugal, aportando a sua experiência
equilibrada e harmónica das regiões autónomas da Madeira e dos Açores, e a
Galiza, com o exemplo do seu nacionalismo exemplar, serão capazes de guiar
todas as outras regiões da Península.
Recordo que logo no primeiro número na revista galega NÓS,
onde se manifestaram as mais importantes vozes nacionalistas do seu tempo, se
pedia aos colaboradores que, acima de qualquer ideologia, colocassem o
sentimento da Terra e da Raça.
Leonardo Coimbra frisava que na Galiza não existe “um
nacionalismo separatista, de egoísmo que se encerra, mas um nacionalismo de
amor concreto, vivido e leal que, para bem servir ao longe, tem de se
enriquecer das dádivas do que é mais próximo. ”
E sublinhava que “o nacionalismo galego está no profundo amor
do galego pela sua terra, rumorosa como os pinhais, melancólica e doce como o
canto da rola, cercada de lamentações saudosas da vaga, inquietada das
misteriosas solicitações do atlântico. “
Esta visão inocente e bucólica da política parece
completamente desajustada no mundo de hoje, onde os egoísmos e as ambições
pessoais se sobrepõem aos interesses nacionais e aos valores autênticos da
terra e dos homens, num ritmo verdadeiramente diabólico e hipnotizante... No
entanto, o próprio Leonardo Coimbra se encarregou de responder: “No meio dos
americanismos, dos tecnicismos modernos, do materialismo mumificado dos
burgueses e dessa transformação burguesa que são os socialismos materialistas
de hoje, como é bom repousar o olhar pacificado nessa suave paisagem galega,
que é o chão da sua terra e a alma dos seus poetas. “
Quem se atreve a não lhe dar razão?
****
Então, enquanto os governos peninsulares se preocupam primordialmente
com a manutenção do poder e os nacionalismos se perdem noutros egoísmos e
intolerâncias, comecemos nós, cada um de nós, individualmente, a criar um novo
conceito de Ibéria, que depois se poderá espalhar, naturalmente e sem esforço,
por toda a parte – ou seja, ao construirmos mentalmente em nós aquela outra
Ibéria, muito mais facilmente essa Ibéria existirá.
Fernando Pessoa insistia nesta mesma ideia: “ O que supremamente convém
é criar, desde já, a ibericidade. Fazer tender todas as energias das nossas
almas para um fim, por detrás de todos os fins imediatos que tenham. Esse fim é
a Ibéria. ”
E voltamos a Agostinho da Silva, constatando que “a única região que já
é ibérica do futuro é a Galiza”. De facto, a “mestiçagem de culturas” que nela
coabitam, fizeram da Galiza um solo fértil para as sementes lusitanas e um
“hórreo” privilegiado para guardar os seus frutos, que, presentemente, neste
inverno da alma, terão que ser recordados aos portugueses; depois disso, o
campo de cultivo deverá alargar-se a toda a grande Ibéria, para que, na nova
primavera, se expanda ainda mais, levando a todo o planeta os resultados daquela
surpreendente cultura peninsular…
Que de novo, e por muito que custe a acreditar, vai dar “novos mundos ao
mundo. “
5. UMA CHAVE MESTRA
Vejo o passado reviver
Porque
em meu coração
Tudo é ressurreição,
Amanhecer...
Teixeira
de Pascoaes
Num
desvario literário, o escritor espanhol Leopoldo Alas, conhecido como “Clarín”,
chegou a aventar a hipótese de Portugal, Espanha e América do Sul constituírem “una sola nación
intercontinental. “
Nunca ninguém o levou a sério e compreende-se porquê, mas a
verdade é que esse espaço existe, não como nação politicamente constituída, mas
como espaço privilegiado de realização de ideias novas para o mundo, aparentemente
ainda mais utópicas do que a da nação transatlântica.
Ou seja, poderá nascer ali uma nova cultura. E se a cultura é
a expressão da identidade e a identidade é o que distingue uma nação, então
também esse espaço não andará muito longe da proposta de Clarín...
Refiro-me, evidentemente, a uma “nação da alma”, não da
política ou da sociedade; uma nação exclusivamente nesses termos, criada pela
Península Ibérica para dar futuro a uma Europa de que também é Cabeça (embora
não seja reconhecida como tal pelo resto do Corpo...), mas, sobretudo, para dar
futuro ao mundo.
Ainda que noutros moldes, ou com outra partitura, Eduardo
Lourenço toca nesta mesma tecla: “Simbolicamente, isso permite uma outra
possibilidade de reler tudo o que nos aconteceu desde então e sobretudo esse
curioso processo de fascínio e ressentimento em relação à famosa Europa, quando
ela se constituiu como Modernidade. Nós fugimos para outro sitio, ou por outra,
nós derivámos, passámos a inventar uma outra Europa, uma outra maneira de ser
Europa e essa outra maneira de ser Europa está viva. É a América, a América no
seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia. Essa América não é o nosso
passado. É, julgo eu, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso
futuro, no sentido mais empírico do termo. Agora estamos já de algum modo
normalizados e felizes em termos europeus daqui. Mas a Europa não está
normalizada nem feliz em termos de Europa, aquela que não tem mais horizonte do
que essa própria Europa. Mas nós inventámos, construímos – ou através de nós
constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e em última análise, uma Europa
outra, a de um novo mundo que não
está só no passado.
Se nós pensarmos que, particularmente, a América Latina é
filha direta da Península, nós não podemos ser problematizados a esse título. A
esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica fazia com que
não sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em relação à outra Europa. Estávamos construindo algo
que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós, e isso não é o nosso passado,
isso é o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso
futuro está naquilo que inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não
conhecia. “
Penso que o nosso futuro está, efetivamente, naquilo que
inventámos, mas creio que a questão não será a de trazer à Europa essa outra
Europa, mas sim em levar a velha Europa ao encontro da nova, do lado de lá do
mar.
E isso poderá suceder transpondo a sua Cabeça – a Península
Ibérica, a sua energia, os seus valores, a sua essência – para um outro corpo
transcontinental: a América Latina.
Agostinho da Silva chama a atenção de que “convém que se avance para uma ampla relação
em todos os campos com as nações que formam a chamada América Latina e todas as
outras do globo que têm línguas de comunicação ibéricas, notando-se que a
América Latina é na realidade uma outra e potencialmente mais poderosa
Península Ibérica...”
Portanto, e reforçando o que dizia anteriormente, haverá que
ser constituída uma frente ibérica comum, capaz de reconstruir a Cabeça da
Europa. Cuidadosamente, respeitando a diversidade cultural de cada região e
fazendo dessa heterogeneidade uma mais valia comum. O impulsionador dessa
regeneração deverá ser Portugal, depois dele próprio haver sido desperto do seu
torpor pelas energias da Galiza e com quem se deverá manter espiritualmente
unido, recuperando o cumprimento do que tradicionalmente se denomina Missão
Lusíada.
Essa será a outra e a mais verdadeira restauração de si mesmo,
e nada contém de “passadismo”; será antes um “novo amanhecer”, como diz
Teixeira de Pascoaes, ou uma ressureição completa e autêntica através da
revisitação da Fonte da Vida, redescobrindo os valores que realmente são os
nossos para com eles edificar o presente, a pensar no futuro.
Com um enorme respeito e gratidão por tudo que nos foi legado.
****
Obedecendo a desígnios só conhecidos dos deuses, mas
anunciados por homens como António Vieira e Fernando Pessoa, Portugal foi
designado como “pivot” do processo quinto imperial; daí a importância fulcral
da Galiza no despertar do nosso país para o retomar renovado da Missão Lusíada.
Como expliquei atrás, esse trabalho envolve, primordialmente,
os Povos Ibéricos. Agostinho da Silva também pensa que “só os Povos Ibéricos a
toda a volta do mundo, lhe poderão, a ele mundo, dar mundo novo”... e esse
mundo novo não será outro senão o Império cultural do Espírito Santo, o Quinto
Império.
Creio firmemente que o novo Portugal, desperto e religado à
sua missão, não só deverá conduzir os demais Povos Ibéricos à reconstrução da
Cabeça, influenciando imediatamente o corpo da Europa como, no que respeita à
função ultramarina, deverá também ser ele o primeiro a cruzar o mar.
Evidentemente, mantendo sempre o espírito universalista que caracterizou as
suas viagens do passado e como um exercício constante de humildade, consciência
e serviço, pois só desse modo poderá cumprir a Missão Lusíada.
“Tanto o Poeta Pessoa como o Professor Agostinho sentiram a
dificuldade em que se encontra Portugal e a sua falta de saída, deixem-nos
dizer, física; para eles, como pensamento ou como vivência, o que está diante é
o fim de Portugal, se perder, como pode, a sua linha de mar: a saída seria
metafísica e o mar sem fim seria agora o dos domínios do espírito humano, não,
como escreveu Sérgio, apenas no intelectual (...), mas naquelas regiões em que
todo o pensamento é, pela fusão de sujeito e objeto, inteiramente impossível e
em que, portanto, nenhuma viagem terá fim.
Pessoa (...) não insistiu na correspondência física da ideia
metafísica. Agostinho (...) acha que a sustentação física viria de uma
Confederação dos Povos de Língua Portuguesa. Portugal conservaria o Mar, sem o
peso das Terras.
Se surgir de Portugal e, como pensa Professor Agostinho, do
Portugal transportado ao Brasil, a tal metafísica nova, a que uniria realmente
Oriente e Ocidente, os dois terão estado certos; se ela tiver como base
terrestre a Confederação, terá Professor Agostinho acertado mais do que Pessoa.
“
Sem querer tomar partido nesta “adivinhação mística” sobre o
porvir de Portugal e do Mundo, creio que competirá aos portugueses o transvasar
do sonho quinto imperial para a nova Península Ibérica, a transatlântica,
começando por anunciá-lo a quem fala a mesma língua, que Fernando Pessoa dizia
ser a sua Pátria verdadeira, e onde repousa António Vieira,
um outro Aviso desta mesma Mensagem.
Isto é, iniciando essa sua função pelo Brasil, o outro
Portugal do lado de lá...
Creio que dessa união entre o Portugal espiritualmente
reconstruído pela Galiza e o Brasil, redimido pelo novo Portugal, resultará o
novo pólo físico-espiritual do Mundo.
Por isso referia anteriormente “o casamento místico
das noivas da Galiza e dos marinheiros de Portugal “ que, segundo Agostinho,
estaria “plantado no rumo do outro pólo do Mundo. “ Ou seja, no rumo do referido
espaço sul americano, que considero a mais provável base operativa destinada ao
surgimento do Quinto Império.
Refira-se que esta união entre Portugal e Brasil não
significa qualquer exclusão dos outros países com a mesma língua, mas apenas
reflete o cumprimento da função própria de cada um. Portanto, creio que todos
os demais terão o seu papel, nomeadamente na expansão da “metafísica nova”
pelos dois hemisférios e pelos cinco continentes, porventura através da
Confederação dos Povos de Língua Portuguesa.
****
Recapitulando ou sublinhando o fundamental: ao
reconstruirmos aqui a Cabeça Ibérica, não só estaremos a oferecer à Europa um
caminho novo de consciência e realização, como também a criar a possibilidade
dessa mesma Cabeça ser transposta para aquela “outra Península Ibérica, mal
denominada América Latina “, passando também a nortear um outro Corpo que,
desse modo, será preparado para se tornar na “base de sustentação
física” do processo Quinto Imperial.
Tenho perfeita consciência do absurdo que soam estas
afirmações e do desconcerto que poderão provocar ao serem interpretadas em
exclusivo com a mente; mas este relato não começou pelo maior dos absurdos, com
a separação do meu coração, tendo ficado metade no outro lado do Pórtico da Glória?
.... Sem pretender convencer ninguém, só me resta falar com o coração que
comigo ficou, dirigindo-me diretamente ao coração de cada um e deixar que sejam
apenas os corações a avaliar tudo entre si, pelos seus próprios critérios.
****
Voltando à questão da “base quinto imperial”, é conhecido que
praticamente todas as profecias respetivas lhe atribuem um nome: Portugal. No
entanto, a minha interpretação sobre esse “Portugal” é um pouco diferente e, para
melhor a explicar, recorro a um símbolo celta que faz parte do folclore da
Galiza, onde continua a ser utilizado como talismã: o “triskel “.
O “triskel” representa o aprendizado iniciático e a eterna
evolução, incluindo Passado, Presente e Futuro, assim como o equilíbrio entre Corpo, Mente e Espírito, tendo sido utilizado pelos druidas como o seu símbolo
supremo, mágico e sagrado.
É um símbolo constituído por três braços espiralados (o três
era o número perfeito da cultura celta) que se unem num ponto central, formando
uma hélice e transmitindo a ideia de movimento.
Segundo a minha própria concepção, vejo este triskel como uma
chave – a chave dos mistérios ligados à implantação do Quinto Império no mundo
– e que, à falta de conhecimento e de melhor designação, terei que dizer que se encontra na mão do Destino. Suponho que muito pouco ou nada se saberá sobre essa "mão" e muito menos sobre o dia e a hora em que fará rodar a chave.
Nesta perspectiva, faço corresponder um aspecto de Portugal a cada um dos braços do "triskel". Assim, num deles situo o "Portugal" eterno, ou todo aquele potencial que agora jaz abandonado, mas que poderá voltar à superfície. Por isso representa o Passado, mas também o Espírito intemporal que, outrora, conduziu Portugal aos mais altos feitos na História do Mundo.
Num outro braço, coloco a Galiza, ou aquele outro “Portugal”
que não é, mas que poderia ser, e que se converteu na guardiã fiel daquele
potencial. Representa o Presente, ou a Alma como Mente, recolocando a consciência
necessária para o cumprimento da Missão Lusíada, que devidamente inspira e coroa.
Finalmente, no braço que falta, coloco aquele “Portugal” que já
foi e que ainda virá a ser, embora de um outro jeito: o Brasil. Desse modo,
representa o Futuro, ou o Corpo de manifestação alinhado pela Mente e norteado
pelo Espírito. Por isso, acredito que aquele vasto território da “Península
Ibérica transatlântica”, detentor de uma alma comum com Portugal e Galiza (que
também necessita ser ativada...), será visto, um dia e em termos exclusivamente
espirituais, como a Pátria dos novos Lusíadas.
Quando a chave rodar, os três braços iniciarão
as suas funções simultaneamente. Isto significa que, ao desencadear-se a reconstrução
da Cabeça da Europa, o sangue novo nela empregue vai de imediato correr pelas
veias desgastadas do velho Corpo, o continente europeu, permitindo-lhe
enfrentar com lucidez todas as tribulações que tiver pela frente; ao mesmo
tempo, a ação no outro lado do mundo permitirá a colocação daquela mesma Cabeça
(que, na verdade, deverá ser construída em
sincronicidade, nos dois lados do oceano) no Brasil, ou seja, propiciará a
instalação daquelas mesmas ideias, valores e essências no Corpo Peninsular sul
americano, jovem e vigoroso que, desse modo, se ligará, anímica e espiritualmente,
à energia do futuro para se constituir, de fato, como a verdadeira “base de
sustentação física” do grande Mistério.
Um Mistério que, evidentemente, tanto poderá ocorrer amanhã
como daqui a mil anos, mas que, desde já, poderemos enquadrar e incluir de uma
forma mais consciente em nós mesmos, explorando com maior profundidade as
nossas mentes e corações. Aliás, a ação que, atrás, procurei delinear em traços muito largos e falhos de clareza e objetividade, não respeita somente a nações e continentes, mas, também, ao trabalho de cada um, totalmente a sós consigo.
“Para uns, já veio, para outros está a chegar e para muitos outros
só virá daqui a uns milhares de anos... “, são palavras sábias sobre a
chegada do Reino de Deus. Penso que não se aplicam totalmente ao advento do
Quinto Império porque este, supostamente, vai obedecer a determinados ciclos
temporais, o que não sucede, obviamente, com o Reino de Deus. No entanto, penso
que será possível adiantar essa chegada através da consciência, se for
alcançado e vivenciado o estado de espírito que, desde logo, o fará presente.
Para isso, cada um terá que reconhecer e percorrer o seu próprio
caminho, isto é, terá que encontrar e fazer rodar a sua própria chave.
E, ao fazê-lo, poderá, justamente, descobrir que o Quinto
Império começa sempre, mas sempre, por dentro de si mesmo.
6 – POR CAMINHOS DE TERRA COM PÓ DE ESTRELAS
Não conheço terra de amor, de ternura e
humildade mais próxima do calor de um lar de além que essa sagrada terra das
minhas peregrinações da alma.
Leonardo
Coimbra
Continuava a descer a montanha.
As minhas mãos agarravam-se sofregamente
ao volante, porque a mente não parava de despejar o seu arsenal de razões a
contradizer tudo o que havia vivido na véspera, e a estrada sinuosa forçava uma
outra atenção que, simultaneamente, era um alívio. Como se tivesse a cabeça
debaixo de água e, a espaços, viesse à superfície para respirar.
Naquela noite havia passado por um
terramoto irracional que abalara todos os meus alicerces, derrubando os códigos
de descrição do mundo em que me apoiava e que, naquele momento, faziam parte
dos escombros. E a mente insistia em que tudo havia sido um sonho.
Depois de uma curva mais acentuada deparou-se-me
a Ria de Nóia, ao fundo. Surgiu como uma visão gloriosa, quase tão sublime e
resplandecente como o Pórtico anterior. As suas águas brilhavam no meio das
montanhas douradas pelo sol da manhã, num quadro de uma beleza que cortava a
respiração e o meu coração disparou sem controle, cada vez mais acelerado.
E mais forte e mais rápido.
Profundamente comovido, percebi, de
súbito, que algo estava errado e que alguma coisa desconhecida e terrivelmente
inquietante estaria prestes a suceder. Todo eu tremia e, num repelão, dei uma
guinada para a berma e parei o carro. Então, estupefato, constatei que aquelas
pancadas tão fortes do coração provinham do exterior, como se ele estivesse
fora do meu peito...
Foi um momento de total confusão e
desvario.
Até que compreendi, não com a mente,
mas com todo o meu corpo, a “des-razão” de tal fato: na noite anterior, o
coração partira-se em dois e uma das partes tinha atravessado o portal de
névoa, ficando do outro lado do espelho.
Assim de simples, como se fosse a coisa
mais natural do mundo.
Mas eu já não sabia em que mundo estava.
Apesar disso, ou por isso mesmo, assimilava também com espantosa facilidade
aquele dado e a informação complementar: a parte do coração que atravessara serviria
como referência constante, inspiração ou farol sempre aceso, guiando os meus
passos pelos caminhos da vida, até que um dia, pelo meu próprio esforço e
vontade, conseguisse alcançar, de novo, o Pórtico da Glória. E nesse momento,
voltariam a reunir-se as duas partes do meu coração.
No estado de exaltação transcendente em
que me encontrava, não podia fazer mais nada a não ser respirar fundo e seguir
adiante, o mais naturalmente possível.... Foi o que fiz, mas, pouco depois,
tive que parar na primeira praia que encontrei, para pedir ajuda ao mar.
As ondas sempre me lavaram de
problemas e questões complexas e, mais uma vez, limparam-me da tensão.
Recapitulei tudo o que me havia sucedido e cheguei a uma primeira conclusão: a
experiência da véspera, se não tivesse sido um sonho ou uma alucinação que se
prolongava montanha abaixo, somente me dizia respeito a mim e nada tinha a ver com
outras supostas “aparições”. Na verdade, não havia surgido nenhum ser com
qualquer mensagem dirigida à humanidade, e a única sugestão que me ficou gravada
seria voltar, um dia, pelos meus próprios meios, àquele Portal misterioso, a
fim de reunir as duas partes do meu coração.
Muito simples, principalmente para
quem não tinha a menor ideia de como o realizar...
A minha mente voltara à carga, como um
vulcão donde irrompiam, sucessivamente, rios de
argumentos escaldantes. Mas também sentia, mais do que pensar (ou
pensando com todo o meu corpo, se assim se pode dizer!), que tudo aquilo que
sucedera era verdadeiro, estava certo e fazia o maior dos sentidos.
Olhei as areias incólumes da praia
praticamente deserta e divisei ao fundo um pequeno grupo de pessoas que
chegavam para aproveitar, desde cedo, aquele dia já quente de agosto. Fiquei
longos momentos a observá-las. Todas teriam os seus sonhos, as suas angústias,
as suas alegrias, os seus objetivos na vida, as suas ilusões.... Por um
momento, senti uma onda avassaladora de nostalgia, os meus olhos encheram-se de
lágrimas e chorei convulsivamente, sem saber exatamente porquê, como uma
criança.
Mas, na verdade, sabia.
Ao descer aquela vertente da montanha,
também tinha descido uma vertente na minha vida e, como se fosse um barco
fundeado numa baía tranquila, havia chegado o momento de levantar âncora. A extensa
e resistente amarra que sustinha a âncora era composta por laços e sentimentos
fortíssimos, que a cingiam a um mundo conhecido, e aqueles que o habitavam
quotidianamente não podiam compreender a necessidade surreal da partida.
Não se pense que ficariam para trás
sentimentos e amores; pelo contrário, nenhum deles mudaria ou terminaria,
crescendo até em intensidade e fervor, constituindo as únicas pontes ou ligações
possíveis entre os mundos que se separavam.
Com as minhas lágrimas, soltei definitivamente
as tensões, medos, hesitações e angústias, não somente da noite anterior, mas
também todas as outras que havia acumulado ao longo da vida e, muitas, já nem
recordava. Havia tristeza e alegria, amor, temor e arrebatamento, consciência e
expiação, tudo misturado com nervos e uma profunda catarse, mas acabei por
largar tudo.
Tudo.
Até que, finalmente tranquilo e com uma
convicção estranha mas absoluta, que vinha do mais fundo de mim, decidi soltar,
também, a última amarra do barco da minha vida.
****
No momento em que escrevo, passaram-se
vários anos sobre aquela noite transmutadora da Galiza. Por isso, posso agora
juntar ao simples relato dos acontecimentos, não as explicações que continuam a
faltar, mas algumas reflexões e desenvolvimentos complementares, resultantes do
trabalho sobre mim ao longo do tempo.
Enganam-se redondamente aqueles que
pensam que os caminhos da espiritualidade são uma espécie de vias rápidas,
fáceis e seguras; pelo contrário, são perigosas e tortuosas estradas de
montanha, em que, amiúde, se nos deparam desvairados camiões de argumentos em
sentido contrário, a toda a velocidade.
Um livrinho de Carlos Castaneda
intitulado “Viagem a Ixtlan” ajudou-me a enquadrar e a compreender um pouco
mais a reviravolta operada na minha vida.
Independentemente da polémica sobre o
seu autor, cuja vida pessoal não me interessa para nada, algumas descrições e propostas
contidas naquela obra vieram ao encontro do que eu mesmo havia experimentado.
Recordo-me que “D. Juan”, (o suposto
xamã que é a figura central do livro), afirmava que o homem comum somente pensa
aquilo que lhe ensinaram a pensar, porque foi ensinado a utilizar, em exclusivo,
a mente concreta e racional, negando qualquer outra forma de sensibilidade ou
de percepção da realidade à sua volta. Mas por detrás dos tapumes do seu mundo
conhecido, familiar e doméstico, permanecia o grande Desconhecido, o Mistério
insondável, a Força que incita o homem a avançar.... Percorrer aqueles caminhos
como um guerreiro impecável seria o maior de todos os desafios, dando pleno
sentido à vida.
Eu havia provado o sabor agridoce do
Infinito no cimo de uma montanha da Galiza e, portanto, sabia por experiência
própria, ou na carne do meu espírito, que aquelas palavras, com todas as
diferenças abissais entre os dois casos, eram absolutamente verdadeiras. E
havia decidido ir em frente, até porque não pretendia de modo algum passar o
resto dos meus dias só com metade do meu coração...
Paulatinamente, também fui percebendo
que a única revolução capaz de trazer uma mudança autêntica, completa e duradoura
para o mundo, seria a “revolução da consciência”, e que esta só poderia surgir
através do indivíduo.
Digamos que foi uma constatação
“contra a corrente” das tendências grupais ou coletivas do mundo de hoje,
apoiadas por um espiritualismo que só fala na Idade de Aquário com essas mesmas
características. No entanto, continuo absolutamente convicto de que a
consciência, tal como a revelação, somente poderá surgir de dentro para fora,
numa base exclusivamente individual.
Assim sendo, a revolução necessária só
poderá apoiar-se nessa base interna, por dentro e no mais fundo de cada ser
humano: cada um terá que se enfrentar a si próprio e romper as noções
coletivistas do “catálogo político, social, espiritualista e religioso”, adaptado
a qualquer zona do mundo e criado para manter o rebanho populacional a salvo e
o mais longe possível da temida consciência individual.
****
Depois de todo este tempo, cheguei à
conclusão de que o Pórtico que inopinadamente me surgiu na Galiza representa a
consciência necessária para me reconstruir a mim mesmo. Isto é, para me
inteirar de questões que até ali me passavam completamente ao lado, como as
referentes à Tradição Lusitana, à Missão Lusíada e à instauração do Quinto Império,
que agora reconhecia intrinsecamente como minhas, como se fizessem parte do meu
caminho há séculos sem fim.
Mas que podia fazer?
Lembrei-me do poema da Mensagem referente ao
Conde D. Henrique, que, igualmente, se questionava: “que farei eu com esta Espada?
” E Fernando Pessoa dá-lhe uma solução extremada e imediata: “Ergueste-a e
fez-se. “
Seria assim tão simples?
De qualquer modo, sabia que a resposta
teria que vir do meu interior, pois seria nele, ou a partir dele, que lograria
erguer a minha própria Espada da consciência. E com ela ajudar a reconstruir a
Cabeça Ibérica e, porventura, chegar à Coroa do Império, com a humildade do
guerreiro do espirito e ao serviço de um ousado propósito Lusíada que,
entretanto, por obra e graça da Galiza, também passara a ser meu.
Para a vida e mais além.
Foi assim que a Galiza se tornou na
fonte de inspiração que tanto necessitava e no manancial que me completava de
energia. Ao percorrê-la e absorver os seus mistérios, percorro, simultaneamente,
roteiros desconhecidos por dentro de mim e, aos poucos, vou adquirindo a
capacidade e a força necessária para erguer a Espada e completar a demanda.
Por isso, sempre que a noite estende o
seu manto de estrelas sobre o mar e ilumina os campos e as montanhas, e as
estrelas e a lua brilham tanto quanto o sol, sei que esse acréscimo de
luminosidade e de vibração, provem diretamente da Coroa do Império, do outro
lado daquele Pórtico onde ficou o meu coração partido. Ou quando o sol matutino rompe com luz a
folhagem, incendeia a crista das ondas e transmuta em ouro os picos das
montanhas, reconheço a resplandecência daquela Coroa, incitando serena, mas
vigorosamente, ao refazer da Cabeça onde ela quer assentar.
As noites de Finisterra são especiais,
pois ali termina fisicamente o Caminho de Santiago. No entanto, a Via Láctea há
muito que despejou uma parte do seu caudal de estrelas sobre o mar, construindo
uma ponte que prolonga o Caminho para além do cabo, para além do homem... E é nesse
caminho espiritual das estrelas que também sinto circular o meu coração,
antecipando-se a mim na travessia.
Sabemos que o espiritual tem um
reflexo no plano físico e, sendo assim, encontro sinais daquele caminho etéreo
naqueles outros de terra, salpicados de pó de estrelas. E também sigo,
apaixonadamente, esses caminhos de conquistadores e peregrinos, impregnados de
rezas e esconjuros entrecortados pelo repicar de sinos e que cruzam campos de
terra negra e fértil, cultivados com suor e carinho até ao mar. Em todos eles encontro
sinais do meu coração partido, e sigo esperançado por entre montanhas
ondulantes, perfumadas e alegres, como um raio de sol percorrendo um decote de
mulher.
Faço esses caminhos vezes sem conta e sem
caminho certo, e quase junto as duas partes do meu coração; oiço o seu palpitar
junto com vozes recônditas, em vales perdidos vestidos de brumas e tan fondos/ tan verdes, tan frescos, como
bem disse Rosalía de Castro, que os
anxeles neles/ dormidos se quedan, / xa em forma de pombas,/ xa em forma de
niebras.
Muitas vezes aquelas névoas reconstroem
por dentro de mim, mas também quase visível à minha frente, aquele primeiro
Pórtico da Glória diáfano e estonteante de beleza e vibração. E sinto
claramente o bafo resplandecente da Coroa da Galiza ali tão perto e a
proximidade das duas partes do meu coração, como se a sua reunião fosse
anunciada e se tornasse mais próxima em cada uma dessas vivencias.
Até que aconteceu.
Claro que, por muito que o desejasse, não
estava de todo preparado, pois não conheço preparação alguma para o contato direto
com o sobrenatural. Sucedeu, uma vez mais, em pleno verão, num agosto claro e
quente, de novo pela alta madrugada e numa noite de chuva de estrelas. Haviam
passado doze anos.
Acordei por volta das três horas da
manhã e, sem sono, levantei-me silenciosamente, com a ideia de espreitar as
estrelas, através da enorme janela que dava para o mar. Não pude distinguir
coisa alguma. Uma espessa neblina separava-me do céu, assim como do monte Louro,
que deveria estar visível ao fundo e até das ondas em baixo, que somente ouvia
rebentar, ritmadamente, contra as rochas.
De súbito, uma luz rasgou as névoas de
fora e fê-las translúcidas, precipitando também um clarão pela janela adentro. A
minha mente ainda se defendeu com a noção de que seria o projetor rotativo de
um barco a entrar na ria, mas logo se reduziu à sua insignificância. Um outro
jorro de luz ainda mais potente fez-me fechar os olhos. Não serviu de nada; foi
como se os abrisse ainda mais, ou como se todo o meu corpo fossem olhos e
sentidos totalmente despertos.
E, de súbito, ali estava ele, o Pórtico da
Glória em todo o seu esplendor sobrenatural e terrivelmente belo, a envolver-me
por completo. Não sei como aconteceu ou quanto tempo durou. Dessa vez, o
Pórtico não estava à minha frente, mas eu sentia-me dentro dele e,
simultaneamente, tudo estava no meu interior... Julguei perceber uma Coroa radiante
bem no centro do vórtice, donde provinha a energia, em borbotões sucessivos,
cada um mais potente que o outro. Impossível descrever o que se passou e o que
senti, pois tudo estava para além da compreensão e do sentimento. A determinada altura, percebi que tinha os
olhos fechados e resolvi abri-los. Tive que fazer um esforço, porque os mantivera
cerrados com força durante muito tempo.
Abri lentamente os olhos e, à minha
frente, comecei por distinguir o farol do monte Louro, a girar pausadamente a
sua luz. Em baixo, as águas da ria ondulavam com suavidade e brilhavam sob uma
lua crescente.
Mais uma vez, não queria acreditar.
Estaria ainda a viver o resto de um sonho, ou mesmo um episódio extemporâneo de
sonambulismo? Teria sido uma alucinação?
A minha mente divagava, mas o meu
corpo conhecia a verdade, pois reconhecera imediatamente a mesma força ou
energia que havia transformado a minha vida, doze anos antes... Daquela vez,
tudo sucedera de forma concisa e particularmente sóbria, sem conotações
religiosas e livre da parafernália devocional tantas vezes associada às
manifestações do sobrenatural. Ficara apenas uma inspiração que, mais tarde, me
conduzira à antiga noção da Ibéria como Cabeça da Europa, aludindo ao trabalho
de reconstrução a partir dos valores consignados na Coroa da Galiza. E que
também me chamara a atenção para o rosto de Portugal que fitava, por sobre o
mar oceano, o “futuro do passado”...
E desta vez?
O meu coração batia apressadamente e
percebi que já não precisava de procurar a outra metade. Tudo se havia
realizado naquela noite de mistério, e a mesma força que havia separado antes o
meu coração voltara a reunir as duas partes. Percebi claramente que assim
acontecera e a razão porque acontecera: a etapa da Galiza estava prestes a
terminar e somente inteiro poderia avançar para a etapa seguinte daquele Caminho,
para mim ainda insondável, que ligaria duas montanhas, como os pilares de uma
ponte. E, muito sinceramente, não concebia outro objetivo a não ser atravessá-la
e deixar uma direção apontada.
Cumpri
a minha missão de anunciador de um dia novo. Falta que a estrada se ache, mas
está indicada a sua direção. Deste dia em diante, em toda a Ibéria,
transmutação de todos os valores!
Relativamente a estas palavras de
Fernando Pessoa, e concordando em absoluto com o apelo à transmutação dos
valores, constatei de novo que nada tinha a anunciar ao mundo. Sobre essa
questão particular, a minha postura alinhava-se muito mais com a inquietação do
poeta do Porto, António Rebordão Navarro:
Que pode um homem só que só possui
um lápis, um papel, um coração,
outra coisa fazer além de um mundo novo?
Na verdade, eu somente possuía o
lápis e o papel onde escrevia estas notas, além do coração finalmente completo
e a enorme vontade de construir um mundo novo. Mas o mundo renovado teria que
ser, forçosamente, o meu mundo interior, pois só esse estaria ao meu alcance;
depois de mudar esse mundo, procuraria fazer o que pudesse pelo outro, nem que
fosse apenas e só, como referi antes, deixar uma direção apontada...
Sentia essa ânsia, traduzida
nesse propósito, mas não atinava em explicá-lo a mim mesmo. Era como se também
estivesse ligado a um enigmático Fio de Ariadne, entendido algures, desde a
meta do Caminho e que por ele me conduzia, fazendo notar as necessidades prementes
de cada etapa, como era o caso da reconstrução da Cabeça da Europa, na Ibéria, mas
convidando-me, primeiro que tudo, a conhecer a totalidade do percurso, para
dele dar notícia.
Afinal, uma espécie de Novas
Descobertas, não só por dentro, mas também por fora, pela face da Terra,
abrindo horizontes internos e estabelecendo rotas externas. Portanto, somente
sabia que, na sequência do Caminho teria que considerar, daí em diante, a
travessia do mar, em direção a sudoeste, seguindo a linha do olhar de Portugal
como rosto da Europa...
Que podia eu fazer a não ser confiar
no meu coração, repleto dos valores da alma lusa, amorosamente burilados pela
Galiza, e procurar seguir em frente, por sobre o Atlântico? ... Depreendia, logicamente, que não seria nada
fácil, mas não encarava, sequer, outra alternativa: mesmo com a mente atónita, aquele
era, sem dúvida alguma, o meu caminho do coração.
Senti os dedos da noite a alisarem os
meus cabelos revoltos, uma e outra vez, com caricias demoradas que poderiam ser
de Mãe ou de Amante, e o seu bafo cálido e, ao mesmo tempo, refrescante, a enxugar
o suor que ainda me corria pelo rosto. Lá fora, saíam os primeiros barcos para
a faina diária da pesca, como estrelas cadentes que haviam abandonado a
velocidade estonteante do firmamento para deslizarem com lentidão e deleite
pelas águas da Ria. Todos seguiam para sudoeste, como que sublinhando o rumo que
eu próprio deveria tomar. Fazia ainda muito escuro, mas adivinhava um sorriso nos
lábios daquela antemanhã, e esse otimismo era contagiante: tudo se
descomplicava e se tornava completamente exequível e transparente. Mas continuaria
assim quando nascesse o dia e se instalasse uma outra realidade?
Respirei fundo.
E senti-me em paz.