NOTA PRÉVIA: A presente publicação foi retirada de um guião de cinema (
na verdade, corresponde à terceira e última parte do filme “Mensagem”), cuja estrutura obedece,
sobretudo, à linguagem cinematográfica. No entanto, essa linguagem apoiou-se num texto que aqui se reproduz na íntegra, enriquecido por inúmeros escritos
de Fernando Pessoa (tudo o que se encontra em itálico é de sua autoria, excepto a
parte do poema que é dita pelo Bandarra e que pertence ao próprio),
absolutamente indispensáveis para a tentativa de decifração do Mistério que envolve o Encoberto.
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A noite vai adiantada num quarto, algures em Lisboa, com uma atmosfera intensamente feminina. É o
santuário de Ofélia, a sempre-noiva adiada de Fernando Pessoa que, constrangida, lê e volta a ler uma carta do Poeta.
(Ofélia Queiroz, nascida em Lisboa em 1900, tinha 19 anos
quando conheceu Fernando Pessoa, então com 32. Trabalhava como
secretária no mesmo escritório da Companhia de importação-exportação Valladas
& Freitas, onde o Poeta traduzia o correio comercial. Foi o único amor
conhecido da sua vida).
Ophelinha
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena,
porque estas cousas fazem sempre pena; alívio, porque na verdade, a única
solução é essa – o não prolongarmos mais uma situação que já não tem a
justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica
uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ophelinha outro
tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o
Destino fosse gente a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais
depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida,
consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se
sentir a amar. Se assim não fosse, não havia gente feliz no mundo. As
criaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade dessa ilusão, porque
nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam
tomando por ele a estima, ou a gratidão, que ele deixou.
Estas cousas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida que é tudo,
passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas,
que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para comigo, mas compreendo e desculpo; decerto a escreveu
com irritação, talvez mesmo com mágoa, mas a maioria da gente – homens ou
mulheres – escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos
ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio óptimo, e mesmo a sua
irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que
merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim…
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei
nunca – nunca, creia – nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de
pequenina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua índole amorável. Pode ser
que me engane, e que estas qualidades que lhe atribuo, fossem uma ilusão minha;
mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lhas
atribuísse.
Não sei o que quer que lhe devolva – cartas ou que mais. Eu preferia não
lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memória viva de um
passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de comovedor numa
vida, como a minha, em que o progresso nos anos é par do progresso na
infelicidade e na desilusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte
a cara quando passe por si, nem que tenha de mim uma recordação em que entre o
rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância,
que se amaram um pouco desde meninos, e, embora na vida adulta sigam outras
afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória
profunda do seu amor antigo e inútil.
Que isto de “outras afeições” e de “outros caminhos” é consigo, Ophelinha,
e não comigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a
Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que
não permitem nem perdoam.
Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na
sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.
Fernando
***
Uma extensa praia deserta.
Durante “horas incógnitas”, como diria Fernando Pessoa, o
Poeta passeia sozinho pelo areal, numa “meditação andada à beira-mar”… E, “como
num resumo escuro da História”, encontra na praia várias figuras relevantes da
História de Portugal, que comungam consigo das aspirações espirituais de todas
as eras, dos desassossegos de todos os tempos… Todos olham fixamente o
horizonte.
Entre personagens anónimos, envergando hábitos de
cavaleiros Templários e de frades Franciscanos, ou escudeiros empunhando
pendões reais portugueses, reconhecem-se o Infante D.Henrique, D.João I, Mestre
de Avis, o Condestável Nuno Álvares Pereira, D.Afonso Henriques, D.Afonso V,
D.Sebastião, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, o Padre António Vieira, o
Bandarra…

No seu quarto, a meio da noite, Fernando Pessoa desperta
do sonho com os personagens históricos, na praia. Demasiado agitado para poder continuar a dormir, soergue-se
na cama e acende um cigarro. Fica, então, desperto e pensativo, face a face com o que resta daquela noite estranha, salpicada por uma amargura sem nome.
VOZ DO NARRADOR:
A Mensagem foi o único livro de Fernando Pessoa publicado
durante a sua vida.
Originalmente intitulada “Portugal”, ela constitui-se
como a chave última para o desvelar do sentido essencial da portugalidade,
ocultando sob os seus versos a mensagem propriamente dita daquele que foi o
derradeiro iniciado “por comunicação directa de Mestre a Discípulo” na Ordem
Templária de Portugal.
***
Escritório da Companhia onde Fernando Pessoa trabalha.
Sentado à secretária, o Poeta bate automaticamente as
teclas da máquina de escrever, até que pensamentos mais profundos o fazem parar
e o transportam para um outro mundo.
VOZ DO NARRADOR:
A sua declaração de intenções está bem expressa nestas
palavras: “Navegadores antigos tinham uma
frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar
com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torna-la
grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha
desse fogo.
Só quero torna-la de toda a humanidade, ainda que para isso tenha de a
perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu
sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a
evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
A “Mensagem” apresenta-se como o corolário deste
desígnio, constituindo a última grande profecia do ciclo adâmico.
A profecia contida na “Mensagem” é anunciada através dos
seus três Avisos que, de certo modo, se completam e sobrepõem.
O Primeiro Aviso é o Bandarra.
Num local indefinido, perdido no tempo ou mesmo fora
dele, o sapateiro Bandarra trabalha na sua profissão. De súbito pára e olha por
cima do ombro, dando conta de algo que não se sabe o que é.
VOZ DO NARRADOR:
Gonçalo Anes, o Bandarra, que viveu no século XVI, foi
aquele sapateiro de Trancoso em cuja alma vivia, ninguém sabe como, “o mistério
atlântico da alma portuguesa”.
Escreveu umas “Trovas” de significado enigmático,
relativas à sorte de Portugal nos destinos do mundo.
Quarto de Fernando Pessoa. Noite.
O Poeta escreve na sua mesa de trabalho. Relê, depois, o
poema que dedicou ao Bandarra, até que, através da misteriosa janela do quarto, se depara com o próprio sapateiro de Trancoso.
(Havia já sido explicado,na primeira parte do filme, que a janela do quarto de Fernando Pessoa representa a abertura da terceira visão, ou a visão interna para uma outra dimensão, comummente desconhecida, do mundo e da vida).
FERNANDO PESSOA:
Sonhava, anónimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português mas Portugal.
BANDARRA:
Oh, quem tivera poder para dizer
Os sonhos que o homem sonha!
Mas hei medo que me ponha grã vergonha
De mos não quererem crer...
***
VOZ DO NARRADOR:
O lado messiânico das Trovas encontrou nos judeus os seus
mais entusiásticos divulgadores, apesar do sentido último da obra não conduzir
propriamente às suas aspirações particulares. No entanto, esse entusiasmo foi o
que levou à prisão do autor pela Inquisição. Acusado de Judaísmo, acabou por
ser ilibado, limitando-se o Santo Ofício a basear a sua censura no facto do
autor não estar canonicamente autorizado a interpretar as Escrituras.
Nas Trovas detecta-se uma clara inspiração nos mesmos
textos e glosas a que recorriam os meios joaquimitas peninsulares, apontando
para o fim da Igreja Romana e para o papel relevante de Portugal no Novo
Império.
Disse Fernando Pessoa: “O futuro de Portugal, que não calculo mas sei, está escrito nas Trovas
do Bandarra: esse futuro é sermos tudo!”
O verdadeiro patrono do nosso País é esse sapateiro Bandarra.
Esse humilde sapateiro de Trancoso é um dos mestres da nossa alma nacional,
uma das razões de ser da nossa independência, um dos impulsionadores do nosso
sentimento imperial.
Que Portugal tome consciência de si mesmo. Que rejeite os elementos
estranhos. Ponha de parte Roma e a sua religião. Entregue-se à sua própria
alma. Nela encontrará a tradição dos romances de cavalaria, onde passa, próxima
ou remota, a Tradição Secreta do Cristianismo, a Sucessão Super- Apostólica, a
Demanda do Santo Graal.
***
Quarto de Fernando Pessoa. Noite.
Na janela mágica, surge o Padre António Vieira.
FERNANDO PESSOA:
O céu ´strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D.Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.
***
Igreja de S.Roque, em Lisboa.
No púlpito, o Padre António Vieira proclama aos fiéis um
inflamado sermão.
VOZ DO NARRADOR:
O Padre António Vieira viveu um século depois do Bandarra
e foi autor de uma obra com idêntico sentido milenarista visionário. Inevitavelmente,
foi perseguido pela Inquisição e preso durante dois anos.
As acusações contra Vieira eram baseadas no
reconhecimento do Bandarra como profeta iluminado e à previsão do ressurgimento
de “certa Pessoa” que instauraria um período de “mil anos ou muitos mil que o
mundo há-de durar…”
Ao anúncio desta maravilha de grande mudança no teatro do
mundo, ou seja, a instauração do Império Universal, conjugado simultaneamente
com o auge da monarquia portuguesa na figura do Encoberto, dedicou António
Vieira a sua existência.
Foi, segundo Fernando Pessoa, ”o maior artista da nossa terra,
o Grão-Mestre da Ordem Templária de Portugal”, e é, assim, o Segundo Aviso da
“Mensagem”.
***
Quarto de Fernando Pessoa. Noite fria, que faz o Poeta
andar de um lado para o outro, embrulhado num cobertor; mas esse frio exterior
confunde-se com os calafrios de dentro, provenientes de um desassossego de alma
permanente. Nervoso e angustiado, Pessoa amachuca e deita para o chão
um papel onde havia
escrito mais um poema, retomando o seu percurso de prisioneiro entre aquelas
quatro paredes.
VOZ DO NARRADOR:
O Terceiro Aviso não é expressamente nomeado, já que é o
único poema da “Mensagem” que não tem título. No entanto, é também o único
poema que está escrito na primeira pessoa do singular. Quer isto dizer que o
Terceiro Aviso é ele próprio, o autor da “Mensagem”: Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa foi um dos mais importantes, senão o
maior representante da Tradição Primordial no século XX. O seu pensamento deu
plena continuidade aos anseios do Bandarra e do Padre António Vieira.
Diz Fernando Pessoa: “Não
temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse
sonho, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós
consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo o que dissermos ou
escrevermos e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós o
respirem. Então se dará na alma da Nação o fenómeno imprevisível de onde
nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império.”
Quarto de Fernando Pessoa pouco iluminado, excepto pelo
luar intenso que entra pelos vidros da janela, agora fechada. O Poeta, mais
desesperado do que cansado, senta-se no chão, ainda com o cobertor sobre os
ombros. Olha a janela e o seu rosto fica totalmente imerso naquela luz
estranha. Lentamente, roda a cabeça e encontra no chão o papel que havia
deitado fora. Desdobra-o e lê, mas logo desiste e recita, para si próprio, o poema
que havia começado a escrever.
FERNANDO PESSOA:
Screvo meu livro à beira mágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
…
Nesse momento, o poema é interrompido porque a janela do
quarto, como que impelida por um vento súbito, abre-se de par em par. Do outro
lado surge o seu próprio duplo espiritual, um "outro Fernando Pessoa", que encara
o Poeta sentado no chão e se lhe dirige.
DUPLO ESPIRITUAL DE FERNANDO PESSOA:
Cumpri a minha missão de anunciador de um dia novo. Falta que a estrada se
ache, mas está indicada a sua direcção. Deste dia em diante, em toda a Ibéria,
transmutação de todos os valores!
A cidade de Lisboa com a noite adiantada e, praticamente,
só com as luzes públicas acesas e as ruas desertas.
VOZ DO NARRADOR:
No transcurso dos séculos, nos momentos mais prementes da
humanidade, sempre tem aparecido, sob diferentes nomes, um divino Filho de Deus
a fim de ajudar os homens.
Foi assim que o Cristo encarnou no Mestre Jesus, para dar
início a um segundo ciclo na evolução espiritual do mundo. Do mesmo modo, um
Messias virá assinalar o terceiro período, iniciando uma nova religião mundial.
No próprio Evangelho é relatada a cena do último encontro
do Cristo com os seus discípulos, ocorrida nas margens de um lago da Palestina.
O Mestre explica a Pedro que a sua missão, como chefe da
Igreja, não será definitiva e terminará pela morte, tomando outro o seu lugar.
Pedro pergunta depois sobre a sorte de João e o Cristo responde-lhe, designando
o discípulo amado: ”Este Eu quero que fique até que Eu volte. Que tens tu com
isso?”
Daqui se depreende, como assinalou a teoria joaquimita,
que a Igreja de Pedro (a do Filho) não é a definitiva e deverá, um dia, ser
substituída pela de João (a do Espírito Santo).
A Igreja de João tem permanecido oculta “até que Eu
volte”, como disse o Cristo. Portanto, é a Sua segunda vinda que irá assinalar
a Terceira Era.
O Encoberto é, afinal, o nome com que Fernando Pessoa,
António Vieira e o Bandarra designam o Cristo que ainda se não manifestou.
Permanece encoberto pelo nevoeiro que caracteriza este período de crise, em que
a visão dos homens se tornou baça pela confusão dos sentidos.
As Novas Descobertas, de que fala Fernando Pessoa, terão
que partir, como as anteriores, de uma base interna, espiritual. Há que
dissipar primeiro o nevoeiro da alma, abrir a janela da terceira visão e
reconhecer a presença do Cristo interno, que está em nós como esteve no Mestre
Jesus. Só assim se poderá dissipar o nevoeiro externo que envolve o mundo
materialista, à beira do caos.
***
Cais das Colunas, em Lisboa. Fernando Pessoa percorre
solitariamente a beira Tejo, envolto pelo nevoeiro.
VOZ DO NARRADOR:
O dia e a hora do reaparecimento do Cristo não foram
revelados. Como diz S.Mateus, “na hora em que menos pensardes, Ele virá”. No
entanto, foram descritos os sinais do Fim dos Tempos, que precedem a Sua vinda,
e eles tornam-se evidentes neste final do século XX.
O Fim dos Tempos não é, contudo, sinónimo do Fim do Mundo,
mas sim e apenas do final de uma Era. A transição poderá ser violenta mas,
segundo Fernando Pessoa, a própria morte é apenas “a curva da estrada”, cuja
continuação se não vislumbra, mas existe.
As provações são factor de crescimento espiritual, e esta
crise final poderá conduzir a uma mais ampla visão, capaz de enxergar a própria
luz do sol Descoberto, o Cristo Redentor da Terceira Era.
Este Cristo que retornará não será igual ao Cristo que,
aparentemente, partiu. Durante os dois mil anos que passaram, foi Ele o guia
supremo da Igreja invisível, composta por discípulos de todos os credos.
Reconhece e ama aqueles que, não sendo cristãos, mantêm a sua lealdade aos
fundadores das respectivas religiões – Buda, Maomé e outros -, sem quaisquer
barreiras religiosas na sua consciência. Então, será instaurada definitivamente
a Fraternidade Universal.
Fernando Pessoa foi o Seu derradeiro profeta e a
“Mensagem” é o anúncio, não só do reaparecimento do Cristo, para continuar a
tarefa que iniciou há dois mil anos na Palestina, mas da missão de Portugal,
estritamente ligada a essa vinda e para a qual intentou preparar-se ao longo da
sua História.
Porque o local elegido e a partir do qual se fará a
reaparição do Encoberto, será a Lusitânia, a Terra da Luz, actualmente Portugal,
centro espiritual do Mundo Novo, o Quinto Império.
***
Escritório do trabalho de Fernando Pessoa. Na parede, o
calendário marca o dia 30 de Novembro de 1935. Logo abaixo, sobre a secretária
arrumada, a máquina de escrever aguarda, imóvel e silenciosa, ao lado de uma
cadeira vazia.
VOZ DE FERNANDO PESSOA:
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
***
Mesa-de-cabeceira fria e vulgar de um hospital,
contendo alguns medicamentos, um copo de água e os óculos de Fernando Pessoa.
A mão do Poeta estende-se para pegar nos óculos mas não
chega a alcançá-los, caindo inanimada.
Quarto de Fernando Pessoa, vazio, mergulhado numa
semi-obscuridade, da qual se destaca apenas a janela aberta e por onde entra a mesma luz azul de todas as visões.
O Poeta (ou o seu duplo “corpo espiritual" imortal) entra no quarto,
dirigindo-se à janela, por onde sai como se fosse uma porta, envolvendo-se,
definitivamente, na luz resplandecente desse outro lado da Vida a que chamamos de morte.
***
A cidade de Lisboa na actualidade, mais uma vez noite
adentro.
O vulto de Fernando Pessoa recorta-se na luz ténue das
ruas desertas e atravessa a praça do Terreiro do Paço.
FERNANDO PESSOA:
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal
Nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a hora!
A figura de Fernando Pessoa
percorre o Cais das Colunas, em Lisboa, e embarca num pequeno barco a remos, que logo se afasta; possivelmente, para o levar à
Ilha Misteriosa, onde mora o Rei Encoberto…
O movimento compassado dos remos, como um suave bater de
asas, transporta a silhueta do Poeta sobre as águas forradas de nevoeiro, cada vez mais para
dentro do Tejo e da noite.
Falta pouco para a aurora.