3 de mar. de 2010

ROMPER O CONTROLE OU COMO DO NADA SE FEZ A MENSAGEM


 "A Arte é uma emoção interior que dá conta de um Mistério. Um Mistério total que se eleva, magnífico, por cima de toda a expressão artística, que não pode ser escrava da representação social racional. As forças, as vibrações, as ondas, as energias, são apreendidas de uma forma totalmente distinta daquela das ideias, que são uma invenção humana."
                                                                                                   Carlos Castaneda
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A “Mensagem” é um pequeno livro de poemas de Fernando Pessoa que creio conter, nos “entre-versos”, uma mensagem propriamente dita sobre a missão e o futuro de Portugal e do mundo.

A ideia de filmar aqueles “entre-versos” como uma espécie de retrato de grupo da Tradição Lusíada, mágica e espiritual, tentando desvelar o propósito neles contido, afigurava-se, à-priori, como uma tarefa complicadíssima. Acrescente-se que o cinema é uma arte em que, para além do talento, os meios de produção são determinantes na qualidade do produto final; isto é, não se pode pensar em fazer um filme (ainda por cima de longa-metragem e, para mais, em Portugal) sem a verba adequada, que garanta o aparato técnico indispensável, bem como os próprios técnicos, actores, estúdios, guarda-roupa, etc.. Ora o projecto desta “Mensagem” não teve qualquer subsídio do estado português, nem tampouco interessou nenhuma das instituições culturais que, normalmente, apoiam o cinema nacional.

 Portanto, com este cenário à partida, a tarefa passava de complicadíssima à categoria da mais absoluta impossibilidade. No entanto, no outono de 1986 foi rodada a primeira cena da “Mensagem” e, dois anos depois, o filme estava concluído. Como foi possível?

A única resposta é que a situação limite em que me encontrava, provocada pela completa falta de condições, contrapondo-se à grande vontade de seguir em frente, forçou um fenómeno inusitado: ao invés de desistir do filme, como seria racionalmente evidente, desisti do critério que dizia ser impossível.



 O facto é que a “Mensagem” foi depois estreada no cinema S.Luiz, em Lisboa, no dia 13 de Junho de 1988, data que corresponderia ao 100º aniversário de Fernando Pessoa.

Olhando para trás, reconheço agora aquele critério de impossibilidade como pertencendo a um extenso catálogo de normas e directivas que preenchem a vida do homem de hoje, expressando o domínio absoluto daquilo que conhecemos como a "razão".

Apoiando-se no que poderíamos chamar de “lobby de Aristóteles” (o filósofo grego que definiu o homem como um ser racional e social), a razão há muito que subiu ao poder, determinando uma obediência cega e imediata às suas normas.

Por isso, rápidamente se estabeleceu que somente são de confiança os parâmetros racionais utilizados na descrição do mundo; isto é, aceitou-se o tal catálogo de critérios e funcionalidades como a única expressão válida da vida – da vida racionalmente correcta, claro está. Resultado: o homem de hoje só pensa do modo e da forma com que a razão o deixa pensar, utilizando aqueles mesmos critérios para observar o mundo à sua volta, através do olhar viciado que a mesma razão formatou.

Mas como não haveria de ser assim se, desde a mais tenra infância, esse homem é educado e instruído para viver na “sociedade do catálogo"?... Diz ela que há que aprender todos os códigos, regras e convenções para que a sociedade se mantenha coesa e em pleno funcionamento, fortalecendo cada vez mais o domínio da razão; ou seja, como em qualquer outra ditadura, a ordem social é conseguida à custa de um perfeito controle sobre os seus membros.

Ora a grande questão é precisamente essa: o controle.

Por muito que custe a entender (porque somente se pensa como se foi ensinado a pensar...), a ditadura da razão encontra-se por detrás de todos os poderes do mundo, sejam políticos, sociais ou mesmo religiosos ( sim, religiosos também, porque é a razão que, sob o manto espesso dos dogmas por si criados, trata de ocultar a Verdade primordial que, de outra forma, a colocaria seriamente em causa...)

A razão tornou-se, de facto, no poder dos poderes, contando com o orgulho indefectível da própria inteligência do homem para o transformar no guardião do sistema, sem quaisquer custos adicionais... Só que aquilo que chamamos  "inteligência" foi descrita pelos critérios da razão, que a ela se colou, ignorando e escamoteando todas as outras formas de percepção do mundo e da vida.

Esclareça-se, desde já, que considero a razão como um instrumento imprescindível na vida e na evolução do ser humano. Mas torna-se fundamental que a razão seja colocada no devido lugar e na função de "instrumento", não passando nunca à condição de instrumentalizadora ou de manipuladora da consciência, não permitindo qualquer sombra ou contestação ao seu domínio; por isso, nega totalmente o acesso às outras formas de percepção, afirmando, descaradamente, que não existem.

Mas Fernando Pessoa diz-nos que existem. E que funcionam.

Creio que para se entender a "Mensagem" como o anúncio de um "Império Espiritual", é indispensável conhecer o universo interno do seu autor, que misteriosamente confessa ao único amor da sua vida: "o meu destino pertence a outra Lei, cuja existência a Ophelinha nem sabe."


Numa nota biográfica escrita em 1935, ano da sua morte, Fernando Pessoa define-se a si mesmo como "Cristão Gnóstico e, portanto, oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma." Desde cedo que vinha revelando uma forte apetência por um saber transcendente, em busca de uma outra realidade ou verdade oculta. Data de 1906 uma nota íntima que proclama o seu "grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro", que o impele a percorrer um itinerário de consciência, ditado pelo Espírito.

Em 1915, ao traduzir para o português livros teosóficos (como "A Voz do Silêncio" de Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica) é atraído por esse movimento essencialmente gnóstico, escrevendo então que "o carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de
força, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumem as obras teosóficas, perturbaram-me muito."

Aprofunda depois o estudo e vivência da Gnose, chegando ao dos Rosa-Cruzes e passando pela Cabala, Astrologia, Alquimia, Geometria Sagrada, Magia, Mitologia, Simbologia, Misticismo, Profecia, Hermetismo..., como partes
componentes do que chama "Tradição Secreta do Cristianismo" da qual se afirma devotadamente "fiel".

Conhecendo este pano de fundo interior, poderemos entender muito melhor a ânsia de Fernando Pessoa pelas Novas Descobertas, como intuição do divino, bem como a génese e o alcance da "Mensagem". E também como esse alcance se choca com a razão...

De facto, todas as referidas disciplinas iniciáticas que ocuparam a interioridade de Fernando Pessoa, referem a constituição séptupla do homem, isto é, a existência de outros "corpos de energia", invisíveis, correspondentes a planos diferentes, que rodeiam o corpo visível do ser humano.

É preciso dizer que a ciência oficial mais avançada está a ir, cada vez mais, ao encontro desta concepção ancestral, que nunca deixou de ser considerada no oriente; num nível mais vulgar, ela também já foi absorvida e adoptada pelo ocidente, ainda que de forma superficial, pois a noção de "aura", de "chackras", de boa ou má "vibração", de alto ou baixo "astral", etc., fazem parte das conversas quotidianas deste lado do mundo.

A referida Tradição ensina que, para além do corpo físico denso, se seguem, de forma cada vez mais subtil, o etérico (fonte da vitalidade), o astral (onde se situam as emoções) e o mental, dividido em duas partes: o mental concreto, que é o plano da razão e que encerra o quaternário anterior da "personalidade humana”, e o mental abstracto, que abre as portas da "alma"; os orientais chamam a este plano de manas superior, ligando o homem à tríade que constitui a sua "individualidade espiritual", composta por mais dois "corpos energéticos": o búdico ou da intuição e o àtmico ou crístico.

Portanto, segundo a constituição oculta do ser humano, a razão situa-se bem distante do plano final... Por isso, como já referi, haverá que ser colocada no seu devido lugar e, dali, em vez de obstaculizar, deverá exercer a sua função de instrumento precioso na jornada de consciência do homem, ajudando-o a organizar e a sistematizar o caminho espiritual, que vai muito para além da mente concreta...

No filme, o acesso  àqueles horizontes novos, espirituais, onde também se encontram os registos do passado, é dado pela janela do quarto, abrindo-se sobre cenas da História de Portugal; simboliza a abertura da visão espiritual, a partir do olho interno, que a mesma Tradição revela estar situado no centro da testa de todo o ser humano e ligado à glândula pineal.




Portanto, quando Fernando Pessoa incita às Novas Descobertas, está a referir-se ao desbravar corajoso de novos planos ou níveis de consciência, individuais e colectivos. São mundos imensos e desconhecidos, como o eram, de um outro modo e num outro plano, os mundos que os navegadores portugueses ousaram descobrir no passado, não fazendo caso dos mapas que indicavam que, de certo ponto em diante, o mundo acabava e só havia dragões...

Actualmente,os mapas mentais forjados pela razão também avisam que, para além dela, só há dragões... Dragões ou Adamastores, agora denominados de "demência", "insanidade", "estupidez", "irracionalismo" etc., para que infundam um pavor correspondente.

Curiosamente, quando o filme "Mensagem" estreou no cinema, houve logo um crítico que o classificou como uma obra "irracional"... Devo dizer que tomei isso como o maior dos elogios pois, no sentido aqui desenvolvido,
irracional não é qualquer insuficiência da mente mas a sua ultrapassagem "supra-racional" consciente, rumo aos planos mais elevados do ser.

Neste mesmo sentido também será irracional todo o pensamento profético de Fernando Pessoa ou do padre António Vieira, que primeiro falou do "Quinto Império"; e não consta que Fernando Pessoa, António Vieira ou muitos outros expoentes da cultura portuguesa que aderiram à corrente "Quinto Imperial" e ousaram romper o controle da razão, sejam doidos varridos, alucinados pela droga, mentecaptos ou simplesmente idiotas...

Esta luta do homem pela consciência e pela verdadeira liberdade, em toda a sua extensão, também se encontra muitíssimo bem descrita nos livros de Carlos Castaneda, que Deepak Chopra considerou como um dos maiores pensadores do século XX. Neles, o autor relata a sua iniciação por intermédio de um Mestre a que chama de "D. Juan" e que o ajudou a tornar-se num "Guerreiro do Espírito".




"D. Juan" diz que quando o homem se enfrenta com cenários inabituais, "o medo do conhecimento é natural; todos o experimentamos sem poder fazer nada. Mas por mais temível que seja a aprendizagem, é muito mais terrível a ideia de um homem sem conhecimento."

E ainda : "Os nossos semelhantes (os homens comuns, dominados pela razão) são verdadeiros magos negros. E quem quer que esteja com eles torna-se também num mago negro. Pensa um momento: podes desviar-te do caminho que esses teus semelhantes traçaram para ti? Enquanto estiveres com eles, as tuas acções e pensamentos permanecem absolutamente rígidas, fixas nos seus termos. Isso é escravatura. O guerreiro, ao contrário, está livre de tudo isso. A liberdade é cara, mas o preço não é impossível de pagar. Deste modo, deves temer os teus captores, os teus amos; não desperdices o teu tempo e o teu poder com medo da liberdade".

A conquista consciente dessa liberdade, na sua vertente global, planetária, é, pois, a mesma proposta que Fernando Pessoa nos deixou com as Novas Descobertas: descobertas de mundos internos, espirituais, que darão uma outra dimensão e oportunidade ao homem de hoje e ao seu mundo moderno, que não deixa de ser vazio, medíocre e limitado, ainda que tecnologicamente muito desenvolvido.

Por isso, apesar do controle cerrado da razão, há cada vez mais pessoas que sentem um apelo da alma que não sabem definir, porque nenhuma das vias formais do pensamento ocidental se constitui como um caminho de libertação. De modo que esse forte apelo interno vai desembocar num vazio doloroso e terrível; no entanto, poderá ser essa a condição necessária para que nasça alguma coisa verdadeiramente nova.

Sucedeu uma situação semelhante com a produção do filme "Mensagem": provocado pelas circunstâncias prévias, surgiu o tal vazio desolador que forçou um mergulho no abismo; mas de súbito tornou-se claro que não havia abismo nenhum e que o caminho não terminava ali...

Parece simples e é muito simples.

Mas chegar a essa simplicidade é que é complicado, porque as cabeças estão a atafulhar de conceitos, de definições, de métodos, de critérios; em suma, de processos racionalizados pertencentes ao tal catálogo da mente concreta.

Quer isto dizer que as mentes humanas se encontram completamente condicionadas e auto-controladas pela ideia que fazem de si próprias e que para elas é a realidade, não percebendo que se auto-encerraram num campo de concentração, cujos guardas são os próprios prisioneiros...

Romper esse controlo, sair dessa "matrix", é o combate que todo o ser humano deveria travar em si e por si mesmo, em vez de se envolver em esgotantes e inúteis lutas externas, que nada têm a ver com ele.


                                                    ***


De forma simbólica (e independentemente do produto final), o modo como foi feito o filme "Mensagem" também correspondeu a uma tentativa para romper as regras do catálogo homólogo que regula o cinema.



Beneficiando de um generoso suporte familiar, começámos por utilizar como estúdio um velho celeiro em Azambuja, onde construímos os cenários com a madeira de caixotes oferecidos por uma fábrica da zona. A RTP cedeu a película, o laboratório e pouco mais. Os actores e os técnicos, todos profissionais credenciados, acreditaram no projecto e trabalharam duramente, com "cachets" meramente simbólicos ou mesmo sem eles. Tivemos, depois, alguns apoios pontuais e, sobretudo, logísticos, das Câmaras Municipais de Azambuja, Tomar, Lisboa, Batalha e Peniche e somente no final da rodagem se conseguiu uma pequena verba do Instituto Português de Cinema para os acabamentos e a tiragem de cópias.

Enfim, a verdade (e digo isto sem miserabilismos nem lamentações inúteis) é que a falta de condições foi sempre uma constante; começámos sem sabermos como iríamos terminar, vivendo substancialmente de cedências, favores e disponibilidades que originaram, no entanto, paragens de meses entre cenas; mas, em determinado momento, o "nada" inicial havia-se transformado num filme acabado.



De acordo com o sentido do discurso anterior, o desesperante vazio inicial deu lugar a um outro vazio já não doloroso, mas profundamente transformador. Suponho que um vazio como aquele a que apelam os Mestres Zen, quando se referem ao despejar da mente, isto é, deixando que a mente actue com toda a espontaneidade, sem recorrer ao banco de dados impostos e programados pela razão. Desse modo, a mente poderá actuar por si mesma, sem esforço e sem vícios, tal como os olhos naturalmente vêem e os ouvidos naturalmente ouvem...

Encontro este mesmo apelo ao maravilhoso vazio (que, afinal, contém o universo inteiro) na obra do heterónimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro que, como um autêntico Mestre Zen, recusa todas as deambulações programadas pelo pensamento, fazendo estremecer os conceitos mentais convencionais. Diz Caeiro que "pensar é estar doente dos olhos", porque quem souber utilizar os olhos não precisa de se sujeitar aos filtros dessas interpretações mentais .

De certo modo, foi um pouco assim que fomos ter ao velho celeiro de Azambuja, e o processo ali desenvolvido, que deu à luz a "Mensagem", acabou por ser a ilustração perfeita de um aforismo Zen.

 Aquele que diz que, verdadeiramente, tudo começa quando acaba...