3 de fev. de 2010

A GARANTIA



Custa-me muito conceber como é que Portugal, sendo um país de marinheiros experimentados, acabou por perder o norte e soçobrar tão desoladamente... A não ser que o desnorte em que agora, desgraçadamente, vive, faça parte de uma determinada estratégia, ou mesmo de um processo iniciático, em que a morte sirva de prova máxima para chegar à transformação e à superação de si próprio.

Analisando bem as circunstâncias históricas, tenho, para mim, que foi esse o caso.

A partir do século XVI, e após o esplendor interpretado pelo voo fabuloso da Ave (ou de Avis, a sua segunda dinastia), Portugal encetou um outro período da sua História e começou deliberadamente a morrer na batalha de Alcácer-Kibir, que determinou o final daquela dinastia.

E sobreveio o sono iniciático.

Esse sono foi-se adensando, progressivamente, ao longo dos séculos, até provocar o esquecimento do próprio processo e se transformar na mais terrível das mortes - a morte da consciência da nação.

Mas, afinal, segundo a hipótese levantada no início, seria essa a suprema prova: descer ao mais fundo dos fundos e morrer sem remissão, para depois, um dia, renascer das próprias cinzas, como a Fénix ou a Avis sagrada da mitologia...

Profecias

O Portugal sem identidade de agora erra às cegas, como um zombie, num limbo obscuro e gelado, com a indiferença que se segue ao desespero. Por mais que soem discursos branqueadores, por parte de um poder a quem só o poder interessa, essa é a realidade nua e crua.

Definitivamente, este não é o Portugal anunciado por António Vieira, pelo Bandarra e por Fernando Pessoa: aquele Portugal que, segundo eles, se levantará, um dia, como "luz das nações" e dará novos valores ao mundo, impulsionando a criação de um Império mundial de consciência e de cultura, enquadrando a  manifestação do Cristo Redentor Encoberto...

Teria sido apenas um delírio de visionários perturbados?...

Algumas tradições iniciáticas ignoram o papel "quinto-imperial" de Portugal e apontam, exclusivamente, para o continente americano, referindo o Brasil como o palco da nova civilização. Mas não dizia Fernando Pessoa que a sua Pátria era a língua portuguesa?... Penso que esse outro conceito de "Pátria"( ou, neste caso, de "Portugal"), simultâneamente físico e não-físico e muito mais abrangente e aglutinador, encerra a chave de todo o processo.

Sob este ponto de vista, o cenário em questão será, sobretudo, um "espaço de alma", preparado em  conjunto e cuja componente territorial ou física se repartirá por aqueles dois países de língua portuguesa. Quer isto dizer que Portugal e Brasil poderão (quem sabe?...) alternar entre si como o palco profetizado (por vezes, secreto, outras vezes exposto ao mundo), de acordo com as distintas etapas e os objectivos em causa, num só e mesmo processo: possivelmente, Portugal mais directamente relacionado com a manifestação do Quinto Império no mundo, e o Brasil com o arrumar de todos os passados "espirituais" ainda por resolver, bem como com a génese oculta daquele "Quinto" e o despertar da civilização seguinte (que, nesta lógica, se poderá designar como"Sexta"...), cujas sementes terão que crescer em simultâneo com a floração daquele Império futuro, mas anterior...

Se realmente for assim, percebe-se a confusão na interpretação das profecias que, deste modo, deixam de ser contraditórias.

Nevoeiro

Mas como poderá o Portugal perdido e destroçado, de hoje, assumir o seu papel? Como poderá a nau onde embarcou, para cumprir o sonho e que agora erra à deriva, reencontrar o norte e realizar o seu destino?

Segundo a arte de navegar, terá que ser encontrado, no horizonte ou no céu, um ponto fixo que sirva de referência, de modo a poderem estabelecer-se as novas coordenadas de um rumo seguro.

Quanto a mim, esse indispensável ponto de referência sempre existiu bem definido na distância, como o mais brilhante dos faróis. E para não restarem dúvidas da sua função orientadora ou de restabelecimento de um norte perdido, acumula o simbolismo com a geografia, situando-se, precisamente, ao norte de Portugal.

Refiro-me à Galiza.

Não propriamente à belíssima Galiza da superfície, terna, acolhedora e unânimemente celebrada, mas ao fluxo contínuo e misterioso das suas águas amnióticas, dos carvalhos que falam, dos ares que transportam ou das montanhas que se abrem: a Galiza interna das maravilhas, profunda, mágica e prodigiosa...

A luz do etéreo

A Galiza, ocupando o noroeste peninsular (a tal "cabeça da Europa", no dizer de Camões), encima o perfil ibérico voltado para o mar; sendo assim, a sua situação corresponde, simbolicamente falando, à testa e ao alto da cabeça, onde a sabedoria oriental ensina que se situam dois "chackras" ou vórtices de energia que, depois de activados, conferem a clarividência e a iluminação total do ser.

Tais vórtices detêm uma correspondência no território galego, onde poderão ser representados externamente por Santiago de Compostela ("farol da unidade cultural europeia" passando, um dia, a "farol da unidade da cultura universal", no dizer de Agostinho da Silva) e pela Corunha, onde existe, realmente, um magnífico farol romano ainda em funcionamento: a Torre de Hércules, símbolo da cidade e justo património da humanidade.

Aqui está, pois, a luz vibrante que poderá orientar a nau portuguesa nesta conturbada viagem de consciência; sendo que, afinal, luz e nau, são duas partes de uma mesma coisa ou cabeça... Sem esquecer nunca que a cabeça tem um corpo e que esse corpo interage também com todos os demais; nada existe por si só e muito menos para si só, e o nosso espírito de descoberta sempre foi universalista.


Um berço e um destino a par

Pode dizer-se que Portugal e a Galiza nasceram juntos no território da antiga Gallaecia romana. Na verdade, os Portugal e Galiza actuais são a extensão natural um do outro, detendo em comum aspectos muito significativos da História, da língua, da cultura e do temperamento, sentindo ambos uma profunda e estranha saudade de algo indefinido que, supostamente, passou mas que, simultâneamente, se apresenta como futuro...

Desde a revolta de D.Afonso Henriques contra a Mãe (e a Mãe tem aqui o duplo significado da Mãe física - D.Teresa - e da Terra Mãe galega que se separou do Filho, ou o novo país lusitano), outros Reis portugueses conquistaram, esporadicamente e sem grande empenho e convicção, posições a norte; por isso acabaram por perdê-las, deixando a Galiza entregue ao seu destino "contra-natura" com Castela.

O que, no entanto, sempre se manteve foi a tendência natural para a reunificação, configurando num só país todo o rosto da Ibéria, pois ambos os territórios tudo tinham a ver um com o outro, diferenciando-se ambos, enormemente, de Castela.

Por isso dizia Fernando Pessoa que a Galiza, se "integrada em Portugal, fica parte do estado a que por natureza e raça pertence"...

Por isso, falava Agostinho da Silva nos erros históricos de Portugal, referindo-se ao nosso abandono da Galiza, "a companheira, pela qual o nosso amor jamais se desmentirá"...

Esclareço, desde já, que não sou militante de coisa política nenhuma, nem adepto de qualquer alteração estadual da Ibéria. A única alteração que verdadeiramente me importa é uma profunda mudança da consciência individual e colectiva, conduzindo a um "ibérico estado de ser", muito mais importante do que a um estado ibérico.

Salvaguarda


Posto isto, concordo em absoluto com o pensamento daquelas duas figuras de proa da cultura portuguesa; penso, no entanto, que há um motivo oculto para que Portugal e a Galiza tivessem mantido, até ao presente, uma fronteira entre si. A razão prende-se com a situação actual portuguesa: se agora constituíssemos um único país, estaríamos irremediavelmente no mesmo barco, vagueando como mortos-vivos num oceano de nevoeiro... E onde estaria a salvaguarda de um farol aceso a norte?...

Deste modo, para um poder valer ao outro, tivemos que permanecer separados.

Esta teoria concorda com a suposição anterior de que Portugal elegeu o sacrifício iniciático da morte para renascer a um outro nível e, assim, poder cumprir a sua missão última de "Cristo das Nações", tal como a classifica o poeta Vasco da Gama Rodrigues.

Prevendo, no entanto, que se poderia perder por completo nessa prova terrível, o Portugal lusitano, antes de penetrar no terrível labirinto do esquecimento, terá entregue uma espécie de fio de Ariadne àquele "outro Portugal" que ficaria de fora e que os galegos chamam de Galiza...

Antemanhã

Apesar dessa indispensável separação externa, Portugal e a Galiza mantêm, por dentro, uma unidade indissolúvel - daí que se possa dizer que são corpos artificialmente separados mas que detêm a mesma Alma-Mãe.

Sendo assim, o destino de um está intrinsecamente ligado ao destino do outro. E se um perdeu, num determinado momento da sua actuação a solo, o contacto com a sua parte da Alma comum, será a ligação mais íntima e profunda com o outro que poderá ajudar a restabelecê-la. O fio também funciona como canal...

Digamos que a corrente telúrica-espiritual dessa Alma é a que faz activar os respectivos "chakras" e recordemos que, na zona da cabeça, para além dos dois já referidos, existe mais um: o da garganta, conferindo o dom do verbo ou do som criador.

 Em termos da "cabeça da Europa", esse vórtice energético é tradicionalmente representado por Sintra, em Portugal. De acordo com as características do "chakra", será dali que ecoarão as vozes anunciadoras do Quinto Império e da chegada do respectivo Rei-Imperador...

Os gnósticos referiam-se à aquisição da consciência da divindade, por dentro de cada um, como o surgimento do Rei... E, na verdade, só o despertar interno dessa consciência é que impulsionará a grande mudança, externa, na face da Terra.

Primeiro de forma individual e, depois, colectivamente.

O Portugal Quinto Imperial será, então, o renascido pela vitória no labirinto obscuro em que se encontra, reorientado pelo alinhamento a norte; será esse, o que irá cumprir a função anunciadora de um  advento civilizacional global de consciência e de cultura, que poderá ocorrer a partir da Ibéria.

Deste modo, a Galiza surge como a "garantia iniciática" do futuro da nação portuguesa...

Ou seja, a Galiza constitui-se não somente como o farol mas, também, como o Pórtico da Glória de Portugal!